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Mostrando postagens de maio, 2008

A Quinta História

Esta história poderia chamar-se "As Estátuas". Outro nome possível é "O Assassinato". E também "Como Matar Baratas". Farei então pelo menos três histórias, verdadeiras, porque nenhuma delas mente a outra. Embora uma única, seriam mil e uma, se mil e uma noites me dessem. A primeira, "Como Matar Baratas", começa assim: queixei-me de baratas. Uma senhora ouviu-me a queixa. Deu-me a receita de como matá-las. Que misturasse em partes iguais açúcar, farinha e gesso. A farinha e o açúcar as atrairiam, o gesso esturricaria o de dentro delas. Assim fiz. Morreram. A outra história é a primeira mesmo e chama-se "O Assassinato". Começa assim: queixei-me de baratas. Uma senhora ouviu-me. Segue-se a receita. E então entra o assassinato. A verdade é que só em abstrato me havia queixado de baratas, que nem minhas eram: pertenciam ao andar térreo e escalavam os canos do edifício até o nosso lar. Só na hora de preparar a mistura é que elas se tornaram m...

A Paixão Segundo G.H. (trecho)

No desmoronamento, toneladas caíram sobre toneladas. E quando eu, G.H. até nas valises, eu, uma das pessoas, abri os olhos, estava - não sobre escombros pois até os escombros já haviam sido deglutidos pelas areias - estava numa planície tranqüila, quilômetros e quilômetros abaixo do que fora uma grande cidade. As coisas haviam voltado a ser o que eram. O mundo havia reivindicado a sua própria realidade, e, como depois de uma catástrofe, a minha civilização acabara: eu era apenas um dado histórico. Tudo em mim fora reivindicado pelo começo dos tempos e pelo meu próprio começo. Eu passara a um primeiro plano primário, estava no silêncio dos ventos e na era de estanho e cobre - na era primeira da vida. Escuta, diante da barata viva, a pior descoberta foi a de que o mundo não é humano, e de que não somos humanos. Não, não te assustes! certamente o que me havia salvo até aquele momento da vida sentimentizada de que eu vivia, é que o inumano é o melhor nosso, é a coisa, a parte coisa da gent...

O Banho (trecho)

[...] Antes estava fechada, opaca. Mas, quando me levan­tei, foi como se tivesse nascido da água. Saí molha­da, a roupa colada à pele, os cabelos brilhantes, sol­tos. Qualquer coisa agitava-se em mim e era certa­mente meu corpo apenas. Mas num doce milagre tudo se torna transparente e isso era certamente mi­nha alma também. Nesse instante eu estava verda­deiramente no meu interior e havia silêncio. Só que meu silêncio, compreendi, era um pedaço do silên­cio do campo. E eu não me sentia desamparada. O cavalo de onde eu caíra esperava-me junto ao rio. Montei-o e voei pelas encostas que a sombra já inva­dia e refrescava. Freei as rédeas, passei a mão pelo pescoço latejante e quente do animal. Continuei a passo lento, escutando dentro de mim a felicidade, alta e pura como um céu de verão. Alisei meus bra­ços, onde ainda escorria a água. Sentia o cavalo vivo perto de mim, uma continuação do meu corpo. Am­bos respirávamos palpitantes e novos. Uma cor maciamente sombria deitara-se sobre as ca...

A Paixão Segundo G.H. (trecho)

Fechei os olhos, aguardando que a estranheza passasse, aguardando que meu arfar não fosse mais o daquele gemido que eu ouvira como vindo do fundo de uma cisterna seca e funda, assim como a barata era bicho de cisterna seca. Eu ainda continuava a sentir, incalculavelmente longínquo em mim, o gemido que já não me chegava mais à garganta. Isto é a loucura, pensei de olhos fechados. Mas era tão inegável sentir aquele nascimento de dentro da poeira - que eu não podia senão seguir aquilo que eu bem sabia que não era loucura, era, meu Deus, uma verdade pior, a horrível. Mas horrível por quê? É que ela contrariava sem palavras tudo o que antes eu costumava pensar também sem palavras. Aguardei que a estranheza passasse, que a saúde voltasse. Mas reconhecia, num esforço imemorial de memória, que já havia sentido essa estranheza: era a mesma que eu experimentava quando via fora de mim o meu próprio sangue, e eu o estranhava. Pois o sangue que eu via fora de mim, aquele sangue eu o estranhava com...

A Paixão Segundo G.H. (trecho)

Eu tinha agora uma sensação de irremediável. E já sabia que embora absurdamente, eu só teria ainda chance de sair dali se encarasse frontal e absurdamente que alguma coisa estava sendo irremediável. Eu sabia que tinha de admitir o perigo em que eu estava, mesmo consciente de que era loucura acreditar num perigo inteiramente inexistente. Mas eu tinha de acreditar em mim - a vida toda eu estivera como todo o mundo em perigo - mas agora, para poder sair, eu tinha a responsabilidade alucinada de ter de saber disso. Na minha clausura entre a porta do armário e o pé da cama, eu ainda não tentara de novo mover os pés para sair, mas recuara o dorso para trás como, se mesmo na sua extrema lentidão, a barata pudesse dar um bote - eu já havia visto as baratas que de súbito voam, a fauna alada. Fiquei imóvel, calculando desordenadamente. Estava atenta, eu estava toda atenta. Em mim um sentimento de grande espera havia crescido, e uma resignação surpreendida: é que nesta espera atenta eu reconhecia...

A Paixão Segundo G.H. (trecho)

Pela lentidão e grossura, era uma barata muito velha. No meu arcaico horror por baratas eu aprendera a adivinhar, mesmo à distância, suas idades e perigos; mesmo sem nunca ter realmente encarado uma barata eu conhecia os seus processos de existência. Só que ter descoberto súbita vida na nudez do quarto me assustara como se eu descobrisse que o quarto morto era na verdade potente. Tudo ali havia secado - mas restara uma barata. Uma barata tão velha que era imemorial. O que sempre me repugnara em baratas é que elas eram obsoletas e no entanto atuais. Saber que elas já estavam na Terra, e iguais a hoje, antes mesmo que tivessem aparecido os primeiros dinossauros, saber que o primeiro homem surgido já as havia encontrado proliferadas e se arrastando vivas, saber que elas haviam testemunhado a formação das grandes jazidas de petróleo e carvão no mundo, e lá estavam durante o grande avanço e depois durante o grande recuo das geleiras - a resistência pacífica. Eu sabia que baratas resistiam ...

Evolução de Uma Miopia

Se era inteligente, não sabia. Ser ou não inteligente dependia da instabilidade dos outros. Às vezes o que ele dizia despertava de repente nos adultos um olhar satisfeito e astuto. Satisfeito, por guardarem em segredo o fato de acharem-no inteligente e não o mimarem; astuto, por participarem mais do que ele próprio daquilo que ele dissera. Assim, pois, quando era considerado inteligente, tinha ao mesmo tempo a inquieta sensação de inconsciência: alguma coisa lhe havia escapado. A chave de sua inteligência também lhe escapava. Pois às vezes, procurando imitara si mesmo, dizia coisas que iriam certamente provocar de novo o rápido movimento no tabuleiro de damas, pois era esta a impressão de mecanismo automático que ele tinha dos membros de sua família: ao dizer alguma coisa inteligente, cada adulto olharia rapidamente o outro, com um sorriso claramente suprimido dos lábios, um sorriso apenas indicado com os olhos, "como nós sorriríamos agora, se não fôssemos bons educadores" — ...

A Solução

Chamava-se Almira e engordara demais. Alice era a sua maior amiga. Pelo menos era o que dizia a todos com aflição, querendo compensar com a própria veemência a falta de amizade que a outra lhe dedicava. Alice era pensativa e sorria sem ouvi-la, continuando a batera máquina. À medida que a amizade de Alice não existia, a amizade de Almira mais crescia. Alice era de rosto oval e aveludado. O nariz de Almira brilhava sempre. Havia no rosto de Almira uma avidez que nunca lhe ocorrera disfarçar: a mesma que tinha por comida, seu contato mais direto com o mundo. Por que Alice tolerava Almira, ninguém entendia. Ambas eram datilógrafas e colegas, o que não explicava. Ambas lanchavam juntas, o que não explicava. Saíam do escritório à mesma hora e esperavam condução na mesma fila. Almira sempre pajeando Alice. Esta, distante e sonhadora, deixando-se adorar. Alice era pequena e delicada. Almira tinha o rosto muito largo, amarelado e brilhante: com ela o batom não durava nos lábios, ela era das qu...

A Hora da Estrela (trecho)

[...] Silêncio. Se um dia Deus vier à terra haverá silêncio grande. O silêncio é tal que nem o pensamento pensa. O final foi bastante grandiloqüente para a vossa necessidade? Morrendo ela virou ar: Ar enérgico? Não sei. Morreu em um instante. O instante é aquele átimo de tempo em que o . pneu do carro correndo em alta velocidade toca no chão e depois não toca mais e depois toca de novo. Etc., etc., etc. No fundo ela não passara de uma caixinha de música meio desafinada. Eu vos pergunto: - Qual é o peso da luz? E agora - agora só me resta acender um cigarro e ir para casa. Meu Deus, só agora me lembrei que a gente morre. Mas - mas eu também?! Não esquecer que por enquanto é tempo de morangos. Sim. ***

A Hora da Estrela (trecho)

[...] Quanto a mim, só sou verdadeiro quando estou sozinho. Quando eu era pequeno pensava que de um momento para outro eu cairia para fora do mundo. Por que as nuvens não caem, já que tudo cai? É que a gravidade é menor que a força do ar que as levanta. Inteligente, não é? Sim, mas caem um dia em chuva.  a minha vingança. [...] Preste atenção, minha flor, porque é de maior importância o que vou lhe dizer. É coisa muito séria e muito alegre: sua vida vai mudar completamente! E digo mais a partir do momento em que você vai voltar e propor casamento, ele está arrependido! E seu chefe vai lhe avisar que pensou melhor e não vai mais lhe despedir.

A Hora da Estrela (trecho)

Um dia teve um êxtase. Foi diante de uma árvore tão grande que no tronco ela nunca poderia abraça-la. Mas apesar do êxtase ela não morava com Deus. Rezava indiferentemente. Sim. Mas o misterioso Deus dos outros lhe dava às vezes um estado de graça. Feliz, feliz, feliz. Ela de :.alma quase. voando. E também vira o disco-voador. Tentara contar a Glória mas não tivera jeito, não sabia falar e mesmo contar o quê? O ar? Náo se conta tudo porque o tudo é um oco nada. As vezes a graça a pegava em pleno escritório. Então ela ia ao banheiro para ficar sozinha. [...] - Eu sou sozinha no mundo e não acredito em ninguém; todos mentem, às vezes até na hora do amor, eu não acho que um ser fale com o outro, a verdade só me vem quando estou sozinha.

A Paixão Segundo G.H. (trecho)

Os traços - descobri sem prazer - eram traços de rainha. E também a postura: o corpo ereto, delgado, duro, liso, quase sem carne, ausência de seios e de ancas. E sua roupa? Não era de surpreender que eu a tivesse usado como se ela não tivesse presença: sob o pequeno avental, vestia-se sempre de marrom escuro ou de preto, o que a tornava toda escura e invisível - arrepiei-me ao descobrir que até agora eu não havia percebido que aquela mulher era uma invisível. Janair tinha quase que apenas a forma exterior, os traços que ficavam dentro de sua forma eram tão apurados que mal existiam: ela era achatada como um baixo-relevo preso a uma tábua. E fatalmente, assim como ela era, assim deveria ter me visto? Abstraindo daquele meu corpo desenhado na parede tudo o que não era essencial, e também de mim só vendo o contorno. No entanto, curiosamente, a figura na parede lembrava-me alguém, que era eu mesma. Coagida com a presença que Janair deixara de si mesma num quarto de minha casa, eu percebia ...

Água Viva (Parte Final)

E há uma bem-aventurança física que a nada se compara. O corpo se transforma em um dom. E se sente que é um dom porque se está se experimentando, em fonte direta, a dádiva de repente indubitável de existir milagrosamente e materialmente. Tudo ganha uma espécie de nimbo que não é imaginário: vem do esplendor da irradiação matemática das coisas e da lembrança de pessoas. Passa-se a sentir que tudo que existe respira e exala um finíssimo esplendor de energia. A verdade do mundo, porém, é impalpável. Não é nem de longe o que mal imagino deve ser o estado de graça dos santos. Este estado jamais conheci e nem sequer consigo adivinhá-lo. É apenas a graça de uma pessoa comum que a torna de súbito real porque é comum e humana e reconhecível. As descobertas nesse sentido são indizíveis e incomunicáveis. E impensáveis. É por isso que na graça eu me mantive sentada, quieta, silenciosa. E como em uma anunciação. Não sendo porém precedida por anjos. Mas é como se o anjo da vida viesse me anunciar o ...

Água Viva (8° Parte)

[...] Estou te falando em abstrato e pergunto-me: sou uma ária cantabile? Não, não se pode cantar o que te escrevo. Por que não abordo um tema que facilmente poderia descobrir? mas não: caminho encostada à parede, escamoteio a melodia descoberta, ando na sombra, nesse lugar onde tantas coisas acontecem. Às vezes escorro pelo muro, em lugar onde nunca bate sol. Meu amadurecimento de um tema já seria uma ária cantabile - outra pessoa que faça então outra música - a música do amadurecimento do meu quarteto. Este é antes do amadurecimento. A melodia seria o fato. Mas que fato tem uma noite que se passa inteira em um atalho onde não tem ninguém e enquanto dormimos sem saber de nada? Onde está o fato? Minha história é de uma escuridão tranqüila, de raiz adormecida na sua força, de odor que não tem perfume. E em nada disso existe o abstrato. É o figurativo do inominável. Quase não existe carne nesse meu quarteto. Pena que a palavra "nervos" esteja ligada a vibrações dolorosas, senão...

Água Viva (7° Parte)

[...] Agora estou com medo. Porque vou te dizer uma coisa. Espere que o medo passe. Passou. É o seguinte: a dissonância me é harmoniosa. A melodia por vezes me cansa. E também o chamado "leit-motit". Quero na música e no que te escrevo e no que pinto, quero traços geométricos que se cruzam no ar e formam uma desarmonia que eu entendo. É puro it. Meu ser se embebe todo e levemente se embriaga. Isto que estou te escrevendo é muito importante. E eu trabalho quando durmo: porque é então que me movo no mistério. Hoje é domingo de manhã. Neste domingo de sol e de Júpiter estou sozinha em casa. Dobrei-me de repente em dois e para frente como em profunda dor de parto - e vi que a menina em mim morria. Nunca esquecerei este domingo sangrento. Para cicatrizar levará tempo. E eis-me aqui dura e silenciosa e heróica. Sem menina dentro de mim. Todas as vidas são vidas heróicas. A criação me escapa. E nem quero saber tanto. Basta-me que meu coração bata no peito. Basta-me o impossível vivo...

A Hora da Estrela (trecho)

Esqueci de dizer que era realmente de se espantar que para corpo quase murcho de Macabéa tão vasto fosse o seu sopro de vida quase ilimitado e tão rico como o de uma donzela grávida, engravidada por si mesma, por partenogênese; tinha sonhos esquizóides nos quais apareciam gigantescos animais antediluvianos como se ela tivesse vivido em épocas as mais remotas desta terra sangrenta. Foi então (explosão) que se desmanchou de repente o namoro entre Olímpico e Macabéa. Namoro talvez esquisito mas pelo menos parente de algum amor pálido. Ele avisou-lhe que encontrara outra moça é que esta era Glória. (Explosão) Macabéa bem viu o que aconteceu com Olímpico e Glória: os olhos de ambos se haviam beijado. [...]

Alegrias de Joana (trecho)

A LIBERDADE QUE Às VEZES sentia não vinha de re¬flexões nítidas, mas de um estado como feito de per¬cepções por demais orgânicas para serem formula¬das em pensamentos. Às vezes no fundo da sensação tremulava uma idéia que lhe dava leve consciência de sua espécie e de sua cor. O estado para onde deslizava quando murmu¬rava: eternidade. O próprio pensamento adquiria uma qualidade de eternidade. Aprofundava-se magicamente e alargava-se, sem propriamente um conteú¬do e uma forma, mas sem dimensões também. A im¬pressão de que se conseguisse manter-se na sensação por mais uns instantes teria uma revelação — facil¬mente, como enxergar o resto do mundo apenas inclinando-se da terra para o espaço. Eternidade não era só o tempo, mas algo como a certeza enraizada-mente profunda de não poder contê-lo no corpo por causa da morte; a impossibilidade de ultrapassar a eternidade era eternidade; e também era eterno um sentimento em pureza absoluta, quase abstrato. So¬bretudo dava idéia de eternidade a i...

Viagem a Petrópolis

Era uma velha sequinha que, doce e obstinada, não parecia compreender que estava só no mundo. Os olhos lacrimejavam sempre, as mãos repousavam sobre o vestido preto e opaco, velho documento de sua vida. No tecido já endurecido encontravam-se pequenas crostas de pão coladas pela baba que lhe ressurgia agora em lembrança do berço. Lá estava uma nódoa amarelada, de um ovo que comera há duas semanas. E as marcas dos lugares onde dormia. Achava sempre onde dormir, casa de um, casa de outro. Quando lhe perguntavam o nome, dizia com a voz purificada pela fraqueza e por longuíssimos anos de boa educação: — Mocinha. As pessoas sorriam. Contente pelo interesse despertado, explicava: — Nome, nome mesmo, é Margarida. O corpo era pequeno, escuro, embora ela tivesse sido alta e clara. Tivera pai, mãe, marido, dois filhos. Todos aos poucos tinham morrido. Só ela restara com os olhos sujos e expectantes quase cobertos por um tênue veludo branco. Quando lhe davam alguma esmola davam-lhe pouca, pois ela...

A Hora da Estrela (trecho)

Afinal terminou por voltar para ela. Por motivos diferentes entraram num açougue. Para ela o cheiro da carne crua era um perfume que a levitava toda como ,se tivesse comido. Quanto a ele, o que queria ver era o açougueiro e sua faca amolada. Tinha inveja do açougueiro e também queria ser. Meter a faca na carne o excitava. Ambos saíram do açougue satisfeitos. [...] Posteriormente de pesquisa em pesquisa, ele soube, que Glória tinha mãe, pai é comida quente em hora certa. Isso tornava-a de primeira qualidade Olímpico caiu em êxtase quando soube que o pai dela trabalhava num açougue. Pelos quadris adivinhava-se que seria boa parideira. Enquanto Macabéa lhe pareceu ter em si mesma o seu próprio fim.

A Paixão Segundo G.H. (trecho)

Eu via o que aquilo dizia: aquilo não dizia nada. E recebia com atenção esse nada, recebia-o com o que havia dentro de meus olhos nas fotografias; só agora sei de como sempre estive recebendo o sinal mudo. Eu olhava o interior da área. Aquilo tudo era de uma riqueza inanimada que lembrava a da natureza: também ali poder-se-ia pesquisar urânio e dali poderia jorrar petróleo. Eu estava vendo o que só teria sentido mais tarde - quero dizer, só mais tarde teria uma profunda falta de sentido. Só depois é que eu ia entender: o que parece falta de sentido - é o sentido. Todo momento de “falta de sentido” é exatamente a assustadora certeza de que ali há o sentido, e que não somente eu não alcanço, como não quero porque não tenho garantias. A falta de sentido só iria me assaltar mais tarde. Tomar consciência da falta de um sentido teria sido sempre o meu modo negativo de sentir o sentido? Fora a minha participação. O que eu estava vendo naquele monstruoso interior de máquina, que era a área int...

... A Tia... (trecho)

A VIAGEM ERA LONGA e das moitas longínquas vinha um cheiro frio de mato molhado. Era muito cedo de manhã e Joana mal tivera tempo de lavar o rosto. A empregada ao seu lado distraía-se soletrando os anúncios do bonde. Joana encostara a têmpora direita no banco e deixava-se atordoar pelo doce ruído das rodas, transmitido sono-lentamente pela madeira. O chão corria sob seus olhos baixos, célere, cinzento, raiado de listras ve¬lozes e fugazes. Se abrisse os olhos enxergaria cada pedra, acabaria com o mistério. Mas entrefechava-os e parecia-lhe que o bonde corria mais e que se tor¬nava mais forte o vento salgado e fresco do nascer do dia. Tomara o café com um bolo esquisito, escuro — gosto de vinho e de barata — que lhe tinham fei¬to comer com tanta ternura e piedade que ela se en¬vergonhara de recusar. Agora pesava-lhe no estôma¬go e dava-lhe uma tristeza de corpo que se juntava àquela outra tristeza — uma coisa imóvel atrás da cortina — com que dormira e acordara. — Essa areia afundando m...

A Hora da Estrela (trecho)

[...] Enfim o que fosse acontecer, aconteceria. E por enquanto nada acontecia, os dois não sabiam inventar acontecimentos. Sentavam-se no que é de graça: banco de praça pública. E ali acomodados, nada os distinguia do resto do nada. Para a grande glória de Deus. [...]

A Paixão Segundo G.H. (trecho)

Vou criar o que me aconteceu. Só porque viver não é relatável. Viver não é vivível. Terei que criar sobre a vida. E sem mentir. Criar sim, mentir não. Criar não é imaginação, é correr o grande risco de se ter a realidade. Entender é uma criação, meu único modo. Precisarei com esforço traduzir sinais de telégrafo - traduzir o desconhecido para uma língua que desconheço, e sem sequer entender para que valem os sinais. Falarei nessa linguagem sonâmbula que se eu estivesse acordada não seria linguagem. Até criar a verdade do que me aconteceu. Ah, será mais um grafismo que uma escrita, pois tento mais uma reprodução do que uma expressão. Cada vez preciso menos me exprimir. Também isto perdi? Não, mesmo quando eu fazia esculturas eu já tentava apenas reproduzir, e apenas com as mãos. Ficarei perdida entre a mudez dos sinais? Ficarei, pois sei como sou: nunca soube ver sem logo precisar mais do que ver. Sei que me horrorizarei como uma pessoa que fosse cega e enfim abrisse os olhos e enxergas...

Água Viva (6° Parte)

Sei história passada mas que se renova já. O ele contou-me que morou durante algum tempo com parte de sua família que vivia em pequena aldeia em um vale dos altos Pirineus nevados. No inverno os lobos esfaimados desciam das montanhas até a aldeia a farejar presa. Todos os habitantes se trancavam atentos em casa a abrigar na sala ovelhas e cavalos e cães e cabras, o calor humana e calor animal - todos alertamente a ouvir o arranhar das garras dos lobos nas portas cerradas. A escutar. A escutar. Estou melancólica. É de manhã. Mas conheço o segredo das manhãs puras. E descanso na melancolia. Sei da história de uma rosa. Parece-te estranho falar em rosa quando estou me ocupando com bichos? Mas ela agiu de um modo tal que lembra os mistérios animais. De dois em dois dias eu comprava uma rosa e colocava-a na água dentro da jarra feita especialmente para abrigar o longo talo de uma só flor. De dois em dois dias a rosa murchava e eu a trocava por outra. Até que houve determinada rosa. Cor-de-r...

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O Blog Clarice Lispector surgiu na quarta-feira, 3 de outubro de 2007, com a proposta de levar a obra de Clarice ao máximo de pessoas possíveis. Nesse pouco tempo o blog foi citado numa reportagem do Jornal Folha Online e na Rádio CBN . O blog atingiu 300.000 visitas e o que faz com que exista é saber que de alguma forma, contribui com os fãs da Clarice. Obrigado! Deixe um e-mail ao Blog Clarice Lispector. Quais escritos gostaria de ver aqui? Sugestões e mais. Endereço: Se preferir, deixe sua mensagem como comentário nessa página. Obrigado!

Imprensa

Fotobiografia celebra lado pop de Clarice Lispector Toda estrela que se preze já ganhou biografia não-autorizada ou álbum de fotos de sua carreira. Com Clarice Lispector (1920-1977) não poderia ser diferente. "Clarice - Fotobiografia" (Imprensa Oficial; R$ 90, 656 págs.), livro com 800 imagens, muitas delas inéditas, reforça o apelo extraliterário, o "star quality" da autora de "A Paixão Segundo G. H.", cujos traços singulares muitas vezes pareciam ecoar a estranheza de seus próprios livros. Reprodução Fotobiografia reforça sucesso de Clarice Lispector (foto) entre jovens Esse apelo é reconhecível sobretudo entre os jovens, cujo fascínio por Clarice tem um forte termômetro na internet. O site de relacionamentos Orkut, por exemplo, tem 103 comunidades dedicadas a Clarice. Ali, a escritora bate os poetas Carlos Drummond de Andrade (77) e Manuel Bandeira (58), com grupos chamados "Clarice Lispector sexy!" ("para quem acha Clarice a escritora m...

Cartas

Carta de Carlos Drummond de Andrade Carlos Drummond de Andrade Rio, 18.8.75 Clarice, querida: Ler ou reler você é sempre uma operação feliz: descobrem-se coisas, aprimora-se o conhecimento das descobertas. Senti isto percorrendo De corpo inteiro e Visão do esplendor. Obrigado, amiga! O abraço, a admiração, o carinho do Drummond ---------------------- Carta de Rubem Braga Rubem Braga Rio, 23 de maio de 1953 Clarice Felicidades para você, Maury, Pedro e Paulo, com saudações especiais para este, que é o motivo, ou pretexto, da carta. Nosso Comício, v. viu, morreu assim que Thereza Quadros partiu. Sem a influição sutil de sua presença na cidade, o pobre jornalzinho se foi. Não o choremos, que morreu como nasceu, muito vivo, desleixado, alegre, às vezes malcriado, no fundo talvez sério, em todo caso sempre livre. A gente que trabalhava aqui se espalhou, uma parte foi para a Manchete, que melhorou muito, outra parte foi fazer Flan, do Samuel Wainer, que deve sair esse mês. Meio desempregado...

Macacos

Da primeira vez que tivemos em casa um mico foi perto do Ano-Novo. Estávamos sem água e sem empregada, fazia-se fila para carne, o calor rebentara — e foi quando, muda de perplexidade, vi o presente entrar em casa, já comendo banana, já examinando tudo com grande rapidez e um longo rabo. Mais parecia um macacão ainda não crescido, suas potencialidades eram tremendas. Subia pela roupa estendida na corda, de onde dava gritos de marinheiro, e jogava cascas de banana onde caíssem. E eu exausta. Quando me esquecia e entrava distraída na área de serviço, o grande sobressalto: aquele homem alegre ali. Meu menino menor sabia, antes de eu saber, que eu me desfaria do gorila: "E se eu prometer que um dia o macaco vai adoecer e morrer, você deixa ele ficar? e se você soubesse que de qualquer jeito ele um dia vai cair da janela e morrer Iá embaixo?" Meus sentimentos desviavam o olhar. A inconsciência feliz e imunda do macacão-pequeno tornava-me responsável pelo seu destino, já que ele pr...

A Hora da Estrela (trecho)

Em todo caso o futuro parecia vir a ser muito melhor. Pelo menos o futuro tinha a vantagem de não ser o presente, sempre há um melhor para o ruim. Mas não havia nela miséria humana. É que tinha em si mesma uma certa flor fresca. Pois, por estranho que pareça, ela acreditava. Era apenas fina matéria orgânica. Existia. Só isto. E eu? De mim só se sabe que respiro. Embora só tivesse nela a pequena flama indispensável: um sopro de vida. [...] O que se segue é apenas uma tentativa de reproduzir três páginas que escrevi e que a minha cozinheira, vendo-as soltas, jogou no lixo para o meu desespero - que os mortos me ajudem a suportar o quase insuportável, já que de nada me valem os vivos. Nem de longe consegui " igualar a tentativa de repetição artificial do que originalmente eu escrevi sobre o encontro com o seu futuro namorado. É com humildemente que contarei agora a história da história. Portanto se me perguntarem como foi direi: não sei, perdi o encontro. [...]

Água Viva (5° Parte)

De mim no mundo quero te dizer da força que me guia e me traz o próprio mundo, da sensualidade vital de estruturas nítidas, e das curvas que são organicamente ligadas a outras formas curvas. Meu grafismo e minhas circunvoluções são potentes e a liberdade que sopra no verão tem a fatalidade em si mesma. O erotismo próprio do que é vivo está espalhado no ar, no mar, nas plantas, em nós, espalhado na veemência de minha voz, eu te escrevo com minha voz. E há um vigor de tronco robusto , de raízes entranhadas na terra viva que reage dando-lhes grandes alimentos. Respiro de noite a energia. E tudo isto no fantástico. Fantástico: o mundo por um instante é exatamente o que meu coração pede. Estou prestes a morrer-me e constituir novas composições. Estou me exprimindo muito mal e as palavras certas me escapam. Minha forma interna é finamente depurada e no entanto meu conjunto com o mundo tem a crueza nua dos sonhos livres e das grandes realidades. Não conheço a proibição. E minha própria força ...

O Passeio de Joana (trecho)

— Eu me distraio muito, disse Joana a Otávio. Assim como o espaço rodeado por quatro pa­redes tem um valor específico, provocado não tanto pelo fato de ser espaço mas pelo de estar rodeado por paredes. Otávio transformava-a em alguma coisa que não era ela mas ele mesmo e que Joana recebia por piedade de ambos, porque os dois eram incapa­zes de se libertar pelo amor, porque aceitava sucum­bida o próprio medo de sofrer, sua incapacidade de conduzir-se além da fronteira da revolta. E também: como ligar-se a um homem senão permitindo que ele a aprisione? como impedir que ele desenvolva sobre seu corpo e sua alma suas quatro paredes? E havia um meio de ter as coisas sem que as coisas a possuíssem? A tarde era nua e límpida, sem começo nem fim. Pássaros leves e negros voavam nítidos no ar puro, voavam sem que os homens os acompanhassem com um olhar sequer. Bem longe a montanha pairava grossa e fechada. Havia duas maneiras de olhá-la: imaginando que estava longe e era grande, em pri­meiro lug...

A Hora da Estrela (trecho)

Devo dizer que essa moça não tem consciência de mim, se tivesse teria para quem rezar e seria a salvação. Mas eu tenho plena consciência dela: através dessa jovem dou o meu grito de horror à vida. A vida que tanto amo. Volto à moça: o luxo que se dava era tomar um gole frio de café antes de dormir. Pagava o luxo tendo azia ao acordar. Ela era calada (por não ter o que dizer) mas gostava de ruídos. Eram vida. Enquanto o silêncio da noite assustava: parecia que estava prestes a dizer uma palavra fatal. Durante a noite na rua do Acre era raro passar um carro, quanto mais buzinassem; melhor para ela. Além desses medos, como se não bastassem, tinha medo grande de pegar doença ruim lá embaixo dela - isso, a tia lhe ensinara. Embora os seus pequenos óvulos tão murchos. Tão, tão. Mas vivia em tanta mesmice que de noite não se lembrava do que acontecera de manhã. Vagamente pensava de muito longe e sem palavras o seguinte: já que sou, o jeito é ser. [...]