A Quinta História

quinta-feira, maio 29, 2008

Esta história poderia chamar-se "As Estátuas". Outro nome possível é "O Assassinato". E também "Como Matar Baratas". Farei então pelo menos três histórias, verdadeiras, porque nenhuma delas mente a outra. Embora uma única, seriam mil e uma, se mil e uma noites me dessem.
A primeira, "Como Matar Baratas", começa assim: queixei-me de baratas. Uma senhora ouviu-me a queixa. Deu-me a receita de como matá-las. Que misturasse em partes iguais açúcar, farinha e gesso. A farinha e o açúcar as atrairiam, o gesso esturricaria o de dentro delas. Assim fiz. Morreram.
A outra história é a primeira mesmo e chama-se "O Assassinato". Começa assim: queixei-me de baratas. Uma senhora ouviu-me. Segue-se a receita. E então entra o assassinato. A verdade é que só em abstrato me havia queixado de baratas, que nem minhas eram: pertenciam ao andar térreo e escalavam os canos do edifício até o nosso lar. Só na hora de preparar a mistura é que elas se tornaram minhas também. Em nosso nome, então, comecei a medir e pesar ingredientes numa concentração um pouco mais intensa. Um vago rancor me tomara, um senso de ultraje. De dia as baratas eram invisíveis e ninguém acreditaria no mal secreto que roía casa tão tranqüila. Mas se elas, como os males secretos, dormiam de dia, ali estava eu a preparar-lhes o veneno da noite. Meticulosa, ardente, eu aviava o elixir da longa morte. Um medo excitado e meu próprio mal secreto me guiavam. Agora eu só queria gelidamente uma coisa: matar cada barata que existe. Baratas sobem pelos canos enquanto a gente, cansada, sonha. E eis que a receita estava pronta, tão branca. Como para baratas espertas como eu, espalhei habilmente o pó até que este mais parecia fazer parte da natureza. De minha cama, no silêncio do apartamento, eu as imaginava subindo uma a uma até a área de serviço onde o escuro dormia, só uma toalha alerta no varal. Acordei horas depois em sobressalto de atraso. Já era de madrugada. Atravessei a cozinha. No chão da área lá estavam elas, duras, grandes. Durante a noite eu matara. Em nosso nome, amanhecia. No morro um galo cantou.
A terceira história que ora se inicia é a das "Estátuas". Começa dizendo que eu me queixara de baratas. Depois vem a mesma senhora. Vai indo até o ponto em que, de madrugada, acordo e ainda sonolenta atravesso a cozinha. Mais sonolenta que eu está a área na sua perspectiva de ladrilhos. E na escuridão da aurora, um arroxeado que distancia tudo, distingo a meus pés sombras e brancuras: dezenas de estátuas se espalham rígidas. As baratas que haviam endurecido de dentro para fora. Algumas de barriga para cima. Outras no meio de um gesto que não se completaria jamais. Na boca de umas um pouco da comida branca. Sou a primeira testemunha do alvorecer em Pompéia. Sei como foi esta última noite, sei da orgia no escuro. Em algumas o gesso terá endurecido tão lentamente como num processo vital, e elas, com movimentos cada vez mais penosos, terão sofregamente intensificado as alegrias da noite, tentando fugir de dentro de si mesmas. Até que de pedra se tornam, em espanto de inocência, e com tal, tal olhar de censura magoada. Outras — subitamente assaltadas pelo próprio âmago, sem nem sequer ter tido a intuição de um molde interno que se petrificava! — essas de súbito se cristalizam, assim como a palavra é cortada da boca: eu te... Elas que, usando o nome de amor em vão, na noite de verão cantavam. Enquanto aquela ali, a de antena marrom suja de branco, terá adivinhado tarde demais que se mumificara exatamente por não ter sabido usar as coisas com a graça gratuita do em vão: "é que olhei demais para dentro de mim! é que olhei demais para dentro de..." — de minha fria altura de gente olho a derrocada de um mundo. Amanhece. Uma ou outra antena de barata morta freme seca à brisa. Da história anterior canta o galo.
A quarta narrativa inaugura nova era no lar. Começa como se sabe: queixei-me de baratas. Vai até o momento em que vejo os monumentos de gesso. Mortas, sim. Mas olho para os canos, por onde esta mesma noite renovar-se-á uma população lenta e viva em fila-indiana. Eu iria então renovar todas as noites o açúcar letal? como quem já não dorme sem a avidez de um rito. E todas as madrugadas me conduziria sonâmbula até o pavilhão? no vício de ir ao encontro das estátuas que minha noite suada erguia. Estremeci de mau prazer à visão daquela vida dupla de feiticeira. E estremeci também ao aviso do gesso que seca: o vício de viver que rebentaria meu molde interno. Áspero instante de escolha entre dois caminhos que, pensava eu, se dizem adeus, e certa de que qualquer escolha seria a do sacrifício: eu ou minha alma. Escolhi. E hoje ostento secretamente no coração uma placa de virtude: "Esta casa foi dedetizada".
A quinta história chama-se "Leibnitz e a Transcendência do Amor na Polinésia". Começa assim: queixei-me de baratas.

A Paixão Segundo G.H. (trecho)

quinta-feira, maio 29, 2008

No desmoronamento, toneladas caíram sobre toneladas. E quando eu, G.H. até nas valises, eu, uma das pessoas, abri os olhos, estava - não sobre escombros pois até os escombros já haviam sido deglutidos pelas areias - estava numa planície tranqüila, quilômetros e quilômetros abaixo do que fora uma grande cidade. As coisas haviam voltado a ser o que eram.
O mundo havia reivindicado a sua própria realidade, e, como depois de uma catástrofe, a minha civilização acabara: eu era apenas um dado histórico. Tudo em mim fora reivindicado pelo começo dos tempos e pelo meu próprio começo. Eu passara a um primeiro plano primário, estava no silêncio dos ventos e na era de estanho e cobre - na era primeira da vida.
Escuta, diante da barata viva, a pior descoberta foi a de que o mundo não é humano, e de que não somos humanos.
Não, não te assustes! certamente o que me havia salvo até aquele momento da vida sentimentizada de que eu vivia, é que o inumano é o melhor nosso, é a coisa, a parte coisa da gente. Só por isso é que, como pessoa falsa, eu não havia até então soçobrado sob a construção sentimentária e utilitária: meus sentimentos humanos eram utilitários, mas eu não tinha soçobrado porque a parte coisa, matéria do Deus, era forte demais e esperava para me reivindicar. O grande castigo neutro da vida geral é que ela de repente pode solapar uma vida; se não lhe for dada a força dela mesma, então ela rebenta como um dique rebenta - e vem pura, sem mistura nenhuma: puramente neutra. Aí estava o grande perigo: quando essa parte neutra de coisa não embebe uma vida pessoal, a vida vem toda puramente neutra.
Mas por que exatamente em mim fora repentinamente se refazer o primeiro silêncio? Como se uma mulher tranqüila tivesse simplesmente sido chamada e tranqüilamente largasse o bordado na cadeira, se erguesse, e sem uma palavra - abandonando sua vida, renegando bordado, amor e alma já feita - sem uma palavra essa mulher se pusesse calma mente de quatro, começasse a engatinhar e a se arrastar com olhos brilhantes e tranqüilos: é que a vida anterior a reclamara e ela fora.
Mas por que eu? Mas por que não eu. Se não tivesse sido eu, eu não saberia, e tendo sido eu, eu soube - apenas isso. O que é que me havia chamado: a loucura ou a realidade?
[...]

O Banho (trecho)

terça-feira, maio 27, 2008

[...] Antes estava fechada, opaca. Mas, quando me levan­tei, foi como se tivesse nascido da água. Saí molha­da, a roupa colada à pele, os cabelos brilhantes, sol­tos. Qualquer coisa agitava-se em mim e era certa­mente meu corpo apenas. Mas num doce milagre tudo se torna transparente e isso era certamente mi­nha alma também. Nesse instante eu estava verda­deiramente no meu interior e havia silêncio. Só que meu silêncio, compreendi, era um pedaço do silên­cio do campo. E eu não me sentia desamparada. O cavalo de onde eu caíra esperava-me junto ao rio. Montei-o e voei pelas encostas que a sombra já inva­dia e refrescava. Freei as rédeas, passei a mão pelo pescoço latejante e quente do animal. Continuei a passo lento, escutando dentro de mim a felicidade, alta e pura como um céu de verão. Alisei meus bra­ços, onde ainda escorria a água. Sentia o cavalo vivo perto de mim, uma continuação do meu corpo. Am­bos respirávamos palpitantes e novos. Uma cor maciamente sombria deitara-se sobre as campinas mor­nas do último sol e a brisa leve voava devagar. É preciso que eu não esqueça, pensei, que fui feliz, que estou sendo feliz mais do que se pode ser. Mas es­queci, sempre esqueci.
Eu estava sentada na Catedral, numa espera distraída e vaga. Respirava opressa o perfume roxo e frio das imagens. E, subitamente, antes que pu­desse compreender o que se passava, como um cataclisma, o órgão invisível desabrochou em sons cheios, trêmulos e puros. Sem melodia, quase sem música, quase apenas vibração. As paredes compridas e as altas abóbadas da igreja recebiam as notas e devol­viam-nas sonoras, nuas e intensas. Elas transpassavam-me, entrecruzavam-se dentro de mim, enchiam meus nervos de estremecimentos, meu cérebro de sons. Eu não pensava pensamentos, porém música. Insensivelmente, sob o peso do cântico, escorreguei do banco, ajoelhei-me sem rezar, aniquilada. O órgão emudeceu com a mesma subitaneidade com que ini­ciara, como uma inspiração. Continuei respirando baixinho, o corpo vibrando ainda aos últimos sons que restavam no ar num zumbido quente e translú­cido. E era tão perfeito o momento que eu nada te­mia nem agradecia e não caí na idéia de Deus. Que­ro morrer agora, gritava alguma coisa dentro de mim liberta, mais do que sofrendo. Qualquer ins­tante que sucedesse àquele seria mais baixo e vazio. Queria subir e só a morte, como um fim, me daria o auge sem a queda. As pessoas se levantavam ao meu redor, movimentavam-se. Ergui-me, caminhei para a saída, frágil e pálida.

A Paixão Segundo G.H. (trecho)

terça-feira, maio 27, 2008

Fechei os olhos, aguardando que a estranheza passasse, aguardando que meu arfar não fosse mais o daquele gemido que eu ouvira como vindo do fundo de uma cisterna seca e funda, assim como a barata era bicho de cisterna seca. Eu ainda continuava a sentir, incalculavelmente longínquo em mim, o gemido que já não me chegava mais à garganta.
Isto é a loucura, pensei de olhos fechados. Mas era tão inegável sentir aquele nascimento de dentro da poeira - que eu não podia senão seguir aquilo que eu bem sabia que não era loucura, era, meu Deus, uma verdade pior, a horrível. Mas horrível por quê? É que ela contrariava sem palavras tudo o que antes eu costumava pensar também sem palavras.
Aguardei que a estranheza passasse, que a saúde voltasse. Mas reconhecia, num esforço imemorial de memória, que já havia sentido essa estranheza: era a mesma que eu experimentava quando via fora de mim o meu próprio sangue, e eu o estranhava. Pois o sangue que eu via fora de mim, aquele sangue eu o estranhava com atração: ele era meu.
[...]

A Paixão Segundo G.H. (trecho)

terça-feira, maio 27, 2008

Eu tinha agora uma sensação de irremediável. E já sabia que embora absurdamente, eu só teria ainda chance de sair dali se encarasse frontal e absurdamente que alguma coisa estava sendo irremediável. Eu sabia que tinha de admitir o perigo em que eu estava, mesmo consciente de que era loucura acreditar num perigo inteiramente inexistente. Mas eu tinha de acreditar em mim - a vida toda eu estivera como todo o mundo em perigo - mas agora, para poder sair, eu tinha a responsabilidade alucinada de ter de saber disso.
Na minha clausura entre a porta do armário e o pé da cama, eu ainda não tentara de novo mover os pés para sair, mas recuara o dorso para trás como, se mesmo na sua extrema lentidão, a barata pudesse dar um bote - eu já havia visto as baratas que de súbito voam, a fauna alada.
Fiquei imóvel, calculando desordenadamente. Estava atenta, eu estava toda atenta. Em mim um sentimento de grande espera havia crescido, e uma resignação surpreendida: é que nesta espera atenta eu reconhecia todas as minhas esperas anteriores, eu reconhecia a atenção de que também antes vivera, a atenção que nunca me abandona e que em última análise talvez seja a coisa mais colada à minha vida - quem sabe aquela atenção era a minha própria vida. Também a barata: qual é o único sentimento de uma barata? a atenção de viver, inextricável de seu corpo. Em mim, tudo o que eu superpusera ao inextricável de mim, provavelmente jamais chegara a abafar a atenção que, mais que atenção à vida, era o próprio processo de vida em mim.
Foi então que a barata começou a emergir do fundo.Antes o tremor anunciante das antenas.
Depois, atrás dos fios secos, o corpo relutante foi aparecendo. Até chegar quase toda à tona da abertura do armário.
[...]

A Paixão Segundo G.H. (trecho)

domingo, maio 25, 2008

Pela lentidão e grossura, era uma barata muito velha. No meu arcaico horror por baratas eu aprendera a adivinhar, mesmo à distância, suas idades e perigos; mesmo sem nunca ter realmente encarado uma barata eu conhecia os seus processos de existência.
Só que ter descoberto súbita vida na nudez do quarto me assustara como se eu descobrisse que o quarto morto era na verdade potente. Tudo ali havia secado - mas restara uma barata. Uma barata tão velha que era imemorial. O que sempre me repugnara em baratas é que elas eram obsoletas e no entanto atuais. Saber que elas já estavam na Terra, e iguais a hoje, antes mesmo que tivessem aparecido os primeiros dinossauros, saber que o primeiro homem surgido já as havia encontrado proliferadas e se arrastando vivas, saber que elas haviam testemunhado a formação das grandes jazidas de petróleo e carvão no mundo, e lá estavam durante o grande avanço e depois durante o grande recuo das geleiras - a resistência pacífica. Eu sabia que baratas resistiam a mais de um mês sem alimento ou água. E que até de madeira faziam substância nutritiva aproveitável. E que, mesmo depois de pisadas, descomprimiam-se lentamente e continuavam a andar. Mesmo congeladas, ao degelarem, prosseguiam na marcha... Há trezentos e cinqüenta milhões de anos elas se repetiam sem se transformarem. Quando o mundo era quase nu elas já o cobriam vagarosas.
Como ali, no quarto nu e esturricado, a gota virulenta: numa limpa proveta de ensaio uma gota de matéria.
[...]

Evolução de Uma Miopia

domingo, maio 25, 2008

Se era inteligente, não sabia. Ser ou não inteligente dependia da instabilidade dos outros. Às vezes o que ele dizia despertava de repente nos adultos um olhar satisfeito e astuto. Satisfeito, por guardarem em segredo o fato de acharem-no inteligente e não o mimarem; astuto, por participarem mais do que ele próprio daquilo que ele dissera. Assim, pois, quando era considerado inteligente, tinha ao mesmo tempo a inquieta sensação de inconsciência: alguma coisa lhe havia escapado. A chave de sua inteligência também lhe escapava. Pois às vezes, procurando imitara si mesmo, dizia coisas que iriam certamente provocar de novo o rápido movimento no tabuleiro de damas, pois era esta a impressão de mecanismo automático que ele tinha dos membros de sua família: ao dizer alguma coisa inteligente, cada adulto olharia rapidamente o outro, com um sorriso claramente suprimido dos lábios, um sorriso apenas indicado com os olhos, "como nós sorriríamos agora, se não fôssemos bons educadores" — e, como numa quadrilha de dança de filme de faroeste, cada um teria de algum modo trocado de par e lugar. Em suma, eles se entendiam, os membros de sua família; e entendiam-se à sua custa. Fora de se entenderem à sua custa, desentendiam-se permanentemente, mas como nova forma de dançar uma quadrilha: mesmo quando se desentendiam, sentia que eles estavam submissos às regras de um jogo, como se tivessem concordado em se desentenderem.
Às vezes, pois, ele tentava reproduzir suas próprias frases de sucesso, as que haviam provocado movimento no tabuleiro de damas. Não era propriamente para reproduzir o sucesso passado, nem propriamente para provocar o movimento mudo da família. Mas para tentar apoderar-se da chave de sua "inteligência". Na tentativa de descoberta de leis e causas, porém, falhava. E, ao repetir uma frase de sucesso, dessa vez era recebido pela distração dos outros. Com os olhos pestanejando de curiosidade, no começo de sua miopia, ele se indagava por que uma vez conseguia mover a família, e outra vez não. Sua inteligência era julgada pela falta de disciplina alheia?
Mais tarde, quando substituiu a instabilidade dos outros pela própria, entrou por um estado de instabilidade consciente. Quando homem, manteve o hábito de pestanejar de repente ao próprio pensamento, ao mesmo tempo que franzia o nariz, o que deslocava os óculos — exprimindo com esse cacoete uma tentativa de substituir o julgamento alheio pelo próprio, numa tentativa de aprofundar a própria perplexidade. Mas era um menino com capacidade de estática: sempre fora capaz de manter a perplexidade como perplexidade, sem que ela se transformasse em outro sentimento.
Que a sua própria chave não estava com ele, a isso ainda menino habituou-se a saber, e dava piscadelas que, ao franzirem o nariz, deslocavam os óculos. E que a chave não estava com ninguém, isso ele foi aos poucos adivinhando sem nenhuma desilusão, sua tranqüila miopia exigindo lentes cada vez mais fortes.
Por estranho que parecesse, foi exatamente por intermédio desse estado de permanente incerteza e por intermédio da prematura aceitação de que a chave não está com ninguém — foi através disso tudo que ele foi crescendo normalmente, e vivendo em serena curiosidade. Paciente e curioso. Um pouco nervoso, diziam, referindo-se ao tique dos óculos. Mas "nervoso" era o nome que a família estava dando à instabilidade de julgamento da própria família. Outro nome que a instabilidade dos adultos lhe dava era o de "bem comportado", de "dócil". Dando assim um nome não ao que ele era, mas à necessidade variável dos momentos.
Uma vez ou outra, na sua extraordinária calma de óculos, acontecia dentro dele algo brilhante e um pouco convulsivo como uma inspiração.
Foi, por exemplo, quando lhe disseram que daí a uma semana ele iria passar um dia inteiro na casa de uma prima. Essa prima era casada, não tinha filhos e adorava crianças. "Dia inteiro" incluía almoço, merenda, jantar, e voltar quase adormecido para casa. E quanto à prima, a prima significava amor extra, com suas inesperadas vantagens e uma incalculável pressurosidade — e tudo isso daria margem a que pedidos extraordinários fossem atendidos. Na casa dela, tudo aquilo que ele era teria por um dia inteiro um valor garantido. Ali o amor, mais facilmente estável de apenas um dia, não daria oportunidade a instabilidades de julgamento: durante um dia inteiro, ele seria julgado o mesmo menino.
Na semana que precedeu "o dia inteiro", começou por tentar decidir se seria ou não natural com a prima. Procurava decidir se logo de entrada diria alguma coisa inteligente — o que resultaria que durante o dia inteiro ele seria julgado como inteligente. Ou se faria, logo de entrada, algo que ela julgasse "bem comportado", o que faria com que durante o dia inteiro ele seria o bem comportado. Ter a possibilidade de escolher o que seria, e pela primeira vez por um longo dia, fazia-o endireitar os óculos a cada instante.
Aos poucos, durante a semana precedente, o círculo de possibilidades foi se alargando. E, com a capacidade que tinha de suportar a confusão — ele era minucioso e calmo em relação à confusão — terminou descobrindo que até poderia arbitrariamente decidir ser por um dia inteiro um palhaço, por exemplo. Ou que poderia passar esse dia de um modo bem triste, se assim resolvesse. O que o tranqüilizava era saber que a prima, com seu amor sem filhos e sobretudo com a falta de prática de lidar com crianças, aceitaria o modo que ele decidisse de como ela o julgaria. Outra coisa que o ajudava era saber que nada do que ele fosse durante aquele dia iria realmente alterá-lo. Pois prematuramente — tratava-se de criança precoce — era superior à instabilidade alheia e à própria instabilidade. De algum modo pairava acima da própria miopia e da dos outros. O que lhe dava muita liberdade. Às vezes apenas a liberdade de uma incredulidade tranqüila. Mesmo quando se tornou homem, com lentes espessíssimas, nunca chegou a tomar consciência dessa espécie de superioridade que tinha sobre si mesmo.
A semana precedente à visita à prima foi de antecipação contínua. Às vezes seu estômago se apertava apreensivo: é que naquela casa sem meninos ele estaria totalmente à mercê do amor sem seleção de uma mulher. "Amor sem seleção" representava uma estabilidade ameaçadora: seria permanente, e na certa resultaria num único modo de julgar, e isso era a estabilidade. A estabilidade, já então, significava para ele um perigo: se os outros errassem no primeiro passo da estabilidade, o erro se tornaria permanente, sem a vantagem da instabilidade, que é a de uma correção possível.
Outra coisa que o preocupava de antemão era o que faria o dia inteiro na casa da prima, além de comer e ser amado. Bem, sempre haveria a solução de poder de vez em quando ir ao banheiro, o que faria o tempo passar mais depressa. Mas, com a prática de ser amado, já de antemão o constrangia que a prima, uma estranha para ele, encarasse com infinito carinho as suas idas ao banheiro. De um modo geral o mecanismo de sua vida se tornara motivo de ternura. Bem, era também verdade que, quanto a ir ao banheiro, a solução podia ser a de não ir nenhuma vez ao banheiro. Mas não só seria, durante um dia inteiro, irrealizável como — como ele não queria ser julgado "um menino que não vai ao banheiro" — isso também não apresentava vantagem. Sua prima, estabilizada pela permanente vontade de ter filhos, teria, na não ida ao banheiro, uma pista falsa de grande amor.
Durante a semana que precedeu "o dia inteiro", não é que ele sofresse com as próprias tergiversações. Pois o passo que muitos não chegam a dar ele já havia dado: aceitara a incerteza, e lidava com os componentes da incerteza com uma concentração de quem examina através das lentes de um microscópio.
À medida que, durante a semana, as inspirações ligeiramente convulsivas se sucediam, elas foram gradualmente mudando de nível. Abandonou o problema de decidir que elementos daria à prima para que ela por sua vez lhe desse temporariamente a certeza de "quem ele era". Abandonou essas cogitações e passou a previamente querer decidir sobre o cheiro da casa da prima, sobre o tamanho do pequeno quintal onde brincaria, sobre as gavetas que abriria enquanto ela não visse. E finalmente entrou no campo da prima propriamente dita. De que modo devia encarar o amor que a prima tinha por ele?
No entanto, negligenciara um detalhe: a prima tinha um dente de ouro, do lado esquerdo.
E foi isso — ao finalmente entrar na casa da prima — foi isso que num só instante desequilibrou toda a construção antecipada.
O resto do dia poderia ter sido chamado de horrível, se o menino tivesse a tendência de pôr as coisas em termos de horrível ou não horrível. Ou poderia se chamar de "deslumbrante", se ele fosse daqueles que esperam que as coisas o sejam ou não.
Houve o dente de ouro, com o qual ele não havia contado. Mas, com a segurança que ele encontrava na idéia de uma imprevisibilidade permanente, tanto que até usava óculos, não se tornou inseguro pelo fato de encontrar logo de início algo com que não contara.
Em seguida a surpresa do amor da prima. É que o amor da prima não começou por ser evidente, ao contrário do que ele imaginara. Ela o recebera com uma naturalidade que inicialmente o insultara, mas logo depois não o insultara mais. Ela foi logo dizendo que ia arrumar a casa que ele podia ir brincando. O que deu ao menino, assim de chofre, um dia inteiro vazio e cheio de sol.
Lá pelas tantas, limpando os óculos, tentou, embora com certa isenção, o golpe da inteligência e fez uma observação sobre as plantas do quintal. Pois quando ele dizia alto uma observação, ele era julgado muito observador. Mas sua fria observação sobre as plantas recebeu em resposta um "pois é", entre vassouradas no chão. Então foi ao banheiro onde resolveu que, já que tudo falhara, ele iria brincar de "não ser julgado": por um dia inteiro ele não seria nada, simplesmente não seria. E abriu a porta num safanão de liberdade.
Mas à medida que o sol subia, a pressão delicada do amor da prima foi se fazendo sentir. E quando ele se deu conta, era um amado. Na hora do almoço, a comida foi puro amor errado e estável: sob os olhos ternos da prima, ele se adaptou com curiosidade ao gosto estranho daquela comida, talvez marca de azeite diferente, adaptou-se ao amor de uma mulher, amor novo que não parecia com o amor dos outros adultos: era um amor pedindo realização, pois faltava à prima a gravidez, que já é em si um amor materno realizado. Mas era um amor sem a prévia gravidez. Era um amor pedindo, a posteriori, a concepção. Enfim, o amor impossível.
O dia inteiro o amor exigindo um passado que redimisse o presente e o futuro. O dia inteiro, sem uma palavra, ela exigindo dele que ele tivesse nascido no ventre dela. A prima não queria nada dele, senão isso. Ela queria do menino de óculos que ela não fosse uma mulher sem filhos. Nesse dia, pois, ele conheceu uma das raras formas de estabilidade: a estabilidade do desejo irrealizável. A estabilidade do ideal inatingível. Pela primeira vez, ele, que era um ser votado à moderação, pela primeira vez sentiu-se atraído pelo imoderado: atração pelo extremo impossível. Numa palavra, pelo impossível. E pela primeira vez teve então amor pela paixão.
E foi como se a miopia passasse e ele visse claramente o mundo. O relance mais profundo e simples que teve da espécie de universo em que vivia e onde viveria. Não um relance de pensamento. Foi apenas como se ele tivesse tirado os óculos, e a miopia mesmo é que o fizesse enxergar. Talvez tenha sido a partir de então que pegou um hábito para o resto da vida: cada vez que a confusão aumentava e ele enxergava pouco, tirava os óculos sob o pretexto de limpá-los e, sem óculos, fitava o interlocutor com uma fixidez reverberada de cego.

A Solução

domingo, maio 25, 2008

Chamava-se Almira e engordara demais. Alice era a sua maior amiga. Pelo menos era o que dizia a todos com aflição, querendo compensar com a própria veemência a falta de amizade que a outra lhe dedicava.
Alice era pensativa e sorria sem ouvi-la, continuando a batera máquina.
À medida que a amizade de Alice não existia, a amizade de Almira mais crescia.
Alice era de rosto oval e aveludado. O nariz de Almira brilhava sempre. Havia no rosto de Almira uma avidez que nunca lhe ocorrera disfarçar: a mesma que tinha por comida, seu contato mais direto com o mundo.
Por que Alice tolerava Almira, ninguém entendia. Ambas eram datilógrafas e colegas, o que não explicava. Ambas lanchavam juntas, o que não explicava. Saíam do escritório à mesma hora e esperavam condução na mesma fila. Almira sempre pajeando Alice. Esta, distante e sonhadora, deixando-se adorar. Alice era pequena e delicada. Almira tinha o rosto muito largo, amarelado e brilhante: com ela o batom não durava nos lábios, ela era das que comem o batom sem querer.
Gostei tanto do programa da Rádio Ministério da Educação, dizia Almira procurando de algum modo agradar. Mas Alice recebia tudo como se lhe fosse devido, inclusive a ópera do Ministério da Educação.
Só a natureza de Almira era delicada. Com todo aquele corpanzil, podia perder uma noite de sono por ter dito uma palavra menos bem dita. E um pedaço de chocolate podia de repente ficar-lhe amargo na boca ao pensamento de que fora injusta. O que nunca lhe faltava era chocolate na bolsa, e sustos pelo que pudesse ter feito. Não por bondade. Eram talvez nervos frouxos num corpo frouxo.
Na manhã do dia em que aconteceu, Almira saiu para o trabalho correndo, ainda mastigando um pedaço de pão. Quando chegou ao escritório, olhou para a mesa de Alice e não a viu. Uma hora depois esta aparecia de olhos vermelhos. Não quis explicar nem respondeu às perguntas nervosas de Almira. Almira quase chorava sobre a máquina.
Afinal, na hora do almoço, implorou a Alice que aceitasse almoçarem juntas, ela pagaria.
Foi exatamente durante o almoço que se deu o fato.
Almira continuava a querer saber por que Alice viera atrasada e de olhos vermelhos. Abatida, Alice mal respondia. Almira comia com avidez e insistia com os olhos cheios de lágrimas.
— Sua gorda! disse Alice de repente, branca de raiva. Você não pode me deixarem paz?!
Almira engasgou-se com a comida, quis falar, começou a gaguejar. Dos lábios macios de Alice haviam saído palavras que não conseguiam descer com a comida pela garganta de Almira G. de Almeida.
— Você é uma chata e uma intrometida, rebentou de novo Alice. Quer saber o que houve, não é? Pois vou lhe contar, sua chata: é que Zequinha foi embora para Porto Alegre e não vai mais voltar! Agora está contente, sua gorda?
Na verdade Almira parecia ter engordado mais nos últimos momentos, e com comida ainda parada na boca.
Foi então que Almira começou a despertar. E, como se fosse uma magra, pegou o garfo e enfiou-o no pescoço de Alice. O restaurante, ao que se disse no jornal, levantou-se como uma só pessoa. Mas a gorda, mesmo depois de feito o gesto, continuou sentada olhando para o chão, sem ao menos olhar o sangue da outra.
Alice foi ao Pronto-Socorro, de onde saiu com curativos e os olhos ainda arregalados de espanto. Almira foi presa em flagrante.
Algumas pessoas observadoras disseram que naquela amizade bem que havia dente-de-coelho. Outras, amigas da família, contaram que a avó de Almira, dona Altamiranda, fora mulher muito esquisita. Ninguém se lembrou de que os elefantes, de acordo com os estudiosos do assunto, são criaturas extremamente sensíveis, mesmo nas grossas patas.
Na prisão Almira comportou-se com docilidade e alegria, talvez melancólica, mas alegria mesmo. Fazia graças para as companheiras. Finalmente tinha companheiras. Ficou encarregada da roupa suja, e dava-se muito bem com as guardiãs, que vez por outra lhe arranjavam uma barra de chocolate. Exatamente como para um elefante no circo.

A Hora da Estrela (trecho)

quinta-feira, maio 22, 2008

[...]
Silêncio.
Se um dia Deus vier à terra haverá silêncio grande.
O silêncio é tal que nem o pensamento pensa. O final foi bastante grandiloqüente para a vossa necessidade? Morrendo ela virou ar: Ar enérgico? Não sei. Morreu em um instante. O instante é aquele átimo de tempo em que o . pneu do carro correndo em alta velocidade toca no chão e depois não toca mais e depois toca de novo. Etc., etc., etc. No fundo ela não passara de uma caixinha de música meio desafinada.
Eu vos pergunto:
- Qual é o peso da luz?

E agora - agora só me resta acender um cigarro e ir para casa. Meu Deus, só agora me lembrei que a gente morre. Mas - mas eu também?!
Não esquecer que por enquanto é tempo de morangos.
Sim.



***

A Hora da Estrela (trecho)

quinta-feira, maio 22, 2008

[...]
Quanto a mim, só sou verdadeiro quando estou sozinho. Quando eu era pequeno pensava que de um momento para outro eu cairia para fora do mundo. Por que as nuvens não caem, já que tudo cai? É que a gravidade é menor que a força do ar que as levanta.
Inteligente, não é? Sim, mas caem um dia em chuva.  a minha vingança.
[...]
Preste atenção, minha flor, porque é de maior importância o que vou lhe dizer. É coisa muito séria e
muito alegre: sua vida vai mudar completamente! E digo mais a partir do momento em que você vai voltar e propor casamento, ele está arrependido! E seu chefe vai lhe avisar que pensou melhor e não vai mais lhe despedir.

A Hora da Estrela (trecho)

quinta-feira, maio 22, 2008

Um dia teve um êxtase. Foi diante de uma árvore tão grande que no tronco ela nunca poderia abraça-la. Mas apesar do êxtase ela não morava com Deus. Rezava indiferentemente. Sim. Mas o misterioso Deus dos outros lhe dava às vezes um estado de graça. Feliz, feliz, feliz. Ela de :.alma quase. voando. E também vira o disco-voador. Tentara contar a Glória mas não tivera jeito, não sabia falar e mesmo contar o quê? O ar? Náo se conta tudo porque o tudo é um oco nada. As vezes a graça a pegava em pleno escritório. Então ela ia ao banheiro para ficar sozinha.
[...]
- Eu sou sozinha no mundo e não acredito em ninguém; todos mentem, às vezes até na hora do amor, eu não acho que um ser fale com o outro, a verdade só me vem quando estou sozinha.

A Paixão Segundo G.H. (trecho)

quinta-feira, maio 22, 2008

Os traços - descobri sem prazer - eram traços de rainha. E também a postura: o corpo ereto, delgado, duro, liso, quase sem carne, ausência de seios e de ancas. E sua roupa? Não era de surpreender que eu a tivesse usado como se ela não tivesse presença: sob o pequeno avental, vestia-se sempre de marrom escuro ou de preto, o que a tornava toda escura e invisível - arrepiei-me ao descobrir que até agora eu não havia percebido que aquela mulher era uma invisível. Janair tinha quase que apenas a forma exterior, os traços que ficavam dentro de sua forma eram tão apurados que mal existiam: ela era achatada como um baixo-relevo preso a uma tábua.
E fatalmente, assim como ela era, assim deveria ter me visto? Abstraindo daquele meu corpo desenhado na parede tudo o que não era essencial, e também de mim só vendo o contorno. No entanto, curiosamente, a figura na parede lembrava-me alguém, que era eu mesma. Coagida com a presença que Janair deixara de si mesma num quarto de minha casa, eu percebia que as três figuras angulares de zumbis haviam de fato retardado minha entrada como se o quarto ainda estivesse ocupado.
[...]

Água Viva (Parte Final)

domingo, maio 18, 2008

E há uma bem-aventurança física que a nada se compara. O corpo se transforma em um dom. E se sente que é um dom porque se está se experimentando, em fonte direta, a dádiva de repente indubitável de existir milagrosamente e materialmente.
Tudo ganha uma espécie de nimbo que não é imaginário: vem do esplendor da irradiação matemática das coisas e da lembrança de pessoas. Passa-se a sentir que tudo que existe respira e exala um finíssimo esplendor de energia. A verdade do mundo, porém, é impalpável.
Não é nem de longe o que mal imagino deve ser o estado de graça dos santos. Este estado jamais conheci e nem sequer consigo adivinhá-lo. É apenas a graça de uma pessoa comum que a torna de súbito real porque é comum e humana e reconhecível.
As descobertas nesse sentido são indizíveis e incomunicáveis. E impensáveis. É por isso que na graça eu me mantive sentada, quieta, silenciosa. E como em uma anunciação. Não sendo porém precedida por anjos. Mas é como se o anjo da vida viesse me anunciar o mundo.
Depois lentamente saí. Não como se estivesse estado em transe - não há nenhum transe - sai-se devagar, com um suspiro de quem teve tudo como o tudo que é. Também já é um suspiro de saudade. pois tendo experimentado ganhar um corpo e uma alma, quer-se mais e mais. Inútil querer: só vem quando quer e espontaneamente.
Essa felicidade eu quis tornar eterna por intermédio da objetivação da palavra. fui logo depois procurar no dicionário a palavra beatitude que detesto como palavra e vi que quer dizer gozo da alma. Fala em felicidade tranqüila - eu chamaria porém de transporte ou de levitação. Também não gosto da continuação no dicionário que dia: "de quem se absorve em contemplação mística". Não é verdade: eu não estava de modo algum em meditação, não houve em mim nenhuma religiosidade. Tinha acabado de tomar café e estava simplesmente vivendo ali sentada com um cigarro queimando-se no cinzeiro.
[...]
E eis que depois de uma tarde de "quem sou eu" e de acordar à uma hora da madrugada ainda em desespero - eis que às três horas da madrugada acordei e me encontrei. Fui ao encontro de mim. Calma, alegre, plenitude sem fulminação. Simplesmente eu sou eu. e você é você. É vasto, vai durar.
O que te escrevo é um "isto". Não vai parar: continua.
Olha para mim e me ama. Não: tu olhas para ti e te amas. É o que está certo.
O que te escrevo continua e estou enfeitiçada.

***

Água Viva (8° Parte)

domingo, maio 18, 2008

[...]
Estou te falando em abstrato e pergunto-me: sou uma ária cantabile? Não, não se pode cantar o que te escrevo. Por que não abordo um tema que facilmente poderia descobrir? mas não: caminho encostada à parede, escamoteio a melodia descoberta, ando na sombra, nesse lugar onde tantas coisas acontecem. Às vezes escorro pelo muro, em lugar onde nunca bate sol. Meu amadurecimento de um tema já seria uma ária cantabile - outra pessoa que faça então outra música - a música do amadurecimento do meu quarteto. Este é antes do amadurecimento. A melodia seria o fato. Mas que fato tem uma noite que se passa inteira em um atalho onde não tem ninguém e enquanto dormimos sem saber de nada? Onde está o fato? Minha história é de uma escuridão tranqüila, de raiz adormecida na sua força, de odor que não tem perfume. E em nada disso existe o abstrato. É o figurativo do inominável. Quase não existe carne nesse meu quarteto. Pena que a palavra "nervos" esteja ligada a vibrações dolorosas, senão seria um quarteto de nervos. Cordas escuras que, tocadas, não falam sobre "outras coisas", não mudam de assunto - são em si e de si, entregam-se iguais como são, sem mentira nem fantasia. [...]

Água Viva (7° Parte)

domingo, maio 18, 2008

[...]
Agora estou com medo. Porque vou te dizer uma coisa. Espere que o medo passe.
Passou. É o seguinte: a dissonância me é harmoniosa. A melodia por vezes me cansa. E também o chamado "leit-motit". Quero na música e no que te escrevo e no que pinto, quero traços geométricos que se cruzam no ar e formam uma desarmonia que eu entendo. É puro it. Meu ser se embebe todo e levemente se embriaga. Isto que estou te escrevendo é muito importante. E eu trabalho quando durmo: porque é então que me movo no mistério.
Hoje é domingo de manhã. Neste domingo de sol e de Júpiter estou sozinha em casa. Dobrei-me de repente em dois e para frente como em profunda dor de parto - e vi que a menina em mim morria. Nunca esquecerei este domingo sangrento. Para cicatrizar levará tempo. E eis-me aqui dura e silenciosa e heróica. Sem menina dentro de mim. Todas as vidas são vidas heróicas.
A criação me escapa. E nem quero saber tanto. Basta-me que meu coração bata no peito. Basta-me o impossível vivo do it.
Sinto agora mesmo o coração batendo desordenadamente dentro do peito. E a reivindicação porque nas últimas frases andei pensando somente à tona de mim. Então o fundo da existência se manifesta para banhar e apagar os traços do pensamento. O mar apaga os traços das ondas na areia. Oh Deus, como estou sendo feliz. O que estraga a felicidade é o medo.
Fico com medo. Mas o coração bate. O amor inexplicável faz o coração bater mais depressa. A garantia única é que eu nasci. Tu és uma forma de ser eu, e eu uma forma de te ser: eis os limites de minha possibilidade. [...]

A Hora da Estrela (trecho)

sábado, maio 17, 2008

Esqueci de dizer que era realmente de se espantar que para corpo quase murcho de Macabéa tão vasto fosse o seu sopro de vida quase ilimitado e tão rico como o de uma donzela grávida, engravidada por si mesma, por partenogênese; tinha sonhos esquizóides nos quais apareciam gigantescos animais antediluvianos como se ela tivesse vivido em épocas as mais remotas desta terra sangrenta. Foi então (explosão) que se desmanchou de repente o namoro entre Olímpico e Macabéa. Namoro talvez esquisito mas pelo menos parente de algum amor pálido. Ele avisou-lhe que encontrara outra moça é que esta era Glória. (Explosão) Macabéa bem viu o que aconteceu com Olímpico e Glória: os olhos de ambos se haviam beijado. [...]

Alegrias de Joana (trecho)

sábado, maio 17, 2008

A LIBERDADE QUE Às VEZES sentia não vinha de re¬flexões nítidas, mas de um estado como feito de per¬cepções por demais orgânicas para serem formula¬das em pensamentos. Às vezes no fundo da sensação tremulava uma idéia que lhe dava leve consciência de sua espécie e de sua cor.
O estado para onde deslizava quando murmu¬rava: eternidade. O próprio pensamento adquiria uma qualidade de eternidade. Aprofundava-se magicamente e alargava-se, sem propriamente um conteú¬do e uma forma, mas sem dimensões também. A im¬pressão de que se conseguisse manter-se na sensação por mais uns instantes teria uma revelação — facil¬mente, como enxergar o resto do mundo apenas inclinando-se da terra para o espaço. Eternidade não era só o tempo, mas algo como a certeza enraizada-mente profunda de não poder contê-lo no corpo por causa da morte; a impossibilidade de ultrapassar a eternidade era eternidade; e também era eterno um sentimento em pureza absoluta, quase abstrato. So¬bretudo dava idéia de eternidade a impossibilidade de saber quantos seres humanos se sucederiam após seu corpo, que um dia estaria distante do presente com a velocidade de um bólido.
Definia eternidade e as explicações nasciam fa¬tais como as pancadas do coração. Delas não muda¬ria um termo sequer, de tal modo eram sua verdade. Porém mal brotavam, tornavam-se vazias logicamente. Definir a eternidade como uma quantidade maior que o tempo e maior mesmo do que o tempo que a mente humana pode suportar em idéia também não permitiria, ainda assim, alcançar sua duração. Sua qualidade era exatamente não ter quantidade, não ser mensurável e divisível porque tudo o que se po¬dia medir e dividir tinha um princípio e um fim. Eternidade não era a quantidade infinitamente gran¬de que se desgastava, mas eternidade era a sucessão.
Então Joana compreendia subitamente que na sucessão encontrava-se o máximo de beleza, que o movimento explicava a forma — era tão alto e puro gritar: o movimento explica a forma! — e na su¬cessão também se encontrava a dor porque o corpo era mais lento que o movimento de continuidade ininterrupta. A imaginação apreendia e possuía o futuro do presente, enquanto o corpo restava no co¬meço do caminho, vivendo em outro ritmo, cego à experiência do espírito... Através dessas percep¬ções — por meio delas Joana fazia existir alguma coisa — ela se comunicava a uma alegria suficiente em si mesma.
[...]

Viagem a Petrópolis

sábado, maio 17, 2008

Era uma velha sequinha que, doce e obstinada, não parecia compreender que estava só no mundo. Os olhos lacrimejavam sempre, as mãos repousavam sobre o vestido preto e opaco, velho documento de sua vida. No tecido já endurecido encontravam-se pequenas crostas de pão coladas pela baba que lhe ressurgia agora em lembrança do berço. Lá estava uma nódoa amarelada, de um ovo que comera há duas semanas. E as marcas dos lugares onde dormia. Achava sempre onde dormir, casa de um, casa de outro. Quando lhe perguntavam o nome, dizia com a voz purificada pela fraqueza e por longuíssimos anos de boa educação:
— Mocinha.
As pessoas sorriam. Contente pelo interesse despertado, explicava:
— Nome, nome mesmo, é Margarida.
O corpo era pequeno, escuro, embora ela tivesse sido alta e clara. Tivera pai, mãe, marido, dois filhos. Todos aos poucos tinham morrido. Só ela restara com os olhos sujos e expectantes quase cobertos por um tênue veludo branco. Quando lhe davam alguma esmola davam-lhe pouca, pois ela era pequena e realmente não precisava comer muito. Quando lhe davam cama para dormir davam-na estreita e dura porque Margarida fora aos poucos perdendo volume. Ela também não agradecia muito: sorria e balançava a cabeça.
Dormia agora, não se sabia mais por que motivo, no quarto dos fundos de uma casa grande, numa rua larga cheia de árvores, em Botafogo. A família achava graça em Mocinha mas esquecia-se dela a maior parte do tempo. É que também se tratava de uma velha misteriosa. Levantava-se de madrugada, arrumava sua cama de anão e disparava lépida como se a casa estivesse pegando fogo. Ninguém sabia por onde andava. Um dia uma das moças da casa perguntou-lhe o que andava fazendo. Respondeu com um sorriso gentil:
— Passeando.
Acharam graça que uma velha, vivendo de caridade, andasse a passear. Mas era verdade. Mocinha nascera no Maranhão, onde sempre vivera. Viera para o Rio não há muito, com uma senhora muito boa que pretendia interná-la num asilo, mas depois não pudera ser: a senhora viajara para Minas e dera algum dinheiro para Mocinha se arrumar no Rio. E a velha passeava para ficar conhecendo a cidade. Bastava aliás uma pessoa sentar-se num banco de uma praça e já via o Rio de Janeiro.
Sua vida corria assim sem atropelos, quando a família da casa de Botafogo um dia surpreendeu-se de tê-la em casa há tanto tempo, e achou que assim também era demais. De algum modo tinham razão. Todos Iá eram muito ocupados, de vez em quando surgiam casamentos, festas, noivados, visitas. E quando passavam atarefados pela velha, ficavam surpreendidos como se fossem interrompidos, abordados com uma pancadinha no ombro: "olha!". Sobretudo uma das moças da casa sentia um mal-estar irritado, a velha enervava-a sem motivo. Sobretudo o sorriso permanente, embora a moça compreendesse tratar-se de um ricto inofensivo. Talvez por falta de tempo, ninguém falou no assunto. Mas logo que alguém cogitou de mandá-la morar em Petrópolis, na casa da cunhada alemã, houve uma adesão mais animada do que uma velha poderia provocar.
Quando, pois, o filho da casa foi com a namorada e as duas irmãs passar um fim-de-semana em Petrópolis, levou a velha no carro.
Por que Mocinha não dormiu na noite anterior? À idéia de uma viagem, no corpo endurecido o coração se desenferrujava todo seco e descompassado, como se ela tivesse engolido uma pílula grande sem água. Em certos momentos nem podia respirar. Passou a noite falando, às vezes alto. A excitação do passeio prometido e a mudança de vida, de repente aclaravam-lhe algumas idéias. Lembrou-se de coisas que dias antes juraria nunca terem existido. A começar pelo filho atropelado, morto debaixo de um bonde no Maranhão — se ele tivesse vivido no tráfego do Rio de Janeiro, aí mesmo é que morria atropelado. Lembrou-se dos cabelos do filho, das roupas dele. Lembrou-se da xícara que Maria Rosa quebrara e de como ela gritara com Maria Rosa. Se soubesse que a filha morreria de parto, é claro que não precisaria gritar. E lembrou-se do marido. Só relembrava o marido em mangas de camisa. Mas não era possível, estava certa de que ele ia à repartição com o uniforme de contínuo, ia a festas de paletó, sem falar que não poderia ter ido ao enterro do filho e da filha em mangas de camisa. A procura do paletó do marido ainda mais cansou a velha que se virava com leveza na cama. De repente descobriu que a cama era dura.
— Que cama dura, disse bem alto no meio da noite.
É que se sensibilizara toda. Partes do corpo de que não tinha consciência há longo tempo reclamavam agora a sua atenção. E de súbito — mas que fome furiosa! Alucinada, levantou-se, desamarrou a pequena trouxa, tirou um pedaço de pão com manteiga ressecada que guardava secretamente há dois dias. Comeu o pão como um rato, arranhando até o sangue os lugares da boca onde só havia gengiva. E com a comida, cada vez mais se reanimava. Conseguiu, embora fugazmente, ter a visão do marido se despedindo para ir ao trabalho. Só depois que a lembrança se desvaneceu, viu que esquecera de observar se ele estava ou não em mangas de camisa. Deitou-se de novo, coçando-se toda ardente. Passou o resto da noite nesse jogo de ver por um instante e depois não conseguir ver mais. De madrugada adormeceu.
E pela primeira vez foi preciso acordá-la. Ainda no escuro, a moça veio chamá-la, de lenço amarrado na cabeça e já de maleta na mão. Inesperadamente Mocinha pediu uns instantes para pentear os cabelos. As mãos trêmulas seguravam o pente quebrado. Ela se penteava, ela se penteava. Nunca fora mulher de ir passear sem antes pentear bem os cabelos.
Quando enfim se aproximou do automóvel, o rapaz e as moças se surpreenderam com seu ar alegre e com os passos rápidos. "Tem mais saúde do que eu!", brincou o rapaz. À moça da casa ocorreu: "E eu que até tinha pena dela".
Mocinha sentou-se junto da janela do carro, um pouco apertada pelas duas irmãs acomodadas no mesmo banco. Nada dizia, sorria. Mas quando o automóvel deu a primeira arrancada, jogando-a para trás, sentiu dor no peito. Não era só por alegria, era um dilaceramento. O rapaz virou-se para trás:
— Não vá enjoar, vovó!
As moças riram, principalmente a que se sentara na frente, a que de vez em quando encostava a cabeça no ombro do rapaz. Por cortesia, a velha quis responder, mas não pôde. Quis sorrir, não conseguiu. Olhou para todos, com olhos lacrimejantes, o que os outros já sabiam que não significava chorar. Qualquer coisa em seu rosto amorteceu um pouco a alegria da moça da casa e deu-lhe um ar obstinado.
A viagem foi muito bonita.
As moças estavam contentes, Mocinha agora já recomeçara a sorrir. E, embora o coração batesse muito, tudo estava melhor. Passaram por um cemitério, passaram por um armazém, árvore, duas mulheres, um soldado, gato! letras — tudo engolido pela velocidade.
Quando Mocinha acordou não sabia mais aonde estava. A estrada já havia amanhecido totalmente: era estreita e perigosa. A boca da velha ardia, os pés e as mãos distanciavam-se gelados do resto do corpo. As moças falavam, a da frente apoiara a cabeça no ombro do rapaz. Os embrulhos despencavam a todo instante.
Então a cabeça de Mocinha começou a trabalhar. O marido apareceu-lhe de paletó — achei, achei! o paletó estava pendurado o tempo todo no cabide. Lembrou-se do nome da amiga de
Maria Rosa, daquela que morava defronte: Elvira, e a mãe de Elvira até era aleijada. As lembranças quase lhe arrancavam uma exclamação. Então ela movia os lábios devagar e dizia baixo algumas palavras.
As moças falavam:
— Ah, obrigada, um presente desses eu rejeito!
Foi quando Mocinha começou finalmente a não entender. Que fazia ela no carro? como conhecera seu marido e aonde? como é que a mãe de Maria Rosa e Rafael, a própria mãe deles, estava no automóvel com aquela gente? Logo depois acostumou-se de novo.
O rapaz disse para as irmãs:
— Acho melhor não pararmos defronte, para evitar histórias. Ela salta do carro, a gente ensina aonde é, ela vai sozinha e dá o recado de que é para ficar.
Uma das moças da casa perturbou-se: receava que o irmão, com uma incompreensão típica de homem, falasse demais diante da namorada. Eles não visitavam mais o irmão de Petrópolis, e muito menos a cunhada.
— É sim, interrompeu-o a tempo antes que ele falasse demais. Olha, Mocinha, você entra por aquele beco e não há como errar: na casa de tijolo vermelho, você pergunta por Arnaldo, meu irmão, ouviu? Arnaldo. Diz que lá em casa você não podia mais ficar, diz que na casa de Arnaldo tem lugar e que você até pode vigiar um pouco o garoto, viu...
Mocinha desceu do automóvel, e durante um tempo ainda ficou de pé mas pairando entontecida sobre rodas. O vento fresco soprava-lhe a saia comprida por entre as pernas.
Arnaldo não estava. Mocinha entrou na saleta onde a dona da casa, com um pano contra pó amarrado na cabeça, tomava café. Um menino louro — decerto aquele que Mocinha deveria vigiar— estava sentado diante de um prato de tomates e cebolas e comia sonolento, enquanto as pernas brancas e sardentas balançavam-se sob a mesa. A alemã encheu-lhe o prato de mingau de aveia, empurrou-lhe na mesa pão torrado com manteiga. As moscas zuniam. Mocinha estava fraca. Se bebesse um pouco de café quente talvez passasse o frio no corpo.
A mulher alemã examinava-a de vez em quando em silêncio: não acreditara na história da recomendação da cunhada, embora "de Iá" tudo fosse de se esperar. Mas talvez a velha tivesse ouvido de alguém o endereço, até num bonde, por acaso, isso às vezes acontecia, bastava abrir um jornal e ver que acontecia. É que aquela história não estava nada bem contada, e a velha tinha um ar sabido, nem sequer escondia o sorriso. O melhor seria não deixá-la sozinha na saleta, com o armário cheio de louça nova.
— Preciso antes tomar café, disse-lhe. Depois que meu marido chegar, veremos o que se pode fazer.
Mocinha não entendeu muito bem, pois ela falava como gringa. Mas entendeu que era para continuar sentada. O cheiro de café dava-lhe vontade, e uma vertigem que escurecia a sala toda. Os lábios ardiam secos e o coração batia todo independente. Café, café, olhava ela sorrindo e lacrimejando. A seus pés o cachorro mordia a própria pata, rosnando. A empregada, também meio gringa, alta, de pescoço muito fino e seios grandes, a empregada trouxe um prato de queijo branco e mole. Sem uma palavra, a mãe esmagou bastante queijo no pão torrado e empurrou-o para o lado do filho. O menino comeu tudo e, com a barriga grande, agarrou um palito e levantou-se:
Mãe, cem cruzeiros.
Não. Para quê?
Chocolate.
Não. Amanhã é que é domingo.
Uma pequena luz iluminou Mocinha: domingo? que fazia naquela casa em vésperas de domingo? Nunca saberia dizer. Mas bem que gostaria de tomar conta daquele menino. Sempre gostara de criança loura: todo menino louro se parecia com o Menino Jesus. O que fazia naquela casa? Mandavam-na à toa de um lado para outro, mas ela contaria tudo, iam ver. Sorriu encabulada: não contaria era nada, pois o que queria mesmo era café.
A dona da casa gritou para dentro, e a empregada indiferente trouxe um prato fundo, cheio de papa escura. Gringos comiam muito de manhã, isso Mocinha vira mesmo no Maranhão. A dona da casa, com seu ar sem brincadeiras porque gringo em Petrópolis era tão sério como no Maranhão, a dona da casa tirou uma colherada de queijo branco, triturou-o com o garfo e misturou-o à papa. Para dizer verdade, porcaria mesmo de gringo. Pôs-se então a comer, absorta, com o mesmo ar de fastio que os gringos do Maranhão têm. Mocinha olhava. O cachorro rosnava às pulgas.
Afinal Arnaldo apareceu em pleno sol, a cristaleira brilhando. Ele não era louro. Falou em voz baixa com a mulher, e depois de demorada confabulação, informou firme e curioso para Mocinha:
— Não pode ser não, aqui não tem lugar não.
E como a velha não protestasse e continuasse a sorrir, ele falou mais alto:
— Não tem lugar não, ouviu?
Mas Mocinha continuava sentada. Arnaldo ensaiou um gesto. Olhou para as duas mulheres na sala e vagamente sentiu o cômico do contraste. A esposa esticada e vermelha. E mais adiante a velha murcha e escura, com uma sucessão de peles secas penduradas nos ombros. Diante do sorriso malicioso da velha, ele se impacientou:
— E agora estou muito ocupado! Eu lhe dou dinheiro e você toma o trem para o Rio, ouviu? volta para a casa de minha mãe, chega lá e diz: casa de Arnaldo não é asilo, viu? aqui não tem lugar. Diz assim: casa de Arnaldo não é asilo não, viu!
Mocinha pegou no dinheiro e dirigiu-se à porta. Quando Arnaldo já ia se sentar para comer, Mocinha reapareceu:
— Obrigada, Deus lhe ajude.
Na rua, de novo pensou em Maria Rosa, Rafael, o marido. Não sentia a menor saudade. Mas lembrava-se. Dirigiu-se para a estrada, afastando-se cada vez mais da estação. Sorriu como se pregasse uma peça a alguém: em vez de voltar logo, ia antes passear um pouco. Um homem passou. Então uma coisa muito curiosa, e sem nenhum interesse, foi iluminada: quando ela era ainda uma mulher, os homens. Não conseguia ter uma imagem precisa das figuras dos homens, mas viu a si própria com blusas claras e cabelos compridos. A sede voltou-lhe, queimando a garganta. O sol ardia, faiscava em cada seixo branco. A estrada de Petrópolis é muito bonita.
No chafariz de pedra negra e molhada, em plena estrada, uma preta descalça enchia uma lata de água.
Mocinha ficou parada, espreitando. Viu depois a preta reunir as mãos em concha e beber.
Quando a estrada ficou de novo vazia, Mocinha adiantou-se como se saísse de um esconderijo e aproximou-se sorrateira do chafariz. Os fios de água escorreram geladíssimos por dentro das mangas até os cotovelos, pequenas gotas brilharam suspensas nos cabelos.
Saciada, espantada, continuou a passear com os olhos mais abertos, em atenção às voltas violentas que a água pesada dava no estômago, acordando pequenos reflexos pelo resto do corpo como luzes.
A estrada subia muito. A estrada era mais bonita que o Rio de Janeiro, e subia muito. Mocinha sentou-se numa pedra que havia junto de uma árvore, para poder apreciar. O céu estava altíssimo, sem nenhuma nuvem. E tinha muito passarinho que voava do abismo para a estrada. A estrada branca de sol se estendia sobre um abismo verde. Então, como estava cansada, a velha encostou a cabeça no tronco da árvore e morreu.

A Hora da Estrela (trecho)

terça-feira, maio 13, 2008

Afinal terminou por voltar para ela. Por motivos diferentes entraram num açougue. Para ela o cheiro da carne crua era um perfume que a levitava toda como ,se tivesse comido. Quanto a ele, o que queria ver era o açougueiro e sua faca amolada. Tinha inveja do açougueiro e também queria ser. Meter a faca na carne o excitava. Ambos saíram do açougue satisfeitos.
[...]
Posteriormente de pesquisa em pesquisa, ele soube, que Glória tinha mãe, pai é comida quente em hora certa. Isso tornava-a de primeira qualidade Olímpico caiu em êxtase quando soube que o pai dela trabalhava num açougue. Pelos quadris adivinhava-se que seria boa parideira. Enquanto Macabéa lhe pareceu ter em si mesma o seu próprio fim.

A Paixão Segundo G.H. (trecho)

domingo, maio 11, 2008

Eu via o que aquilo dizia: aquilo não dizia nada. E recebia com atenção esse nada, recebia-o com o que havia dentro de meus olhos nas fotografias; só agora sei de como sempre estive recebendo o sinal mudo. Eu olhava o interior da área. Aquilo tudo era de uma riqueza inanimada que lembrava a da natureza: também ali poder-se-ia pesquisar urânio e dali poderia jorrar petróleo.
Eu estava vendo o que só teria sentido mais tarde - quero dizer, só mais tarde teria uma profunda falta de sentido. Só depois é que eu ia entender: o que parece falta de sentido - é o sentido. Todo momento de “falta de sentido” é exatamente a assustadora certeza de que ali há o sentido, e que não somente eu não alcanço, como não quero porque não tenho garantias. A falta de sentido só iria me assaltar mais tarde. Tomar consciência da falta de um sentido teria sido sempre o meu modo negativo de sentir o sentido? Fora a minha participação.
O que eu estava vendo naquele monstruoso interior de máquina, que era a área interna de meu edifício, o que eu estava vendo eram coisas feitas, eminentemente práticas e com finalidade prática.
Mas algo da natureza terrível geral - que mais tarde eu experimentaria em mim -, algo da natureza fatal saíra fatalmente das mãos da centena dos operários práticos que havia trabalhado canos de água e de esgoto, sem nenhum saber que estava erguendo aquela ruína egípcia para a qual eu agora olhava com o olhar de minhas fotografias de praia. Só depois eu saberia que tinha visto; só depois, ao ver o segredo, reconheci que já o vira.
Joguei o cigarro aceso para baixo, e recuei um passo, esperando esperta que nenhum vizinho me associasse ao gesto proibido pela portaria do edifício. Depois, com cuidado, avancei apenas a cabeça, e olhei: não podia adivinhar sequer onde o cigarro caíra. O despenhadeiro engolira-o em silêncio. Estava eu ali pensando? Pelo menos pensava em nada. Ou talvez na hipótese de algum vizinho me ter visto fazer o gesto proibido, que sobretudo, não combinava com a mulher educada que sou, o que me fazia sorrir.
Depois dirigi-me ao corredor escuro que se segue à área.
No corredor, que finaliza o apartamento, duas portas indistintas na sombra se defrontam: a da saída de serviço e a do quarto de empregada. O basfond de minha casa. Abri a porta para o amontoado de jornais e para as escuridões da sujeira e dos guardados.
Mas ao abrir a porta meus olhos se franziram em reverberação e desagrado físico.
É que em vez da penumbra confusa que esperara, eu esbarrava na visão de um quarto que era um quadrilátero de branca luz; meus olhos se protegeram franzindo-se.

... A Tia... (trecho)

domingo, maio 11, 2008

A VIAGEM ERA LONGA e das moitas longínquas vinha um cheiro frio de mato molhado.
Era muito cedo de manhã e Joana mal tivera tempo de lavar o rosto. A empregada ao seu lado distraía-se soletrando os anúncios do bonde. Joana encostara a têmpora direita no banco e deixava-se atordoar pelo doce ruído das rodas, transmitido sono-lentamente pela madeira. O chão corria sob seus olhos baixos, célere, cinzento, raiado de listras ve¬lozes e fugazes. Se abrisse os olhos enxergaria cada pedra, acabaria com o mistério. Mas entrefechava-os e parecia-lhe que o bonde corria mais e que se tor¬nava mais forte o vento salgado e fresco do nascer do dia.
Tomara o café com um bolo esquisito, escuro — gosto de vinho e de barata — que lhe tinham fei¬to comer com tanta ternura e piedade que ela se en¬vergonhara de recusar. Agora pesava-lhe no estôma¬go e dava-lhe uma tristeza de corpo que se juntava àquela outra tristeza — uma coisa imóvel atrás da cortina — com que dormira e acordara.
— Essa areia afundando mata um cristão, res¬mungou a empregada.
Atravessou a extensão de areia que levava à casa da tia, prenunciando a praia. Debaixo dos grãos nasciam ervas magras e escuras que se retorciam asperamente à superfície da brancura fofa. A ven¬tania vinha do mar invisível, trazia sal, areia, o ba¬rulho cansado das águas, embaraçava as saias entre as pernas, lambendo furiosamente a pele da menina e da mulher.
[...]

A Hora da Estrela (trecho)

sábado, maio 10, 2008

[...]
Enfim o que fosse acontecer, aconteceria. E por
enquanto nada acontecia, os dois não sabiam inventar
acontecimentos. Sentavam-se no que é de graça: banco
de praça pública. E ali acomodados, nada os distinguia
do resto do nada. Para a grande glória de Deus. [...]

A Paixão Segundo G.H. (trecho)

sexta-feira, maio 09, 2008

Vou criar o que me aconteceu. Só porque viver não é relatável. Viver não é vivível. Terei que criar sobre a vida. E sem mentir. Criar sim, mentir não. Criar não é imaginação, é correr o grande risco de se ter a realidade. Entender é uma criação, meu único modo. Precisarei com esforço traduzir sinais de telégrafo - traduzir o desconhecido para uma língua que desconheço, e sem sequer entender para que valem os sinais. Falarei nessa linguagem sonâmbula que se eu estivesse acordada não seria linguagem.
Até criar a verdade do que me aconteceu. Ah, será mais um grafismo que uma escrita, pois tento mais uma reprodução do que uma expressão. Cada vez preciso menos me exprimir. Também isto perdi? Não, mesmo quando eu fazia esculturas eu já tentava apenas reproduzir, e apenas com as mãos.
Ficarei perdida entre a mudez dos sinais? Ficarei, pois sei como sou: nunca soube ver sem logo precisar mais do que ver. Sei que me horrorizarei como uma pessoa que fosse cega e enfim abrisse os olhos e enxergasse - mas enxergasse o quê? um triângulo mudo e incompreensível. Poderia essa pessoa não se considerar mais cega só por estar vendo um triângulo incompreensível?
Eu me pergunto: se eu olhar a escuridão com uma lente, verei mais que a escuridão? a lente não devassa a escuridão, apenas a revela ainda mais. E se eu olhar a claridade com uma lente, com um choque verei apenas a claridade maior.
Enxerguei, mas estou tão cega quanto antes porque enxerguei um triângulo incompreensível. A menos que eu também me transforme no triângulo que reconhecerá no incompreensível triângulo a minha própria fonte e repetição.

Água Viva (6° Parte)

sexta-feira, maio 09, 2008

Sei história passada mas que se renova já. O ele contou-me que morou durante algum tempo com parte de sua família que vivia em pequena aldeia em um vale dos altos Pirineus nevados. No inverno os lobos esfaimados desciam das montanhas até a aldeia a farejar presa. Todos os habitantes se trancavam atentos em casa a abrigar na sala ovelhas e cavalos e cães e cabras, o calor humana e calor animal - todos alertamente a ouvir o arranhar das garras dos lobos nas portas cerradas. A escutar. A escutar.
Estou melancólica. É de manhã. Mas conheço o segredo das manhãs puras. E descanso na melancolia.
Sei da história de uma rosa. Parece-te estranho falar em rosa quando estou me ocupando com bichos? Mas ela agiu de um modo tal que lembra os mistérios animais. De dois em dois dias eu comprava uma rosa e colocava-a na água dentro da jarra feita especialmente para abrigar o longo talo de uma só flor. De dois em dois dias a rosa murchava e eu a trocava por outra. Até que houve determinada rosa. Cor-de-rosa sem corante ou enxerto porém do mais vivo rosa pela natureza mesmo. Sua beleza alargava o coração em amplidões.
[...]
Oh, como tudo é incerto. E no entanto dentro da Ordem. Não sei sequer o que vou te escrever na frase seguinte. A verdade última a gente nunca diz. Quem sabe da verdade que venha então. E fale. Ouviremos contritos.
... eu o vi de repente e era um homem tão extraordinariamente bonito e viril que eu senti uma alegria de criação. Não é que eu o quisesse para mim assim como não quero o menino que vi com cabelos de arcanjo correndo atrás da bola. Eu queria somente olhar. O homem olhou um instante para mim e sorriu calmo: ele sabia o quanto era belo e sei que sabia que eu não o queria para mim. Sorriu porque não sentiu ameaça alguma. É que os seres excepcionais em qualquer sentido estão sujeitos a mais perigos que o comum das pessoas. Atravessei a rua e tomei um táxi. A brisa arrepiava-me os cabelos da nuca. E eu estava tão feliz que me encolhi no canto do táxi de medo porque a felicidade dói. E isto tudo causado pela visão do homem bonito. Eu continuava a não querê-lo para mim - gosto é das pessoas um pouco feias e ao mesmo tempo harmoniosas, mas ele de certa forma dera-me muito com o sorriso de camaradagem entre pessoas que se entendem. Tudo isso eu não entendia.
A coragem de viver: deixo oculto o que precisa ser oculto e precisa irradiar-se em segredo.
Calo-me.
Porque não sei qual é o meu segredo. Conta-me o teu, ensina-me sobre o secreto de cada um de nós. Não é segredo difamante. É apenas esse isto: segredo.
E não tem fórmulas.
Penso que agora terei que pedir licença para morrer um pouco. Com licença - sim? Não demoro. Obrigada.

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quinta-feira, maio 08, 2008

O Blog Clarice Lispector surgiu na quarta-feira, 3 de outubro de 2007, com a proposta de levar a obra de Clarice ao máximo de pessoas possíveis. Nesse pouco tempo o blog foi citado numa reportagem do Jornal Folha Online e na Rádio CBN. O blog atingiu 300.000 visitas e o que faz com que exista é saber que de alguma forma, contribui com os fãs da Clarice. Obrigado!

Deixe um e-mail ao Blog Clarice Lispector. Quais escritos gostaria de ver aqui? Sugestões e mais.


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Obrigado!

Imprensa

quinta-feira, maio 08, 2008

Fotobiografia celebra lado pop de Clarice Lispector

Toda estrela que se preze já ganhou biografia não-autorizada ou álbum de fotos de sua carreira. Com Clarice Lispector (1920-1977) não poderia ser diferente. "Clarice - Fotobiografia" (Imprensa Oficial; R$ 90, 656 págs.), livro com 800 imagens, muitas delas inéditas, reforça o apelo extraliterário, o "star quality" da autora de "A Paixão Segundo G. H.", cujos traços singulares muitas vezes pareciam ecoar a estranheza de seus próprios livros.
Reprodução
Fotobiografia reforça sucesso de Clarice Lispector (foto) entre jovens
Esse apelo é reconhecível sobretudo entre os jovens, cujo fascínio por Clarice tem um forte termômetro na internet. O site de relacionamentos Orkut, por exemplo, tem 103 comunidades dedicadas a Clarice. Ali, a escritora bate os poetas Carlos Drummond de Andrade (77) e Manuel Bandeira (58), com grupos chamados "Clarice Lispector sexy!" ("para quem acha Clarice a escritora mais sexy da literatura brasileira!") ou "Clarice Lispector me dá tesão!" ("como se não bastasse ela ser inteligente, tinha que ter essa boca e esses olhos?").
Na blogosfera, não é diferente. Há seis meses, a estudante Keidy Lee Costa, 19, administra, do Rio Grande do Norte, o blog claricelispector.blogspot.com, que chega a ter mais de 4.700 visitas diárias. Para a estudante, a recém-lançada fotobiografia tem "800 novas maneiras de tentar entendê-la e de se apaixonar ainda mais", pois, "quando se olha nos olhos de uma foto de Clarice, a sensação que se tem é de mistério".
Imagem a favor da obra
Autora do livro "Clarice - Uma Vida que se Conta", a professora da USP Nádia Battella Gotlib, que organizou a fotobiografia, diz que não pensou no "estrelato" de Clarice, e sim na história da literatura por trás das fotografias. Gotlib acredita que o apelo entre os jovens se dê pela capacidade de Clarice de traduzir traços da personalidade humana, sobretudo em fase de formação e em ritos de passagem.
"Ela possuía uma capacidade de fisgar o leitor em pontos sensíveis. E o adolescente está com a sensibilidade à flor da pele, tem uma percepção lisérgica das coisas", diz a professora, numa referência ao escritor Hélio Pellegrino (1924-1988), para quem Clarice tinha uma "personalidade lisérgica". Gotlib também reconhece que a figura da escritora é forte e encantadora. Mas ressalva: "É uma imagem a favor da literatura, porque instiga a pessoa a ler a sua obra".
Clarice é emo?
Outro altar de celebração da imagem de Clarice é o YouTube, em que uma busca pelo nome da escritora gera mais de 170 resultados, entre eles videopoemas em sua homenagem e trechos da última entrevista que ela concedeu, em 1977, à TV Cultura.
Após ver uma passagem da tal entrevista em que Clarice comenta que seu conto "O Ovo e a Galinha" era um mistério para ela mesma, uma leitora do blog Ovos Não Voam chegou a comentar: "Clarice Lispector é emo!", referindo-se ao lado "emotional hardcore" (emocionalmente pesado) da escritora.
Fã de Clarice, a estudante Fernanda Markus, 17, também parece identificar a tal faceta "hardcore": "Ela atrai os jovens porque era confusa, vivia num mundo de paradoxos em que nós, jovens, também vivemos. Ler Clarice parece um remédio para tanto desconforto".
Autora do perfil "Clarice Lispector" (Publifolha), Yudith Rosenbaum acredita que a obra de Clarice seja uma literatura de iniciação de adolescentes, mais "abertos" ao que a escritora chamava de "experiência de contato" de seus textos.
Rosenbaum, no entanto, não concorda que a fotobiografia estimule a idolatria ou celebre o lado "pop" da autora. Para ela, "o livro mostra faces novas da escritora e renova o quadro de imagens já estabelecido sobre ela. Tudo se mostra mais contextualizado e inter-relacionado, criando condições para uma apreciação menos idealizada e mais fundamentada sobre a trama vida/obra de Clarice".
Amor antigo
Há quem discorde. O poeta Ferreira Gullar, colunista da Folha, diz que foi "vítima" da beleza de Clarice na sua juventude. Gullar tem até hoje uma foto da musa, recortada de uma revista, sobre uma estante. Ele conta que, quando a conheceu, em 1954, na casa da escultora Zélia Salgado, ficou impressionado com a beleza exótica da mulher de "traços asiáticos, pomos saltados e olhos oblíquos".
"Não por acaso se faz um álbum assim com Clarice. É justamente porque ela é uma mulher bonita e misteriosa. Clarice tem algo raro, a beleza estranha, diferente da brasileira, que se junta ao talento, também fora do comum, um talento estranho, indagador de coisas que não têm respostas. Vai ser assim pro resto da vida".

Data: 19/04/2008
Por: Eduardo Simões
Fonte: Folha de S. Paulo
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Visões de Clarice Lispector

Volumosa fotobiografia refaz a trajetória da escritora e lança olhares sobre sua personalidade

A menina Clarice Lispector (1920-1977) aparece sozinha, sentada em um sofá. Mira seu observador e instaura uma enigmática atmosfera que a acompanhará por toda a vida e fará de sua escrita um dos mais instigantes capítulos da literatura brasileira. Agora, a autora ganha novo olhar sobre sua sua vida e obra, não a partir de textos, mas de imagens, no livro Clarice fotobiografia, organizado por Nádia Battella Gotlib, professora da Universidade de São Paulo e uma das maiores especialistas na obra da autora.
São mais de 800 imagens, entre fotografias, trechos manuscritos de obras, documentos pessoais, cartas e capas de livros, além de pinturas e desenhos. Mais que registro documental, o que o livro traz é uma nova possibilidade de análise da singular personalidade de Lispector. “Em muitas fotos, é possível perceber algo que é praticamente intocável, como acontece também com sua própria literatura. Tem algo que se esvai, como em suas personagens. Quando pensamos que os capturamos, percebemos que o âmago de cada um é intocável, imposível de se dar conta ou de traduzir em palavras”, observa Nádia Gotlib, em entrevista por telefone, do Rio de Janeiro.
Se em algumas fotos, como nota Gotlib, ela parece preservar essa solidão inerente a muitas de suas personagens, em outras, porém, traduz o que não era conhecido ou não estava explícito, como a entrega nas situações de afeto ou de dor – como nas imagens de quando perdeu sua mãe, com a tia Dora, ou feliz com a amiga Mafalda Verissimo, esposa de Erico. Em ordem cronológica, as reproduções refazem a trajetória da escritora a partir dos lugares onde ela morou. “Clarice nasceu em uma viagem de exílio. Ela dizia ter sempre a sensação de não pertencer a lugar nenhum”, comenta a professora.
Viagens - Ucraniana de Tchechelnik, a autora chegou ao Brasil em março de 1922, junto com a família, que fugia da guerra civil que tomava conta do país. Aqui, moraram em Maceió, Recife e Rio de Janeiro. Casada com o diplomata Maury Gurgel Valente, entre 1943 e 1959, viveu em Belém (Pará), em Nápoles (Itália), Berna (Suíça), Troquay (Inglaterra) e Chevy Chase (EUA). Das décadas de 1960 e 1970, a fotobiografia traz uma Clarice dedicada aos filhos, à literatura e a viagens eventuais, como também à gradativa divulgação de sua obra.
Todo esse percurso foi refeito por Nádia que, para a construção da fotobiografia, visitou lugares onde a escritora viveu, perscrutando arquivos públicos e particulares. Há fotos das famílias paterna e materna, imagens que permitem reconstituir desde uma infância rústica até os elegantes cerimoniais que freqüentava como esposa de diplomata. “É um novo texto que surge sobre ela a partir dessa narrativa visual. Há gestos, olhares e espaços que permitem que o leitor, que se torna também espectador, construa sentidos”, observa Gotlib.
Além das fotos, muito dizem sobre a escritora também as pinturas de sua autoria e os retratos que fizeram dela pintores como Giorgio de Chirico, Carlos Scliar e Dimitri Ismalovitch. Completam o mosaico também detalhes de sua relação com as irmãs, Elisa e Tânia, com amigos, como Lucio Cardoso, Rubem Braga, Antonio Callado, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Raul Bopp, Ribeiro Couto, Erico Verissimo e Giuseppe Ungaretti. Também estão lá o nascimento dos filhos, a separação do marido, a volta definitiva ao Brasil, a produção jornalística e seus posicionamentos políticos.
Espólio – Para cada imagem, Nádia faz uma descrição das situações, com legendas concisas. No final do livro, informações complementares, como Comentários, além de uma cronologia detalhada com afirmações adicionais. Há também uma bibliografia de Clarice Lispector, sucinta e, ao mesmo tempo, bastante completa, buscando atender aos objetivos do livro de esclarecer novos aspectos referentes à história da sua obra literária e jornalística. “É uma produção chamada por ela mesma de ‘pulsações’, pautada pelo questionamento de valores, desconstrução de regras e certezas, movida pelo desejo dramático de narrar aquilo que constata ser inenarrável”, observa.
Para reunir todo esse material, Nádia Gotlib se dedicou a anos de pesquisa, iniciada ainda na década de 1980. A professora aguardou, inclusive, que parte do espólio da escritora fosse depositado pela família na Casa de Ruy Barbosa, no Rio de Janeiro. “Não havia catalogação das fotos. Vi uma por uma e segui atrás de pistas para identificá-las, contextualizá-las e problematizá-las”.
Da escritora com mais de 30 livros publicados – entre romances, livros infantis e conjuntos de contos, entre eles Perto do coração selvagem (1943) e Laços de família (1960), A paixão segundo G.H. (1964), A hora da estrela (1977) – e produção jornalística, muito já se pesquisou e escreveu. Exatamente por esse motivo vale o olhar agora para a fotobiografia de Nádia, que diz, em poucas palvras, porque Clarice é escritora tão especial. “A recepção de sua obra depende muito de quem a lê e em que fase da vida faz isso. O que surge pode ser totalmente diferente a cada vez que a relemos”, pontua.

Ficha
Livro: Clarice fotobiografia
Autor: Nádia Battella Gotlib
Editora: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/Edusp
Preço: R$90 (656 páginas)
Por: Margareth Xavier
Fonte: Folha da Bahia
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Peça inspirada em Clarice Lispector será apresentada às 16h

Inspirada na obra de Clarice Lispector, a peça “No gosto doce e amargo das coisas de que somos feitos”, do diretor Nill Amaral, vai ser apresentada hoje (3) no 5° Festival América do Sul (FAS), às 16h, no Instituto Luis de Albuquerque (ILA).
O espetáculo “No gosto doce e amargo das coisas de que somos feitos” é o resultado de uma pesquisa e mergulho na obra da escritora Clarice Lispector. Numa experiência teatral, este trabalho transpõe o texto literário para a linguagem dramática do teatro.
Na peça, quatro personagens, três mulheres e um homem, mostram mulheres com personalidades diferentes em diversas situações. Todas trazem traços da autora Clarice Lispector e cada uma mostra uma face da escritora. O encontro com o outro, representado pelo homem, faz o contraponto da feminilidade no texto de Clarice. Formam o elenco Aline Duenha, Luciana Kreutzer, Ligia Prieto e Bruno Moser. A dramaturgia é de Claudia Pucci e a iluminação é de Mauro Alves Guimarães.
O texto foi baseado em três obras da escritora: A paixão segundo GH, Água viva e Um aprendizado ou o Livro dos prazeres.
FAS
O 5º Festival América do Sul (FAS) acontece até 4 de maio, em Corumbá. Busca produzir ações concretas para a aceleração da integração das nações sul-americanas promovendo um grande encontro que revela a diversidade cultural no continente, além de discutir temas relativos ao meio ambiente, à cultura, ao turismo e ao desenvolvimento sustentável.

Data: 03/05/2008
Por: Fernanda Bernardes, informações Noticias Ms

Cartas

quinta-feira, maio 08, 2008

Carta de Carlos Drummond de Andrade

Carlos Drummond de Andrade
Rio, 18.8.75
Clarice, querida:
Ler ou reler você é sempre uma operação feliz: descobrem-se coisas, aprimora-se o conhecimento das descobertas. Senti isto percorrendo De corpo inteiro e Visão do esplendor. Obrigado, amiga!

O abraço, a admiração, o carinho do

Drummond
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Carta de Rubem Braga


Rubem Braga
Rio, 23 de maio de 1953
Clarice
Felicidades para você, Maury, Pedro e Paulo, com saudações especiais para este, que é o motivo, ou pretexto, da carta. Nosso Comício, v. viu, morreu assim que Thereza Quadros partiu. Sem a influição sutil de sua presença na cidade, o pobre jornalzinho se foi. Não o choremos, que morreu como nasceu, muito vivo, desleixado, alegre, às vezes malcriado, no fundo talvez sério, em todo caso sempre livre. A gente que trabalhava aqui se espalhou, uma parte foi para a Manchete, que melhorou muito, outra parte foi fazer Flan, do Samuel Wainer, que deve sair esse mês. Meio desempregado, enfrentei o verão (o maior de que tenho lembrança, e continua ainda) em meu novo e pequeno apartamento, e me entreguei à praia, ao uísque e aos levianos amores com estranha voracidade. Agora estou um tanto cansado – inclusive do Rio e do apartamento – e crivado de dívidas. Para conjurá-las em parte vou fazer um livro de crônicas (A borboleta amarela) do qual tirarei uma edição de luxo a um conto o exemplar. O livro está sendo feito e ilustrado pelo Carybé, na Bahia, o [que] quer dizer que sairá mesmo bonito. Pagando uma parte de minhas dívidas, através dessa espécie de tungação de meus leitores mais burgueses, espero ficar um pouco mais livre, poder viajar. Vamos ver se o dólar baixa, está a 45 cruzeiros hoje! Em último caso viajarei pelo Brasil, o que sempre me agradou. (...) Gostei muito do Raul De Vicenzi, que andou por aqui. V. conhece a Vera Nascimento? Tenho muitas saudades dela e gostaria de lhe escrever, mas não sei para que endereço. (...) Recebi carta do Lauro Escorel. Por favor, diga e ele que farei o possível, mas praticamente nada se pode fazer antes dele chegar. Em todo caso, tocarei no assunto com Paulo Bittencourt. De qualquer modo o meio de imprensa está muito melhor, financeiramente, agora do que quando ele saiu daqui. Abraço para ele e Sarita. Meu filho fez 15 anos, está forte, teve boas férias e com mania de aviação. Zora vai bem. Graciliano foi enterrado sábado. Morto, era completamente igual a Dante Alighieri. Diga o que interessa a você aqui – livros, recortes de jornal, revistas, o que for, que mandarei. Para mim é fácil pois tenho uma secretária e um boy. Não faça mesmo nenhuma cerimônia, e transmita aos amigos citados acima – e ao prezado Lôlô – este oferecimento. E me conte a vida de você aí, o que faz, o que pensa. Agora parece que já posso entrar no States (nova orientação do Departamento) e não deixarei de fazê-lo na primeira chance, que talvez seja uma viagem ao Japão via S. Francisco (inauguração de uma linha aérea Tóquio-Rio, para a qual fui convidado, mas o dia ainda ao está marcado). Isto são planos vagos, pois como disse acima estou praticamente preso ao Rio por dívidas. Das quais não me arrependo pois passei uma boa, alegre temporada, que me fez bem. Mas vejo que estou chateando v. com meus problemas e planos. Dizem que o livro da Cecília Meireles é uma beleza, ainda não li. V. o recebeu? Diga, que mandarei, se v. quiser. Tati vai bem, trabalha muito, parece que tem um discreto amor, o que é menos mal: Suzana operou-se do [.] e eu a “abafei” completamente de emoção mandando-lhe umas orquídeas para a casa de saúde. Ela e Pedro vão bem. Tudo isso, Clarice, é para lhe dizer de meu afeto, e saudades. Escreva, por favor. Grande abraço para o Maury.

Rubem

Rubem Braga
Rua Prudente de Morais, 599 apart. 501
Ipanema: RIO – 27 – 7174.

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Carta de Lygia Fagundes Telles

Lygia Fagundes Telles
25.11.77

Minha querida
Clarice,
Queria apenas dizer-lhe que seu livro A hora da estrela é muito belo e que você é muito amada. Segui seu conselho, comprei roupas claras (de preferência, o branco, você disse) e cortei o cabelo. Acho que recomeço a viver, vamos recomeçar juntas? Se eu for aí passar o Natal com meu irmão, quero te levar um pente (como aquele que te dei, outras cores) e te dar um beijo.
Lygia
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Cartas de Fernado Sabino
Fernando Sabino
Nova York, 06 de julho de 1946.

Clarice,
Porisso (sic) não te posso mandar nenhuma palavra animadora. Digo apenas que não concordo com você quando você diz que faz arte apenas porque “tem um temperamento infeliz e doidinho”. Tenho uma grande, uma enorme esperança em você e já te disse que você avançou na frente de nós todos, passou pela janela, na frente deles todos. Apenas desejo intensamente que você não avance demais para não cair do outro lado. Você tem de ser equilibrista até o fim da vida. E suando muito, apertando o cabo da sombrinha aberta, com medo de cair, olhando a distância do arame já percorrido e do arame a percorrer — e sempre tendo de exibir para o público um falso sorriso de calma e facilidade. Tem de fazer isso todos os dias, para os outros como se na vida não tivesse feito outra coisa, para você como se fosse sempre a primeira vez, e a mais perigosa. Do contrário seu número será um fracasso.

Fernando.

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Fernando Sabino
Rio de Janeiro, 27 de outubro de 1953
Clarice,
Gostei de saber que você está com a alma mais sossegada. O sentimento de grandeza que você acha que está perdendo talvez agora é que você esteja adquirindo. Sua predisposição para ficar calada não é propriamente uma novidade: a novidade é estar aceitando, inclusive, o silêncio. É bom isso, dá mais paciência, mais compreensão, dá mais sentimento às coisas — e dá grandeza.

Fernando.

Macacos

quarta-feira, maio 07, 2008

Da primeira vez que tivemos em casa um mico foi perto do Ano-Novo. Estávamos sem água e sem empregada, fazia-se fila para carne, o calor rebentara — e foi quando, muda de perplexidade, vi o presente entrar em casa, já comendo banana, já examinando tudo com grande rapidez e um longo rabo. Mais parecia um macacão ainda não crescido, suas potencialidades eram tremendas. Subia pela roupa estendida na corda, de onde dava gritos de marinheiro, e jogava cascas de banana onde caíssem. E eu exausta. Quando me esquecia e entrava distraída na área de serviço, o grande sobressalto: aquele homem alegre ali. Meu menino menor sabia, antes de eu saber, que eu me desfaria do gorila: "E se eu prometer que um dia o macaco vai adoecer e morrer, você deixa ele ficar? e se você soubesse que de qualquer jeito ele um dia vai cair da janela e morrer Iá embaixo?" Meus sentimentos desviavam o olhar. A inconsciência feliz e imunda do macacão-pequeno tornava-me responsável pelo seu destino, já que ele próprio não aceitava culpas. Uma amiga entendeu de que amargura era feita a minha aceitação, de que crimes se alimentava meu ar sonhador, e rudemente me salvou: meninos de morro apareceram numa zoada feliz, levaram o homem que ria, e no desvitalizado Ano-Novo eu pelo menos ganhei uma casa sem macaco.
Um ano depois, acabava eu de ter uma alegria, quando ali em Copacabana vi o agrupamento. Um homem vendia macaquinhos. Pensei nos meninos, nas alegrias que eles me davam de graça, sem nada a ver com as preocupações que também de graça me davam, imaginei uma cadeia de alegria: "Quem receber esta, que a passe a outro", e outro para outro, como o frêmito num rastro de pólvora. E ali mesmo comprei a que se chamaria Lisette.
Quase cabia na mão. Tinha saia, brincos, colar e pulseira de baiana. E um ar de imigrante que ainda desembarca com o traje típico de sua terra. De imigrante também eram os olhos redondos.
Quanto a essa, era mulher em miniatura. Três dias esteve conosco. Era de uma tal delicadeza de ossos. De uma tal extrema doçura. Mais que os olhos, o olhar era arredondado. Cada movimento, e os brincos estremeciam; a saia sempre arrumada, o colar vermelho brilhante. Dormia muito, mas para comer era sóbria e cansada. Seus raros carinhos eram só mordida leve que não deixava marca.
No terceiro dia estávamos na área de serviço admirando Lisette e o modo como ela era nossa. "Um pouco suave demais", pensei com saudade do meu gorila. E de repente foi meu coração respondendo com muita dureza: "Mas isso não é doçura. Isto é morte". A secura da comunicação deixou-me quieta. Depois eu disse aos meninos: "Lisette está morrendo". Olhando-a, percebi então até que ponto de amor já tínhamos ido. Enrolei Lisette num guardanapo, fui com os meninos para o primeiro pronto-socorro, onde o médico não podia atender porque operava de urgência um cachorro. Outro táxi. — Lisette pensa que está passeando, mamãe — outro hospital. Lá deram-lhe oxigênio.
E com o sopro de vida, subitamente revelou-se uma Lisette que desconhecíamos. De olhos muito menos redondos, mais secretos, mais aos risos e na cara prognata e ordinária uma certa altivez irônica; um pouco mais de oxigênio, e deu-lhe uma vontade de falar que ela mal agüentava ser macaca; era, e muito teria a contar. Breve, porém, sucumbia de novo, exausta. Mais oxigênio e dessa vez uma injeção de soro a cuja picada ela reagiu com um tapinha colérico, de pulseira tilintando. O enfermeiro sorriu: "Lisette, meu bem, sossega!"
O diagnóstico: não ia viver, a menos que tivesse oxigênio à mão e, mesmo assim, improvável. "Não se compra macaco na rua", censurou-me ele abanando a cabeça, "às vezes já vem doente". Não, tinha-se que comprar macaca certa, saber da origem, ter pelo menos cinco anos de garantia do amor, saber do que fizera ou não fizera, como se fosse para casar. Resolvi um instante com os meninos. E disse para o enfermeiro: "O senhor está gostando muito de Lisette. Pois se o senhor deixar ela passar uns dias perto do oxigênio, no que ela ficar boa, ela é sua". Mas ele pensava. "Lisette é bonita!", implorei eu. "É linda", concordou ele pensativo. Depois ele suspirou e disse: "Se eu curar Lisette, ela é sua". Fomos embora, de guardanapo vazio.
No dia seguinte telefonaram, e eu avisei aos meninos que Lisette morrera. O menor me perguntou: "Você acha que ela morreu de brincos?" Eu disse que sim. Uma semana depois o mais velho me disse: "Você parece tanto com Lisette!" "Eu também gosto de você", respondi.

A Hora da Estrela (trecho)

quarta-feira, maio 07, 2008

Em todo caso o futuro parecia vir a ser muito melhor. Pelo menos o futuro tinha a vantagem de não ser o presente, sempre há um melhor para o ruim. Mas não havia nela miséria humana. É que tinha em si mesma uma certa flor fresca. Pois, por estranho que pareça, ela acreditava. Era apenas fina matéria orgânica. Existia. Só isto. E eu? De mim só se sabe que respiro.
Embora só tivesse nela a pequena flama indispensável: um sopro de vida.
[...]
O que se segue é apenas uma tentativa de reproduzir três páginas que escrevi e que a minha cozinheira, vendo-as soltas, jogou no lixo para o meu desespero - que os mortos me ajudem a suportar o quase insuportável, já que de nada me valem os vivos. Nem de longe consegui " igualar a tentativa de repetição artificial do que originalmente eu escrevi sobre o encontro com o seu futuro namorado. É com humildemente que contarei agora a história da história. Portanto se me perguntarem como foi direi: não sei, perdi o encontro. [...]

Água Viva (5° Parte)

quarta-feira, maio 07, 2008

De mim no mundo quero te dizer da força que me guia e me traz o próprio mundo, da sensualidade vital de estruturas nítidas, e das curvas que são organicamente ligadas a outras formas curvas. Meu grafismo e minhas circunvoluções são potentes e a liberdade que sopra no verão tem a fatalidade em si mesma. O erotismo próprio do que é vivo está espalhado no ar, no mar, nas plantas, em nós, espalhado na veemência de minha voz, eu te escrevo com minha voz. E há um vigor de tronco robusto , de raízes entranhadas na terra viva que reage dando-lhes grandes alimentos. Respiro de noite a energia. E tudo isto no fantástico. Fantástico: o mundo por um instante é exatamente o que meu coração pede. Estou prestes a morrer-me e constituir novas composições. Estou me exprimindo muito mal e as palavras certas me escapam. Minha forma interna é finamente depurada e no entanto meu conjunto com o mundo tem a crueza nua dos sonhos livres e das grandes realidades. Não conheço a proibição. E minha própria força me libera, essa vida plena que se me transborda. E nada planejo no meu trabalho intuitivo de viver: trabalho com o indireto, o informal e o imprevisto.
[...]
Ter coruja nunca me ocorreria, embora eu as tenha pintado nas grutas. Mas um "ela" achou por terra na mata de Santa Teresa um filhote de coruja todo só e à míngua de mãe. Levou-o para casa. Aconchegou-o. Alimentou-o e dava-lhe murmúrios e terminou descobrindo que ele gostava de carne crua. Quando ficou forte era de se esperar que fugisse imediatamente mas demorou a ir em busca do próprio destino que seria o de reunir-se aos de sua doida raça: é que se afeiçoara, essa diabólica ave, à moça. Até que em um arranco - como se estivesse em luta consigo próprio - libertou-se com o vôo para a profundeza do mundo.
Já vi cavalos soltos no pasto onde de noite o cavalo branco - rei da natureza - lançava para o alto ar seu longo relincho de glória. Já tive perfeitas relações com eles. Lembro-me de mim de pé com a mesma altivez do cavalo e a passar a mão pelo seu pêlo nu. Pela sua crina agreste. Eu me sentia assim: a mulher e o cavalo.

O Passeio de Joana (trecho)

terça-feira, maio 06, 2008

— Eu me distraio muito, disse Joana a Otávio.
Assim como o espaço rodeado por quatro pa­redes tem um valor específico, provocado não tanto pelo fato de ser espaço mas pelo de estar rodeado por paredes. Otávio transformava-a em alguma coisa que não era ela mas ele mesmo e que Joana recebia por piedade de ambos, porque os dois eram incapa­zes de se libertar pelo amor, porque aceitava sucum­bida o próprio medo de sofrer, sua incapacidade de conduzir-se além da fronteira da revolta. E também: como ligar-se a um homem senão permitindo que ele a aprisione? como impedir que ele desenvolva sobre seu corpo e sua alma suas quatro paredes? E havia um meio de ter as coisas sem que as coisas a possuíssem?
A tarde era nua e límpida, sem começo nem fim. Pássaros leves e negros voavam nítidos no ar puro, voavam sem que os homens os acompanhassem com um olhar sequer. Bem longe a montanha pairava grossa e fechada. Havia duas maneiras de olhá-la: imaginando que estava longe e era grande, em pri­meiro lugar; em segundo, que era pequena e estava perto. Mas de qualquer modo, uma montanha estúpida, castanha e dura. Como odiava a natureza às vezes. Sem saber por que, pareceu-lhe que a última reflexão, misturada à montanha, concluía alguma coisa, batendo com a mão aberta sobre a mesa: pron­to! pesadamente. Aquilo cinzento e verde estendido dentro de Joana como um corpo preguiçoso, magro e áspero, bem dentro dela, inteiramente seco, como um sorriso sem saliva, como olhos sem sono e enervados, aquilo confirmava-se diante da montanha pa­rada. O que não conseguiria pegar com a mão es­tava agora glorioso e alto e livre e era inútil tentar resumir: ar puro, tarde de verão. Porque havia segu­ramente mais do que isso. Uma vitória inútil sobre as árvores folhudas, um sem que fazer de todas as coisas. Oh, Deus. Isso, sim, isso: se existisse Deus, é que ele teria desertado daquele mundo subitamen­te, excessivamente limpo, como uma casa ao sába­do, quieta, sem poeira, cheirando a sabão. Joana sorriu. Por que uma casa encerada e limpa deixava-a perdida como num mosteiro, desolada, vagando pe­los corredores? E muitas coisas que observava ainda. Assim, se suportava o gelo sobre o fígado, era atra­vessada por sensações longínquas e agudas, por idéias luminosas e rápidas, e se então tivesse que falar diria: sublime, com as mãos estendidas para frente, talvez os olhos cerrados.
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A Hora da Estrela (trecho)

terça-feira, maio 06, 2008

Devo dizer que essa moça não tem consciência de mim, se tivesse teria para quem rezar e seria a salvação.
Mas eu tenho plena consciência dela: através dessa jovem dou o meu grito de horror à vida. A vida que tanto amo.
Volto à moça: o luxo que se dava era tomar um gole frio de café antes de dormir. Pagava o luxo tendo azia ao acordar.
Ela era calada (por não ter o que dizer) mas gostava de ruídos. Eram vida. Enquanto o silêncio da noite assustava: parecia que estava prestes a dizer uma palavra fatal. Durante a noite na rua do Acre era raro passar um carro, quanto mais buzinassem; melhor para ela. Além desses medos, como se não bastassem, tinha medo grande de pegar doença ruim lá embaixo dela - isso, a tia lhe ensinara. Embora os seus pequenos óvulos tão murchos. Tão, tão. Mas vivia em tanta mesmice que de noite não se lembrava do que acontecera de manhã. Vagamente pensava de muito longe e sem palavras o seguinte: já que sou, o jeito é ser. [...]