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quarta-feira, dezembro 02, 2009

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O azul celeste do enigma na noite emudecido

segunda-feira, outubro 19, 2009

Espaço Clarice - Fãs.

Sobre o texto:

Arranjo: Keidy Costa
Contato: http://keidylee.blogspot.com
A poesia "O azul celeste do enigma na noite emudecido" é um arranjo de trechos das obras de Clarice Lispector, Cecília Meireles, Vladmir Maiakovski e Affonso Romano de Sant'Anna.

Vê como tudo agora emudeceu,
que tributo de estrelas a noite impôs ao céu
em horas como esta eu me ergo e converso
com os séculos a história do universo.
Mas de que me vale ter casa, parentes, vida?
Sou a terra que estremece? Ou a multidão que avança?
Ó solidão minha, ó limites da criatura!
Meu nome está em mim? No passado ou no futuro?
Ninguém responde. E o fogo avança para meu pequeno enigma. Arranjo
Cheio de "eu sei, eu sei",
de promessa de fidelidade e de apoio mútuo
numa união cerrada e quase má;
uma e simples, nenhum movimento a simbolizava,
era o mistério aceito:
eu gostaria de ser aquele pequeno inseto de olhos luminosos
que a mulher descobriu à noite no gramado
para quem o escuro é o melhor dos mundos.
Na ver¬dade, porém ela não sabia o que lhe sucedia
e seu único modo de sabê-lo era vivendo-o.
Nos telhados os pardais secos.
Não sei se é porque o céu é azul celeste
e a terra, amante, me estende as mãos ardentes
nas calçadas pisadas de minha alma
passadas de loucos estalam calcâneo de frases ásperas.
"Eu vos amo, pessoas", era frase impossível.
A humanidade lhe era como morte eterna
que no entanto não tivesse o alívio de enfim morrer.
Onde forcas esganam cidades
e em nós de nuvens coagulam
pescoço de torres oblíquas e
nada, nada morria na tarde enxuta,
nada apodrecia.
E às seis horas da tarde fazia meio-dia.
Dor? Nenhuma. Nenhum sinal de lágrima e nenhum suor.
Sal nenhum. Só uma doçura pesada:
E o Deus? Não.
Nem mesmo a angústia.
O peito vazio, sem contração.
Não havia grito.

Fontes utilizadas:

*Trecho de “Reparei que a poeira se misturava às nuvens” de Cecília Meireles.
*Trecho de “Fragmentos”, do livro “Maiakovski – Poemas” de Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Boris Schnnaideman.
*Trecho de “A Origem da Primavera ou A Morte Necessária em Pleno Dia”, retirado do livro “Uma aprendizagem ou o Livro dos prazeres” de Clarice Lispector.
*Trecho do livro “O Lustre” de Clarice Lispector.
*Trecho de “Desejos” de Affonso Romano de Sant’Anna, poema recitado na voz de Tônia Carrero no CD “Affonso Romano de Sant'Anna por Tônia Carrero”.

Aniversário do Blog!

domingo, outubro 04, 2009

Dia 03/10 completamos 2 anos de blog!
Para comemorar: http://blogclaricelispector.ning.com

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Releitura do texto "Silêncio", de Clarice Lispector

sábado, agosto 01, 2009

Espaço Clarice - Fãs.

Sobre o texto:

Autoria: Fá Fioretti
Contato: http://devoradoradehistorias.blogspot.com/

É estranho como não se fala sobre nosso silêncio interior.
Temos um misto de vergonha e medo, porque ele é inexplicável e acreditamos que o outro não nos vai entender, pois, mesmo que também o tenha, não admitirá.
Mas, chega o momento em que se aceita o silêncio como o destino final da jornada vivida e, amparado pela coragem, se entra nele e vive o silêncio como se tudo vivido antes fosse um ensaio para o que se viveria agora.
O silêncio total, o vasto silêncio de quando nos deixamos reconhecer, só chega quando nada mais pode atrapalhá-lo e ele, introspectivo, não sente temor de se mostrar e se assumir como realmente é.
Ocorre o medo de ter o desabrochar, despertado pelo silêncio, interrompido por algum som desavisado que se propaga no mundo exterior, mas não repercute em nosso interior.
E então o silêncio chega, aquele silêncio que, nas horas de maior ardor, imaginamos como o amante proibido e que se revela como nosso algoz, pois não chega para a troca de confidências e sim para nos fazer calar, enquanto aperta sem piedade nossas feridas.
Mas, o dia raiará novamente e o silêncio irá dormir, e sua passagem pela noite será apenas uma lembrança a espiá-lo pela fresta de uma memória sentida, do tempo passado em comunicação aterrorizadora consigo mesmo. E, nesse momento, o silêncio será mais um fantasma dentre tantos na vida.

Homenagem à Clarice Lispector

terça-feira, julho 28, 2009

Espaço Clarice - Fãs.

Sobre o texto:

Autoria: Rodrigo Mendes Rosa
Contato: http://reflexosemreflexoes.blogspot.com

Essa mulher que come palavras com colher
e segura nas frases com as mãos!
Não lhe ensinaram que o sentido pertence ao dicionário?
Vocábulos são átomos sujeitos a regras,
gramática é a Física da literatura.
Não se pode sair assim juntando coisas.
É feio.
Corre-se o risco de inventar algo novo,
quem sabe perigoso e mortal.
Experimentos com palavras já provocaram reação em cadeia,
é preciso ter cuidado.
Ou pior,
nesse tempo de piratas e sequestro relâmpago,
imaginem se capturam e exigem resgate por alguma palavra estimada?
Por isso eu sempre acompanho minhas palavras
quando elas vão passear no parque.
Não convém deixá-las sozinhas um segundo sequer.
De noite eu as cubro e canto belas canções.
Sabe palavra só pega no sono acompanhada.
Graças a Clarice descobri esse hábitos estranhos das palavras.
Hoje eu também não as como com garfo e faca,
afinal pra participar desse banquete basta ter boca.

Espaço Clarice - Fãs!

terça-feira, julho 28, 2009

Essa página publicará textos da autoria de fãs de Clarice Lispector.

Para enviar seu texto deixe-o como comentário nessa postagem.

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° Artigos;
° Contos;
° Crônicas;
° Ensaios;
° Homenagens;
° Poesias;
° Prosa poética;
° Resenhas e etc.

Importante:

° Os textos deverão ser identificados;
° Deixe claro que o texto é para o Espaço Clarice;
° A divulgação de links (blog/e-mail/site) é opcional.

Espaço Clarice!

quinta-feira, julho 23, 2009

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"Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve. Não sei o que, mas sei que o universo jamais começou. Que ninguém se engane, só consigo a simplicidade através de muito trabalho." (C.L.)

Uma Galinha

segunda-feira, julho 06, 2009

Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove horas da manhã.

Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Não olhava para ninguém, ninguém olhava para ela. Mesmo quando a escolheram, apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda ou magra. Nunca se adivinharia nela um anseio.

Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto vôo, inchar o peito e, em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um instante ainda vacilou — o tempo da cozinheira dar um grito — e em breve estava no terraço do vizinho, de onde, em outro vôo desajeitado, alcançou um telhado. Lá ficou em adorno deslocado, hesitando ora num, ora noutro pé. A família foi chamada com urgência e consternada viu o almoço junto de uma chaminé. O dono da casa, lembrando-se da dupla necessidade de fazer esporadicamente algum esporte e de almoçar, vestiu radiante um calção de banho e resolveu seguir o itinerário da galinha: em pulos cautelosos alcançou o telhado onde esta, hesitante e trêmula, escolhia com urgência outro rumo. A perseguição tornou-se mais intensa. De telhado a telhado foi percorrido mais de um quarteirão da rua. Pouco afeita a uma luta mais selvagem pela vida, a galinha tinha que decidir por si mesma os caminhos a tomar, sem nenhum auxílio de sua raça. O rapaz, porém, era um caçador adormecido. E por mais ínfima que fosse a presa o grito de conquista havia soado.

Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada. Às vezes, na fuga, pairava ofegante num beiral de telhado e enquanto o rapaz galgava outros com dificuldade tinha tempo de se refazer por um momento. E então parecia tão livre.

Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga. Que é que havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? A galinha é um ser. É verdade que não se pode¬ria contar com ela para nada. Nem ela própria contava consigo, como o galo crê na sua crista. Sua única vantagem é que havia tantas galinhas que morrendo uma surgiria no mesmo instante outra tão igual como se fora a mesma.

Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz alcançou-a. Entre gritos e penas, ela foi presa. Em seguida carregada em triunfo por uma asa através das telhas e pousada no chão da cozinha com certa violência. Ainda tonta, sacudiu-se um pouco, em cacarejos roucos e indecisos. Foi então que aconteceu. De pura afobação a galinha pôs um ovo. Surpreendida, exausta. Talvez fosse prematuro. Mas logo depois, nascida que fora para a maternidade, pare¬cia uma velha mãe habituada. Sentou-se sobre o ovo e assim ficou, respirando, abotoando e desabotoando os olhos. Seu coração, tão pequeno num prato, solevava e abaixava as penas, enchendo de tepidez aquilo que nunca passaria de um ovo. Só a menina estava perto e assistiu a tudo estarrecida. Mal porém conseguiu desvencilhar-se do acontecimento, despregou-se do chão e saiu aos gritos:

— Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! ela quer o nosso bem!

Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem parturiente. Esquentando seu filho, esta não era nem suave nem arisca, nem alegre, nem triste, não era nada, era uma galinha. O que não sugeria nenhum sentimento especial. O pai, a mãe e a filha olhavam já há algum tempo, sem propriamente um pensamento qualquer. Nunca ninguém acariciou uma cabeça de galinha. O pai afinal decidiu-se com certa brusquidão:

— Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na minha vida!

— Eu também! jurou a menina com ardor. A mãe, cansada, deu de ombros.

Inconsciente da vida que lhe fora entregue, a galinha passou a morar com a família. A menina, de volta do colégio, jogava a pasta longe sem interromper a corrida para a cozinha. O pai de vez em quando ainda se lembrava: "E dizer que a obriguei a correr naquele estado!" A galinha tornara-se a rainha da casa. Todos, menos ela, o sabiam. Continuou entre a cozinha e o terraço dos fundos, usando suas duas capacidades: a de apatia e a do sobressalto.

Mas quando todos estavam quietos na casa e pareciam tê-la esquecido, enchia-se de uma pequena coragem, resquícios da grande fuga — e circulava pelo ladrilho, o corpo avançando atrás da cabeça, pausado como num campo, embora a pequena cabeça a traísse: mexendo-se rápida e vibrátil, com o velho susto de sua espécie já mecanizado.

Uma vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo a galinha que se recortara contra o ar à beira do telhado, prestes a anunciar. Nesses momentos enchia os pulmões com o ar impuro da cozinha e, se fosse dado às fêmeas cantar, ela não cantaria mas ficaria muito mais contente. Embora nem nesses instantes a expressão de sua vazia cabeça se alterasse. Na fuga, no descanso, quando deu à luz ou bicando milho — era uma cabeça de galinha, a mesma que fora desenhada no começo dos séculos.

Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos.

Fotos

sexta-feira, julho 03, 2009


Fotos

sábado, junho 06, 2009





Fotos

sábado, junho 06, 2009





Crítica Leve

sábado, junho 06, 2009

- No livro de Pelé as coisas vão acontecendo, e depois acontecendo, e depois acontecendo. É diferente do seu, porque você fica só inventando. O seu é mais difícil de fazer, mas o dele é melhor.

Crítica Pesada

sábado, junho 06, 2009

- Vou fazer um conto imitando você. E vai ser na máquina também: menina mendiga.
Era uma coisa. Quieta, bonita, sozinha. Encurralada naquele canto, sem mais, nem menos. Pedia dinheiro com intimidez. Só lhe restava isso: Meio biscoito e um retrato de sua mãe, que havia morrido há 3 dias.

O Recrutamento

sábado, junho 06, 2009

Os passos estão se tornando mais nítidos. Um pouco mais próximos. Agora soam quase perto. Ainda mais. Agora mais perto do que poderiam estar de mim. No entanto continuam a se aproximar. Agora não estão mais perto, estão em mim. Vão me ultrapassar e prosseguir? É a minha esperança. Não sei mais com que sentido percebo distâncias. É que os passos agora não estão apenas próximos e pesados. Já não estão apenas em mim. Eu marcho com eles.

Conversa com Filho

sábado, junho 06, 2009

- Sabe, eu tinha vontade, mamãe, de experimentar às vezes ficar doido.
- Mas pra quê? (Eu sei, eu sei o que você vai dizer, sei porque em mim o meu bisavô deve ter dito o mesmo, eu sei que é através de quinze gerações que uma só pessoa se forma, e que essa futura pessoa me usou para me atravessar e usará o filho de meu filho, assim como um pássaro pousado numa seta que vagarosamente avança.)
- Pra me libertar, assim eu ficava livre...
(Mas haverá a liberdade sem a prévia permissão da loucura. Nós ainda não podemos: somos apenas os gradativos passos dela, dessa pessoa que vem.)

Dois Modos

sábado, junho 06, 2009

Como se eu procurasse não aproveitar a vida imediatamente, mas só a mais profunda, o que me dá dois modos de ser: em vida, observo muito, sou "ativa" nas observações, tenho o senso do ridículo, do bom humor, da ironia, e tomo um partido. Escrevendo, tenho observações "passivas", tão interiores que "se escrevem" ao mesmo tempo em que são sentidas quase sem o que se chama de processo. É por isso que no escrever eu não escolho, não posso me multiplicar em mil, me sinto fatal a despeito de mim.

Era uma Vez

sábado, junho 06, 2009

Respondi que gostaria mesmo era de poder um dia afinal escrever uma história que começasse assim: "era uma vez...". Para crianças? perguntaram. Não, para adultos mesmo, respondi já distraída, ocupada em me lembrar de minhas primeiras histórias aos sete anos, todas começando com "era uma vez"; eu as enviava para a página infantil das quintas-feiras do jornal de Recife, e nenhuma, mas nenhuma, foi jamais publicada. E era fácil de ver por quê. Nenhuma contava propriamente uma história com os fatos necessários a uma história. Eu lia as que eles publicavam, e todas relatavam um acontecimento. Mas se eles eram teimosos, eu também.
Mas desde então eu havia mudado tanto, quem sabe eu agora já estava pronta para o verdadeiro "era uma vez". Perguntei-me em seguida: e por que não começo? agora mesmo? Seria simples, senti eu.
E comecei. Ao ter escrito a primeira frase, vi imediatamente que ainda me era impossível. Eu havia escrito:
"Era uma vez um pássaro, meu Deus".

A Mudez Cantada, a Mudez Dançada

sábado, maio 23, 2009

Quase não era canto, no sentido em que este é aproveitamento musical da voz. Quase não era voz, no sentido em que esta tende a dizer palavras. É antes da voz ainda, é fôlego. Uma palavra ou outra às vezes escapava, revelando de que era feita aquela mudez cantada: de história de viver, amar, e morrer. Essas três palavras não ditas eram interrompidas por lamentos e modulações. Modulações de fôlego, primeiro estágio de voz que capta o sofrimento no seu primeiro estágio de gemido, e capta a alegria no seu primeiro estágio de gemido. E de grito. E mais outro grito, este de alegria por se ter gritado. Em torno à assistência aconchegava-se escura e suja. Depois de uma das modulações que de tão prolongada morre em suspiro, o grupo esgotado como cantor murmura um "olé" em amém, última brasa.
Mas há também o canto impaciente que a voz apenas não exprime: então um sapateado nervoso e firme o entrecorta, o "olé" que interrompe a cada instante não é mais amém, é incitamento, é touro negro.

Brasília

sábado, maio 23, 2009

Brasília é construída na linha do horizonte. – Brasília é artificial. Tão artificial como devia ter sido o mundo quando foi criado. Quando o mundo foi criado, foi preciso criar um homem especialmente para aquele mundo. Nós somos todos deformados pela adaptação à liberdade de Deus. Não sabemos como seríamos se tivéssemos sido criados em primeiro lugar, e depois o mundo deformado às nossas necessidades. Brasília ainda não tem o homem de Brasília. – Se eu dissesse que Brasília é bonita, veriam imediatamente que gostei da cidade. Mas de digo que Brasília é a imagem de minha insônia, vêem nisso uma acusação; mas a minha insônia não é bonita nem feia – minha insônia sou eu, é vivida, é o meu espanto. Os dois arquitetos não pensaram em construir beleza, seria fácil; eles ergueram o espanto deles, e deixaram o espanto inexplicado. A criação não é uma compreensão, é um novo mistério. – Quando morri,um dia abri os olhos e era Brasília. Eu estava sozinha no mundo. Havia um táxi parado. Sem chofer. – Lucio Costa e Oscar Niemeyer, dois homens solitários. – Olho Brasília como olho Roma: Brasília começou com uma simplificação final de ruínas. A hera ainda não cresceu. – Além do vento há uma outra coisa que sopra. Só se reconhece na crispação sobrenatural do lago. – Em qualquer lugar onde se está de pé, criança pode cair, e para fora do mundo. Brasília fica à beira. – Se eu morasse aqui, deixaria meus cabelos crescerem até o chão. – Brasília é de um passado esplendoroso que já não existe mais. Há milênios desapareceu esse tipo de civilização. No século IV a.C. era habitada por homens e mulheres louros e altíssimos, que não eram americanos nem suecos, e que faiscavam ao sol. Eram todos cegos. É por isso que em Brasília não há onde esbarrar. Os brasiliários vestiam-se de ouro branco. A raça se extinguiu porque nasciam poucos filhos. Quanto mais belos os brasiliários, mais cegos e mais puros e mais faiscantes, e menos filhos. Não havia em nome de que morrer. Milênios depois foi descoberta por um bando de foragidos que em nenhum outro lugar seriam recebidos; eles nada tinham a perder. Ali acenderam fogo, armaram tendas, pouco a pouco escavando as areias que soterravam a cidade. Esses eram homens e mulheres menores e morenos, de olhos esquivos e inquietos, e que, por serem fugitivos e desesperados, tinham em nome de que viver e morrer. Eles habitaram as casas em ruínas, multiplicaram-se, constituindo uma raça humana muito contemplativa. – Esperei pela noite, noite veio, percebi com horror que era inútil: onde eu estivesse, eu seria vista. O que me apavora é: é vista por quem? – Foi construída sem lugar para ratos. Toda uma parte nossa, a pior, exatamente a que tem horror de ratos, essa parte não tem lugar em Brasília. Eles quiseram negar que a gente não presta. Construções com espaço calculado para as nuvens. O inferno me entende melhor. Mas os ratos, todos muito grandes, estão invadindo. Essa é uma manchete nos jornais. – Aqui eu tenho medo. – Este grande silêncio visual que eu amo. Também a minha insônia teria criado esta paz do nunca. Também eu, como eles dois que são monges, meditaria nesse deserto. Onde não há lugar para as tentações. Mas vejo ao longe urubus sobrevoando. O que estará morrendo meu Deus? – Não chorei nenhuma vez em Brasília. Não tinha lugar. – É uma praia sem mar. – Mamãe, está bonito ver você de pé com esse capote branco voando (É que morri, meu filho). – Uma prisão ao ar livre. De qualquer modo não haveria pra onde fugir. Pois quem foge iria provavelmente para Brasília. Prenderam-me na liberdade. Mas liberdade é só que se conquista. Quando me dão, estão me mandando ser livre. – Todo um lado de frieza humana que eu tenho, encontro em mim aqui em Brasília, e floresce gélido, potente, força gelada da Natureza. Aqui é o lugar onde os meus crimes (não os piores, mas os que não entenderei em mim), onde os meus crimes não seriam de amor. Vou embora para os meus outros crimes, os que Deus e eu compreendemos. Mas sei que voltarei. Sou atraída aqui pelo que me assusta em mim. – Nunca vi nada igual no mundo. Mas reconheço esta cidade no mais fundo de meu sonho. O mais fundo de meu sonho é uma lucidez. – Pois como eu ia dizendo, Flash Gordon... – Se tirasse meu retrato em pé em Brasília, quando revelassem a fotografia só sairia a paisagem. – Cadê as girafas de Brasília? – Certa crispação minha, certos silêncios, fazem meu filho dizer: puxa vida, os adultos são de morte. – É urgente. Se não for povoada, ou melhor, superpovoada, uma outra coisa vai habitá-la.
[...]

Mentir, pensar

segunda-feira, abril 27, 2009

O pior de mentir é que cria falsa verdade. (Não, não é tão óbvio como parece, não é truísmo; sei que estou dizendo uma coisa e que apenas não sei dizê-la do modo certo, aliás, o que me irrita é que tudo tem de ser "do modo certo", imposição muito limitadora.) O que é mesmo que eu estava tentando pensar? Talvez isso: se a mentira fosse apenas a negação da verdade, então este seria um dos modos (negativos) de dizer a verdade. Mas a mentira pior é a mentira "criadora". (Não há dúvida: pensar me irrita, pois antes de começar a pensar eu sabia muito bem o que eu sabia.)

Monet

segunda-feira, abril 27, 2009

Estou ouvindo música. Debussy usa as espumas do mar morrendo na areia, refluindo e fluindo. Bach é matemático. Mozart é o divino impessoal. Chopin conta a sua vida mais íntima. Schoenberg, através de seu eu, atinge o clássico eu de todo o muno. Beethoven é a emulsão humana em tempestade procurando o divino e só o alcançando na morte. Quanto a mim, que não peço música, só chego ao limiar da palavra nova. Sem coragem de expô-la. Meu vocabulário é triste e às vezes wagneriano-polifónico-paranóico. Escrevo muito simples e muito nu. Por isso fere. Sou uma paisagem cinzenta e azul. Elevo-me na fonte seca e na luz fria.

Medo da Eternidade

segunda-feira, abril 27, 2009

Jamais esquecerei o meu aflitivo e dramático contato com a eternidade.
Quando eu era muito pequena ainda não tinha provado chicles e mesmo em Recife falava-se pouco deles. Eu nem sabia bem de que espécie de bala ou bombom se tratava. Mesmo o dinheiro que eu tinha não dava para comprar: com o mesmo dinheiro eu lucraria não sei quantas balas.
Afinal minha irmã juntou dinheiro, comprou e ao sairmos de casa para a escola me explicou:
- Como não acaba? - Parei um instante na rua, perplexa.
- Não acaba nunca, e pronto.
- Eu estava boba: parecia-me ter sido transportada para o reino de histórias de príncipes e fadas. Peguei a pequena pastilha cor-de-rosa que representava o elixir do longo prazer. Examinei-a, quase não podia acreditar no milagre. Eu que, como outras crianças, às vezes tirava da boca uma bala ainda inteira, para chupar depois, só para fazê-la durar mais. E eis-me com aquela coisa cor-de-rosa, de aparência tão inocente, tornando possível o mundo impossível do qual já começara a me dar conta.
- Com delicadeza, terminei afinal pondo o chicle na boca.
- E agora que é que eu faço? - Perguntei para não errar no ritual que certamente deveira haver.
- Agora chupe o chicle para ir gostando do docinho dele, e só depois que passar o gosto você começa a mastigar. E aí mastiga a vida inteira. A menos que você perca, eu já perdi vários.
- Perder a eternidade? Nunca.
O adocicado do chicle era bonzinho, não podia dizer que era ótimo. E, ainda perplexa, encaminhávamo-nos para a escola.
- Acabou-se o docinho. E agora?
- Agora mastigue para sempre.
Assustei-me, não saberia dizer por quê. Comecei a mastigar e em breve tinha na boca aquele puxa-puxa cinzento de borracha que não tinha gosto de nada. Mastigava, mastigava. Mas me sentia contrafeita. Na verdade eu não estava gostando do gosto. E a vantagem de ser bala eterna me enchia de uma espécie de medo, como se tem diante da idéia de eternidade ou de infinito.
Eu não quis confessar que não estava à altura da eternidade. Que só me dava aflição. Enquanto isso, eu mastigava obedientemente, sem parar.
Até que não suportei mais, e, atrevessando o portão da escola, dei um jeito de o chicle mastigado cair no chão de areia.
- Olha só o que me aconteceu! - Disse eu em fingidos espanto e tristeza. - Agora não posso mastigar mais! A bala acabou!
- Já lhe disse - repetiu minha irmã - que ela não acaba nunca. Mas a gente às vezes perde. Até de noite a gente pode ir mastigando, mas para não engolir no sono a gente prega o chicle na cama. Não fique triste, um dia lhe dou outro, e esse você não perderá.
Eu estava envergonhada diante da bondade de minha irmã, envergonhada da mentira que pregara dizendo que o chicle caíra na boca por acaso.
Mas aliviada. Sem o peso da eternidade sobre mim.

O Lustre (trecho)

terça-feira, março 17, 2009

Com a mala pousada no chão ela esperou um instante na esquina. Sim, agora tomar um táxi, procurar Miguel, pedir o dinheiro da venda dos móveis, sim, sim. Mas suspirou imóvel e atenta. O rosto empoeirado sob o chapéu ligeiramente deslocado da cabeça parecia obscuro e oprimi­do por um vago temor. O que sucedia? por que desfalecia todo o seu passado e começava horrivelmente um tempo novo? De súbito começou a transpirar, o estômago encolheu-se numa só onda de enjôo, ela respira­va terrivelmente opressa e arquejante — o que lhe sucedia? ou o que ia suceder? Num esforço em que o peito parecia suportar um viscoso peso, com um mal-estar inexcedível, atravessou pálida a rua e o carro dobrou a esquina, ela recuou um passo, o carro hesitou, ela avançou e o carro veio em luz, ela o percebeu com um choque de calor sobre o corpo e uma queda sem dor enquanto o coração olhava surpreso para nenhum lugar e um grito de homem vinha de alguma direção — era veloz­mente o mesmo dia há três anos quando estacara para a frente impedindo-se por um triz de pisar num gatinho rígido e morto e o coração retrocedera enquanto, com os olhos, por um instante profundamente cerrados de asco, todo o seu corpo dizia para dentro de si mesmo num escuro e cavo momento, bem no oco sonoro de uma igreja silenciosa: arrh! em funda náusea vivificada o coração retrocedendo branco e sólido numa queda seca, arrh! E como pensasse escura em Vicente viu Adriano, Vicente, Mi­guel, Daniel — Daniel, Daniel! numa corrida clara e vertiginosa pelas ruas da cidade como um vento de cabelos soltos, entrou um instante na Granja, balançou-se rápido, rápido na cadeira e com absoluta estranheza olhou-se branca e de olhos escuros num espelho — longos corredores formavam-se no seu interior, longos corredores cansados, difíceis e escuros, portas su­cessivas cerravam-se sem ruído com espanto e cuidado enquanto um mo­mento de cólera de Daniel era pensado por ela e os instantes claramente se sucediam — ela e Daniel mastigaram o fim da fruta que escorria pelo queixo e olhavam-se de olhos brilhantes e inteligentes, quase um gostando do que o outro comia, fazia frio, o nariz vermelho e penoso no pátio da Granja; ela dirigiu um estremecimento a Daniel. Ela que nunca perdera tempo — confuso, surdo, rápido, claro, dissonante, o ruído que vem da orquestra afinando-se e se afinando para o concerto e um movimento de bem-estar procurando conforto, o coração insólito. O que sucedia era tão simples que ela não sabia donde entender. Na gelada penumbra corre­dores negros, estreitos, vazios e úmidos, uma substância dormente e silen­ciosa: e de súbito! de súbito! de súbito! a borboleta branca volitando nos corredores sombrios, perdendo-se no fim da escuridão. Ela desejava obs­curamente interromper-se, ela desejava obscuramente interromper-se. A rua fumegava fria e sonolenta, seu próprio coração surpreendia-se, a cabe­ça pesada, pesada de graça atordoante — enquanto as ruas de Brejo Alto se encaminhavam velozes e vacilantes no seu cheiro de maçã, serra­gem, importação e exportação, aquela falta do mar. E de súbito arrebatada pelo próprio espírito. Era um momento extremamente íntimo e estranho — ela reconhecia tudo isto, quantas vezes, quantas vezes o ensaiara sem saber, e agora, extraordinariamente quieta, purificada das próprias fontes de energia, entregando mesmo as possibilidades futuras — ah, não ter então reconhecido aquela espécie de gesto, quase uma posição do pensa­mento, a cabeça inclinada para um lado, assim, assim... não lhe ter dado importância então... como se assustaria se o tivesse compreendido — mas agora não estava assustada, o impulso era inferior à qualidade mais secreta do ser, na gelada penumbra nascendo uma nova exatidão; não! não! não era uma sensação decadente! mas desejando obscuramente, obscuramen­te interromper-se, a dificuldade, a dificuldade que vinha do céu, que vinha. O primeiro acontecimento real, o único fato que serviria de começo à sua vida, livre como jogar um cálice de cristal pela janela, o movimento irresistível que não se poderia mais conter. Também procurava ensaiar quando buscava perceber o cheiro nas construções ensaiara o cheiro na meia penumbra, cal, madeira, ferro frio poeira assentada espreitando... como pudera esquecer: sim... O campo vazio de ervas ao vento sem ela, inteiramente sem ela, sem ela, sem nenhuma sensação só o vento, a irrea­lidade se aproximando em cores iridescentes, em velocidade alta, leve, penetrante. Névoas se esgarçando e descobrindo formas firmes um som mudo rebentando da intimidade adivinhada das coisas o silêncio compri­mindo partículas de terra em escuridão e negras formigas lentas e altas caminhando sobre grossos grãos de terra, o vento correndo alto adiante, um cubo límpido pairando no ar e a luz correndo paralela a todos os pontos, era presente, assim fora, assim seria, e o vento, o vento, ela que fora tão constante.

O Lustre (trecho)

terça-feira, março 17, 2009

Levantou-se, caminhou com o barulho das rodas, os movimentos inclinados contra a direção do trem; de algum modo achava divertido o esforço que fazia e talvez por isso sorriu como se completasse algum desígnio; penetrou no carro restaurante, pediu café ajeitando o chapéu empoeirado, assumindo vagamente uma atitude de pessoa alta, grande e bem disposta. Sentia uma clara paz aberta como um campo ignorado e tranqüilo; aos poucos esqueceu-se de si própria e passou a observar com dócil interesse as coisas do trem, uma mulher mastigando. Raras fagulhas atravessavam com rápida violência as janelas, aquele já-já-já das rodas que pareciam um rumor interno. Entardecia, o trem corria pelos campos já sem cor. O restaurante estava quase vazio, sobre as toalhas manchadas as moscas pousavam, tudo era áspero e seco de poeira. Foi com um sobressalto que notou o próprio abandono. Perscrutou-se com ligeira ansiedade. Alguma coisa imperceptível já se transformara no entan­to. Com alguma inquietação ela se escutava, o ser acordado, profunda­mente intranqüilo. Atentava de leve; desvanecera-se a naturalidade das coisas ao seu redor, como o último laivo de morno prazer sonolento ao lavar o rosto, agora a própria existência era sacudida, dura e várias vezes quebrada. Ela mesma sentia-se intimamente sem conforto, as entranhas despertas como se tivesse os sapatos molhados ou a roupa suada presa às costas — num desgosto desassossegado afastou-se do encosto do ban­co. Compreendia numa decepção sem força e estupefata, já um começo de profundo cansaço fulgurando nos olhos, compreendia que não chegara a nenhuma posse, que a partida para a cidade não era simbólica. E a sensação que experimentara há poucos minutos? buscava ela esperanço­sa. Mas não, não — e ela não estava à altura de compreender seus pensa­mentos — na verdade o que havia de intocado, desperto e confuso nela mesma ainda tinha forças para fazer nascer um tempo de espera mais longo que o da infância até os seus dias, de tal modo ela não chegara a nenhum ponto, dissolvida vivendo — isso assustava-a cansada e deses­perada do próprio fluir instável e isso era algo horrivelmente inegável, e isso no entanto a aliviava de um modo estranho, como a sensação a cada manhã de não ter morrido à noite. Com um despercebido movimen­to de desânimo perguntava-se confusamente se esqueceria para sempre o que sentira afinal de tão firme e sereno e cuja espécie já agora ela não podia precisar com nitidez, num começo de esquecimento. Não, não es­queceria, agarrava-se ela a si mesma sem saber, apenas como usá-lo? como viver disso? jamais poderia gastá-lo e isso era também algo inegável, o trem carregava-a para a frente como perdendo-a de si própria, as rodas resfolegavam, o rapaz do restaurante inclinava o corpo segundo o movi­mento do vagão, equilibrando-se, desequilibrando-se, o café, era quente, sim, certamente a primeira vez no mundo que num vagão restaurante alguém conseguia tomar café quente, o que era uma coisa de se sacudir a cabeça de leve, surpresa, como ela fazia agora agitando a fita vermelha do chapéu marrom.

Maio - A perigosa Yara

domingo, março 01, 2009

Ao cair de todas as tardes, a Yara, que mora no fundo das águas, surge de dentro delas, magnífica. Com flores aquáticas enfeita então os cabelos negros e brinca com os peixinhos de escapole-escapole. Mas no mês de maio ela aparece ao pôr-do-sol para arranjar noivo.
As mães se preocupam com seus filhos varões, sabedoras de que a Yara quer noivos. Mas para os filhos, Yara é a tentação da aventura, pois há rapazes que gostam de perigo.
À medida que a Yara canta, mais inquietos e atraídos ficam os moços, que, no entanto, não ousam se arriscar.
Sim, mas houve um dia um Tapuia sonhador e arrojado. Pensativamente estava pescando e esqueceu-se de que o dia estava acabando e que as águas já se amansavam. Foi quando pensou: acho que estou tendo uma ilusão. Porque a morena Yara, de olhos pretos e faiscantes, erguera-se das águas. O Tapuia teve o medo que todo o mundo tem das sereias arriscadas — largou a canoa e correu a abrigar-se na taba. Mas de que adiantava fugir, se o feitiço da Flor das Águas já o enovelara todo? Lembrava-se do fascínio de seu cantarolar e sofria de saudade. A mãe do Tapuia adivinhara o que acontecia com o filho: examinava-o e via nos seus olhos a marca da fingida sereia.
Enquanto isso, Yara, confiante no seu encanto, esperava que o índio tivesse coragem de casar-se com ela. Pois — ainda nesse mês de florido e perfumado maio — o índio fugiu da taba e de seu povo, entrou de canoa no rio. E ficou esperando de coração trêmulo.
Então — então a Yara veio vindo devagar, devagar, abriu os lábios úmidos e cantou suave a sua vitória, pois já sabia que arrastaria o Tapuia para o fundo do rio.
Os dois mergulharam e advinha-se que houve festa no profundo das águas.
As águas estavam de superfície tranqüila como se nada tivesse acontecido. De tardinha, aparecia a morena das águas a se enfeitar com rosas e jasmins.
Porque um só noivo, ao que parece, não lhe bastava.
Esta história não admite brincadeiras. Que se cuidem certos homens.

Gertrudes Pede um Conselho

quarta-feira, fevereiro 11, 2009

[...]
“Libertar” era uma palavra imensa, cheia de mistérios e dores. Como fora amena há dias, quando se destinava a outro papel? Outro, qual? Tudo era confuso e só se exprimia bem na palavra “liberdade” e nos passos pesados e firmes, no rosto fechado que adotava. À noite não dormia até que os galos longínquos começassem a cantar. Não pensava, propriamente. Sonhava acordada. Imaginava um futuro em que, audaciosa e fria, conduziria uma multidão de homens e mulheres, cheios de fé quase a adorá-la. Depois, pelo meio da noite, deslizava para uma meia inconsciência, onde tudo era bom, a multidão já conduzida, uma ausência de aulas, um quarto só seu, muitos homens a amá-la. Acordava amarga, notando com alegria reprimida que não se interessava pelo bolo que as irmãs devoravam animalmente, com irritante despreocupação.
Vivia então os seus dias gloriosos. E chegava ao auge com algum pensamento que a exaltava e a mergulhava em misticismo ardente: “Entrar para um convento! Salvar os pobres, ser enfermeira!” Imaginava-se já vestindo o hábito negro, o rosto pálido, os olhos piedosos e humildes. As mãos, aquelas mãos implacavelmente coradas e largas, emergindo, brancas e finas, das longas mangas. Ou então, com a touca alva, olheiras cavadas pelas noites não dormidas. Entregando ao médico, silenciosa e rapidamente, os ferros de operar. Ele a miraria com admiração, simpatia mesmo, e quem sabe? Amor até.
Mas, impossível ser grande num ambiente como o seu. Interrompiam-na com as observações mais banais: “Já tomou banho, Tuda?” Ou, senão, o olhar das pessoas de casa. Um olhar simples, distraído, completamente alheio ao nobre fogo que ardia dentro dela. Quem poderia persistir, pensava acabrunhada, junto de tanta vulgaridade?
E, além disso, por que não “aconteciam coisas”? Tragédias, belas tragédias…
Até que descobriu a doutora. E antes de conhecê-la, já lhe pertencia. De noite mantinha longa conversas imaginárias com a desconhecida. De dia, escrevia-lhe cartas. Até que foi chamada: viam afinal que ela era alguém, uma extraordinária, uma incompreendida!
Até o dia marcado para a entrevista, Tuda não se sentiu. Viveu numa atmosfera de febre e de ansiedade. Uma aventura. Compreendem bem? Uma aventura.
Não tardaria a entrar no escritório. Vai ser assim: ela é alta, tem os cabelos curtos, olhos fortes, um busto grande. Um pouquinho gorda. Mas ao mesmo tempo parecida com Diana, a Caçadora, da sala de visitas.
Ela sorri. Eu fico séria.
- Boa tarde.
- Boa tarde, minha filha (não seria melhor: boa tarde, irmã? Não, não se usa).
- Vim aqui por excesso de audácia, confiando na bondade e compreensão da senhora. Tenho dezessete anos e acho que já posso começar a viver.
Duvidava que tivesse tanta coragem. E mesmo o que a doutora tinha, afinal, a ver com ela? Mas, não. Aconteceria alguma coisa. Dar-lhe-ia trabalho, por exemplo. Poderia mandá-la viajar para colher dados sobre… sobre a mortalidade infantil, suponhamos, ou sobre os salários dos homens do campo. Ou poderia dizer:
- Gertrudes, você terá um papel muito maior na vida. Você fará…
O quê? Afinal, o que é grande? Tudo acaba… Não sei, a doutora vai falar.
De repente… O rapazinho coçou a orelha e disse, o ar velho que as pessoas teimavam em emprestar aos fatos excitantes e novos:
- Pode entrar…
Tuda atravessou a sala, sem respirar. E encontrou-se diante da doutora.
Estava sentada junto à mesa, rodeada de livros e papeia. Uma estranha, séria, com uma vida própria, que Tuda não conhecia.
Fingiu arrumar a mesa.
- Então? – disse depois. – Uma menina chamada Gertrudes… – Riu. – Por que é que se lembrou de vir a mim, procurar trabalho? – iniciou, com o tato que lhe valera o lugar de conselheira na revista.
Miúda, cabelos pretos enrolados em dois cachos sobre a nuca. O batom pintando um pouco pra fora dos lábios, numa tentativa de sensualidade. O rosto calmo, as mãos irrequietas. Tuda sentiu vontade de fugir.
Há muitos anos saíra de casa.
A doutora falava, falava, a voz levemente rouca, o olhar vago. Sobre diversos assuntos. Os últimos filmes, as jovens modernas, sem orientação, más leituras, sei lá, muitas coisas. Tuda também falava. Deixara de palpitar e a sala, a doutora tomavam aos poucos uma disposição mais compreensível. Tuda contou alguns segredos, sem importância. Sua mãe, por exemplo, não gostava que ela saísse à noite, alegando sereno. Precisava operar a garganta e vivia resfriada. Mas o pai dizia que há males que vêm para o bem e que as amígdalas eram uma defesa o organismo. E também, o que a natureza criara tinha sua função.
A doutora brincava com o lápis.
- Bem, agora já conheço você mais ou menos. Na sua carta falou num apelido? Tudes, Tuda…
Tuda corou. Então a estranha falou-lhe das cartas. Não podia ouvir bem porque ficou tonta e o coração achou de lhe pulsar exatamente nos ouvidos. “Idade difícil… todos são… quando menos se espera…”
- Essa inquietação, tudo que você sente é mais ou menos normal, vai passar. Você é inteligente e vai compreender o que vou lhe explicar. A puberdade traz distúrbios e…
Não, doutora, que humilhação. Ela já era grande demais para essas coisas o que sentia era mais belo e mesmo…
- Isto vai passar. Você não precisa trabalhar, nem fazer nada de extraordinário. Se quiser – ia usar o velho “truc” e sorriu -, se quiser arranje um namorado. Então…
Ela era igual a Amélia, a Lídia, a todo o mundo, a todo o mundo!
A doutora ainda falava, Tuda continuava muda, obstinadamente muda. Uma nuvem tapou o sol e o escritório de repente sombrio e úmido. Daí a um instante o floco de poeiras recomeçou a brilhar e a mover-se.
E conselheira impacientou-se ligeiramente. Estava cansada. Trabalhara tanto…
Tuda pensava confusamente: vim perguntar o que faço de mim. Mas não sabia resumir seu estado nessa pergunta. Além disso, receava cometer uma excentricidade e ainda não se habituara consigo mesma.
[...]

O Lustre (trecho)

quarta-feira, fevereiro 11, 2009

Mudava de roupa serena e cuida­dosa. Metia-se com profundo amor-próprio na cama. Concentrava-se um instante até descobrir um cricri longínquo, nítido e frágil, o grilo brilhando. Seu próprio espírito se apoderara dela. Suspirava. Oh Deus, era estranho como não sentia nenhuma pressa. No fundo ela era aterrorizantemente quieta. Pensava de leve na manhã seguinte. Na cidade, mesmo que o silêncio fosse o ar mais próximo, atrás dele sempre vivia algum ruído. Acordava-se, ouvia-se aquele contínuo e suave machucar de papel que era o silêncio... percebia-se uma flautinha e um pequeno tambor soltos quem sabe onde no ar, soando longínquos, límpidos e bem dispostos— e sabia-se que na praça de um quartel soldados faziam exercícios ao sol. Mas agora era de noite, ela mal terminara de dar os últimos e ocos passos pela calçada em sombra. Submergia no cansaço, buscava-o. Tinha algo de flor o seu cansaço, um perfume alado e inconquistável de melão fresco, aquele êxtase de exaustão e vôo... a fraqueza confundia-se com a exaltação mais fina. Antes de cerrar os olhos lembrava numa última visão da escada colocada à terra, branca escura, branca escura, branca escura, escorrendo imóvel entre as paredes até a porta fechada. Fechada, escura, compacta, séria, lisa, grande, alta, intransponível — como era bom, como era feliz.

O Lustre (trecho)

domingo, fevereiro 08, 2009

Passava as manhãs sentada junto à mesa olhando os dedos, as unhas lisas e rosadas. Será que todo o mundo sabe o que eu sei? ocorria-lhe profundamente. Procurava distrair-se desenhando as linhas retas sem au­xílio de régua — mas onde estava o encanto do trabalho? sem poder precisar melhor parecia-lhe que falhava a todo o instante. Às vezes falava alto algumas palavras e enquanto se ouvia parecia-lhe numa estranheza inquieta e deliciosa que ela não era ela mesma e surpreendia-se num susto que era também mentira. E depois noutra estranheza fraca e embria­gada, ela era ela mesma. Dizia numa pequena voz aborrecida, balançando a cabeça; pois não estou contente, não estou nada contente. Ou entrava a viver numa exaltação íntima, numa pureza ardente cujo início era uma imperceptível falsidade. Sabia ainda fechar os olhos e cerrar-se numa força bruta. Entreabria então as pálpebras com delicadeza como deixando essa força escoar-se lentamente — e enxergava as coisas sob uma certa luz de crepúsculo dourado, flutuando num fulgor trêmulo, clareadas e finas; o ar entre elas era tenso e frio, os ruídos se aguçavam em agulhas velozes. Cansada, de súbito abria os olhos inteiros, deixava a força em liberdade — num estrondo mudo as coisas secavam cinzentas, duras e calmas, o mundo afinal. Ou ela renascia como quem estremece, um impulso de surpresa. Vestia-se com tanto cuidado como se fosse encontrar uma multi­dão esperando à porta. Saía à rua, andava lentamente pelo passeio mos­trando-se, os olhos atentos, a sensação de que fulgurava ardente, séria. Era um duro inseto, um escaravelho, voava em linhas súbitas, batia de encontro às vidraças cantando com estridência. E realmente, apesar de sua aparência modesta e de suas faces pálidas, algumas pessoas olhavam-na com curiosidade, muitas vezes com mais de um momento de atenção. Ela se animava com secreta brutalidade; de repente era de tal modo a única verdade que as pessoas se preparavam, se enfeitavam, tomavam a atitude da roupa, saíam para a rua, entrecruzavam-se luminosas e se apagavam de novo em casa — ela compreendia com segurança e ardor a cidade. Orgulhava-se de não ser Esmeralda. Um instante ou outro era olhada como se fosse ter um grande destino. Subitamente a um olhar parecia-lhe: este homem, sabe alguma coisa sobre mim! mas que lhe im­portava afinal? para algo existir não precisava ser sabido — era essa a sensação, as sobrancelhas franzidas e então uma rápida calma seguia-se hesitante após aquilo que não chegara a ser um pensamento. Voltava para casa cansada como se deixasse a festa onde fora coroada. Passava dias lendo: lia como uma prostituta pintada, cheia de avidez e de um tédio que ardiam sua alma e ressecavam-na rapidamente. O que mais a inquietava então era poder dormir tão cedo. Desde o momento de acor­dar punha-se a pensar no instante de dormir. O modo das horas correrem parecia ter se transformado irremediavelmente e ela vivia entre elas em­purrada pelo dever que sugeriam. Ninguém a impedia de ir para a cama às sete horas da noite. Só não dispensava o jantar porque então poderia às cinco da tarde. Combinava-se toda com cálculo e cuidado e depois permanecia à espreita respirando. De tarde dirigira-se de bonde a uma rua bonita e calma e encontrara com horror a pior velha de Brejo Alto, há alguns meses na cidade com a irmã doente. O bonde corria e ela nada podia espiar. Mal a velha começou a falar, no entanto, em vez da irritação que esperava sentir qualquer coisa reduziu-a simplesmente a si mesma num rápido desfalecimento de desejos. Com humildade conversou com a velha, fácil sobre si, quase leviana, trocando mesmo impressões sobre coisas de morar e comprar, modos censuráveis de levar a vida. Inexplicável já então achegava-se à mulher como se esta fosse uma ami­guinha, mostrava-se subitamente feminina e ocupada sentindo sem des­prazer nas suas pernas descobertas o roçar daquela saia larga; procurava obscuramente com volúpia conseguir sua simpatia e piedade. A velha re­cuava o rosto magro, de algum modo ofendida e dominava porque mal conseguira abrir a boca e falar, ela que sempre se inclinara sobre os outros com os olhos apertados, asfixiando-os de notícias.

Janeiro - Como Nasceram as Estrelas

sexta-feira, fevereiro 06, 2009

Pois é, todo mundo pensa que sempre houve no mundo estrelas pisca-pisca. Mas é erro. Antes os índios olhavam de noite para o céu escuro — e bem escuro estava esse céu. Um negror. Vou contar a história singela do nascimento das estrelas. Era uma vez, no mês de janeiro, muitos índios. E ativos: caçavam, pescavam, guerreavam. Mas nas tabas não faziam coisa alguma: deitavam-se nas redes e dormiam roncando. E a comida? Só as mulheres cuidavam do preparo dela para terem todos o que comer.
Uma vez elas notaram que faltava milho no cesto para moer. Que fizeram as valentes mulheres? O seguinte: sem medo enfurnaram-se nas matas, sob um gostoso sol amarelo. As árvores rebrilhavam verdes e embaixo delas havia sombra e água fresca. Quando saíam de debaixo das copas encontravam o calor, bebiam no reino das águas dos riachos buliçosos. Mas sempre procurando milho porque a fome era daquelas que as faziam comer folhas de árvores. Mas só encontravam espigazinhas murchas e sem graça. — Vamos voltar e trazer conosco uns curumins.
(Assim chamavam os índios as crianças.) Curumim dá sorte.
E deu mesmo. Os garotos pareciam adivinhar as coisas: foram retinho em frente e numa clareira da floresta — eis um milharal viçoso crescendo alto. As índias maravilhadas disseram: toca a colher tanta espiga. Mas os gatinhos também colheram muitas e fugiram das mães voltando à taba e pedindo à avó que lhes fizesse um bolo de milho. A avó assim fez e os curumins se encheram de bolo que logo se acabou. Só então tiveram medo das mães que reclamariam por eles comerem tanto. Podiam esconder numa caverna a avó e o papagaio porque os dois contariam tudo. Mas — e se as mães dessem falta da avó e do papagaio tagarela? Aí então chamaram os colibris para que amarrassem um cipó no topo do céu. Quando as índias voltaram ficaram assustadas vendo os filhos subindo pelo ar. Resolveram, essas mães nervosas, subir atrás dos meninos e cortar o cipó embaixo deles.
Aconteceu uma coisa que só acontece quando a gente acredita: as mães caíram no chão, transformando-se em onças. Quanto aos curumins, como já não podiam voltar para a terra, ficaram no céu até hoje, transformados em gordas estrelas brilhantes.
Mas, quanto a mim, tenho a lhes dizer que as estrelas são mais do que curumins. Estrelas são os olhos de Deus vigiando para que corra tudo bem. Para sempre.
E, como se sabe, “sempre” não acaba nunca.

Saudade

quarta-feira, fevereiro 04, 2009

Saudade é um pouco como fome. Só passa quando se come a
presença. Mas às vezes a saudade é tão profunda que a presença é pouco:
quer-se absorver a outra pessoa toda. Essa vontade de um ser o outro para
uma unificação inteira é um dos sentimentos mais urgentes que se tem na
vida.

O Lustre (trecho)

segunda-feira, fevereiro 02, 2009

— Eu acho que no fundo todos os homens e mulheres vivem dizen­do: não quero pensar nisso. E pensando que não pensaram, hem? que acha? — terminara rindo muito com sagacidade, apertando os olhos. Ela também ria bastante balançando a cabeça várias vezes em assentimento, engolindo o café cheia de pasmo pela sua perspicácia. E não era verdade? ninguém podia suportar muito o que sentia. E agora a Bíblia...
— Pois sim, pode-se ler, dissera friamente. Ele olhou-a e compreen­deram-se com cuidado, evitando qualquer clareza.
— Mas beba o seu café antes que esfrie! gritou ela alto com intensida­de. Ele fitou-a hesitando um momento com esperança e de repente ale­grou-se, esfregou as mãos rápido:
— É verdade, é verdade!
Na noite seguinte bateu à porta, ela atendeu, viu-o com a pequena Bíblia na mão; de raiva e pudor ela recolheu-se, o corpo rígido, o rosto indiferente. Ele não a olhava. Entrou até o meio da sala, parou indeciso; ela permanecia em pé junto da porta como esperando que ele fosse embo­ra. Fazendo um esforço sobre si mesma disse depois de alguns instantes:
— Quer o café antes ou depois? Ele respondeu apressado:
— A senhora é quem manda...
Ela fez café, tomaram falando de algumas coisas sem importância entre longos momentos de silêncio cheio de suspeita e prudência. Afinal terminaram, ele disse com simplicidade:
— Eu leio ou a senhora?
— O senhor.
— Que pedaço?
— Qualquer serve.
— Não tem preferência?
— Eu conheço pouco.
— Está bem.

O Lustre (trecho)

segunda-feira, fevereiro 02, 2009

Esses eram momentos em que ela sofria mas amava seu sofrimento. Atravessava o dia, a necessidade de cumprir os pequenos deveres, a arrumação dos quartos, a espera, a realidade e as ruas — entre séria e ansiosa, perscrutando-se e ao espaço como se já estivesse misteriosamente ligada a Vicente através da distância. Porque mal acordada sabia que hoje era dia de vê-lo. Talvez não fosse tão subitamente — ela se proporcionava a pequena surpresa para dar-se felicidade mesmo à custa de conservar fechada a consciência e lá encerrada a obscura e estimulante mentira. As primeiras horas queimavam-se difíceis e lentas mas perto das dez da manhã limpa o tempo se precipitava alegre e fugitivo, claro com o dia e num sorriso ela se assistia movendo-se dagora em diante fácil e mansa. Quase não almoçava, era difícil cozinhar só para si e mesmo hoje ela jantaria bem com Vicente — comia uma fruta para contentar a mãe distante. E assim preparava-se para viver-diariamente, disposta a transformar-se no que não era para ficar bem com coisas ao redor. Se Vicente amanhecera informe e áspero ela se conservaria em espera, as mãos delicadas, não se manifestando em nenhum sentido para que ele pudesse mudar sozinho, livre de sua existência. Se ele se mantinha calado e nervoso ela buscava ser larga e apesar de não consegui-lo inteiramente — nem seus olhos um pouco absortos nem seu corpo de gestos pequenos ajudavam essa atitude — Vicente notava seu esforço em apaziguá-lo; e isso tantas vezes bastara para ele sorrir e melhorar com benevolência.

O Lustre (trecho)

terça-feira, janeiro 27, 2009

A represa gemia sem interrupção, vibrava no ar e trepidava dentro do seu corpo, deixando-a de algum modo trêmula e quente. Sentou-se sobre uma das pedras ainda sensível de sol. Por um instante, num leve turbilhão silencioso, toda a sua vida ela a passara sentando-se sobre pe­dras; outra realidade é que ela atravessara toda a sua vida olhando antes de dormir o escuro e remexendo-se à procura de um conforto enquanto alguma coisa fina e acordada espreitava: amanhã. Sim, quantas coisas ela via — suspirou devagar olhando em torno com tristeza. Pensara achar na cidade outras espécies... Continuava no entanto a sentar-se sobre pedras, a notar um olhar numa pessoa, a encontrar um cego, a só ouvir certas palavras... via o que enxergara pela primeira vez e que parecia ter completado a capacidade de seus olhos. Um longo bem-estar vazio tomou-a, ela cruzou os dedos com delicadeza e afetação, pôs-se a olhar. Mas o céu esvoaçava tão esgarçado, roçagante, tão sem superfície... O que sentia era sem profundidade... mas o que sentia... sobretudo des­maiando sem forças... sim, desfalecendo no céu... como ela... Círculos rápidos e grossos alargavam-se de seu coração — o som de um sino não ouvido mas pesadamente sentido no corpo em ondas — os círculos bran­cos embargavam-lhe a garganta numa grande e dura bolha de ar — não havia um sorriso sequer, seu coração murchava, murchava, afastava-se pela distância hesitando intangível, já perdido num corpo vazio e limpo cujos contornos se alargavam, afastavam-se, afastavam-se e só existia o ar, assim só existia o ar, o ar sem saber que existia e em silêncio, em silêncio alto como o ar. Quando abriu os olhos as coisas emergiam lentas de águas escuras e rebrilhavam umidamente sonoras à tona de sua cons­ciência ainda vacilante do desmaio. A água da represa rumorejava bem no seu interior, tão distante que já ultrapassara seu corpo infinitamente para trás. A sagacidade do ar frio acordava a carne do rosto picando-a de frescura. Meu Deus, como sou alegre, pensou num fraco e luminoso impulso. Despertando tão moça do desmaio, sorria esgotada, sentia-se como pequena demais para ficar sem pensamentos protetores nem expe­riência no topo de um morro ouvindo o outro morro como outro mundo viver minuciosamente em domingo. Sentia em silêncio que depois de um desmaio estava no maior da vida porque não havia amor nem esperança que ultrapassasse aquela séria sensação de vôo nascente. Mas por que esse instante não a apaziguava com a satisfação do fim atingido... por quê? prolongava-a para o alto, esticava-a quase desesperada com a tensão de um arco pleno de seu próprio movimento... como se vivendo tão no cimo ela sentisse mais do que a potência do seu corpo grande e obscuro e se aniquilasse na própria percepção. Seu coração ainda batia com cansa­ço e ela pensava: desmaiei, foi isso, desmaiei... Olhava a luz acesa e ver­melha vacilando na mataria em penumbra. O que significa sua luz? insis­tiam seus olhos abrindo clareiras na confusão doce de seu cansaço. Ela não poderia compreender, poderia concordar, só isso, e apenas, com a cabeça, assentindo assustada. Concordava com a tarde, concordava com aquela frágil força que a sustentava de encontro ao ar, concordava com o seu medo alegre — o medo de enfrentar o jantar de quase estranhos, o amor de Vicente, suas próprias sensações diariamente falsas? aquele erro atento — concordava com o morro vivo dizendo alto, alto dentro de si: ah sim, sim! ardentemente una e quieta. Não porém no plano da realidade inegável, só numa certa verdade onde podia dizer tudo sem jamais errar, lá onde não havia erro sequer e onde tudo vivia inefavelmen­te por força da mesma permissão, lá onde ela mesma vivia esplendorosa-mente apagada, vaga e coisa, puramente coisa como o piscar úmido de uma cadela deitada contra o ar e arfando, concordando profundamente sem saber como uma cadela. Sentiu-se quase perto de um novo desmaio, junto de desejo de ceder — e mesmo no presente seco ela pertencia ao anterior de sua vida que se perdia numa distância calma.
Depois do desmaio tudo era como fácil. Equilibrou-se. Há anos não desmaiava. A noite agora quase caía e abaixando as pálpebras ela podia sentir os raios amortecidos de luz como música translúcida sombria resva­lando da montanha em macia torrente largada à força do próprio destino. Apertava com uma das mãos o áspero cabo do guarda-chuva. Seria im­possível chover agora, sentia olhando distraída o céu frio de espelho. Pare­cia-lhe confusamente que também lhe seria impossível libertar-se de seu modo e seguir por outro caminho — sorria ela um pouco séria e flutuava numa sensação assustada mas de si mesma tranqüila — tão potentes e aprisionadas ela e a natureza pareciam se achar dentro do tênue equilíbrio de suas vidas. Mas havia uma liberdade — como um desejo, como um desejo — acima da possibilidade de escolher, nela e na natureza, e daí vinha a serenidade esquisita e cansada da quase noite sem chuva nas montanhas, a vaguidão mais uma vez renovada dentro de seu corpo.

O Lustre (trecho)

terça-feira, janeiro 27, 2009

Parecia-lhe ter mergulhado na vileza com a Sociedade das Sombras.
Olhava-se ao espelho, o rosto branco e delicado perdido em penum­bra, os olhos abertos, os lábios sem expressão. Ela se agradava, gostava daquele seu jeito, fino, tão sinuoso, dos cabelos sombreados, de seus om­bros pequenos e magrinhos. Como sou linda, disse. Quem me compra? quem me compra? — fazia um ligeiro muxoxo ao espelho — quem me compra: ágil, engraçada, tão engraçada como se fosse loura mas não sou loura: tenho lindos, frios, extraordinários cabelos castanhos. Mas eu quero que me comprem tanto que... que... que me mato! exclamou e espiando seu rosto espantado com a frase, orgulhosa de seu próprio ardor, riu uma gargalhada falsa, baixa e brilhante. Sim, sim, precisava de uma vida secre­ta para poder existir. De um instante para outro estava de novo séria, cansada — seu coração pulsava na sombra, lento e vermelho. Um novo elemento até agora estranho penetrara em seu corpo desde que existia a Sociedade das Sombras. Agora ela sabia que era boa mas que sua bon­dade não impedia sua maldade. Esta sensação era quase velha, fora des­coberta há dias. E um novo desejo tocava-lhe o coração: o de livrar-se ainda mais. Sair dos limites de sua vida — era uma frase sem palavras que rodava em seu corpo como uma força apenas. Sair dos limites de minha vida, não sabia ela que dizia olhando-se ao espelho do quarto de hóspedes. Eu poderia matá-los a todos, pensava com um sorriso e uma nova liberdade, fitando infantilmente sua imagem. Esperava um instante atenta. Mas não: nada se criara nela mesma com a sensação provocada, nem a alegria nem o pavor. E donde lhe nascera a idéia? — desde a manhã passada no porão as perguntas surgiam fáceis; e a cada momento ela progredia em que direção? ia adiante aprendendo coisas das quais em toda a sua vida não sentira sequer o começo. Donde nascera a idéia? de seu corpo; e se seu corpo era o seu destino... Ou ela aspirava os pensa­mentos do ar e devolvia-os como próprios, obrigando-se a segui-los?... Lá estava ela no espelho! gritou-se bruta e feliz. Mas o que podia e o que não podia? Não, não queria aguardar uma condição para matar, se havia de matar desejava-o livremente sem ocasião... isso seria sair dos limites de sua vida, não sabia ela que pensava. Numa súbita exaustão onde havia certa volúpia e bem-estar, deitou-se no leito dos hóspedes. E como uma porta que se fecha depressa sem estrépito, rapidamente ador­meceu. E rapidamente sonhou. Sonhou que sua força dizia alto e para o longe do mundo: quero sair dos limites de minha vida, sem palavras, só a força escura dirigindo-se. Um impulso cruel e vivo empurrava-a para a frente e ela desejaria morrer para sempre se morrer lhe desse um só instante de prazer, tal a gravidade a que chegara o seu corpo. Ela entrega­ria o próprio coração para ser mordido, ela queria sair dos limites de sua própria vida como suprema crueldade. Então caminhou para fora de casa e andou buscando, buscando com tudo de mais feroz que possuía; procu­rava uma inspiração, as narinas sensíveis como as de um animal fino e assustado, mas tudo ao seu redor era doçura e a doçura ela já conhecia, e já agora doçura era a ausência de medo e de perigo. Ela faria alguma coisa tão fora de seus limites que jamais a compreenderia — mas não tinha forças, ah não podia sair do que podia. Era preciso fechar um instan­te os olhos e rezar para si mesma brutalmente com desprezo até que um suspiro profundo, despindo-se da última dor, enfim esquecendo, caminhasse para o sacrifício do destino. Porque se eu sou livre, se com um gesto posso renovar tudo — caminhava ela no campo sob um céu esbranquiçado — então nada me impede de realizar esse gesto; essa era a sensa­ção turva e inquieta. Enquanto andava via um cão e num esforço arque-jante como o de sair de águas fechadas, como sair do que podia, resolvia matá-lo enquanto andava. Ele movia a cauda indefeso — pensou em matá-lo e a idéia era fria mas ela teve medo de estar enganando a si própria dizendo-se que a idéia era fria para fugir-lhe. Então guiou o cão com acenos até a ponte sobre o rio e com o pé empurrou-o seguramente até a morte nas águas, ouviu-o ganindo, viu-o debatendo-se, arrastado pela correnteza e viu-o morrer — nada restava, nem um chapéu. Seguiu serenamente. Serenamente continuava a buscar. Viu um homem, um ho­mem, um homem. Suas largas calças colavam-se ao vento, as pernas, as pernas magras. Era mulato o homem, o homem.

O Lustre (trecho)

terça-feira, janeiro 27, 2009

Ela estacara. Um grande silêncio seguira-se. Olhara-o e descobrira na sua trêmula vitória a mesma perturbação. Ele lhe trouxera timidamente um grito. Fitaram-se um instante e tudo era indeciso, frágil, tão novo e nascente. E tudo era tão perigoso e revolvido que ambos desviaram quase bruscamente os olhos. Mas havia alguma coisa encantada entre eles nesse momento. Embora ela jamais se ocupasse verdadeiramente de Deus e raramente rezasse. Diante da idéia dele permanecia surpreendentemente calma e inocente, sem um pensamento sequer. Daniel afastava-se. Naque­le tempo ele começara a pensar e a dizer coisas difíceis com gosto e amor. Ela ouvia inquieta. Ele passeava de ida e de volta pelos corredores penumbrosos do casarão com os braços cruzados, abstraído. Virgínia perscruta­va-lhe inutilmente o rosto de boca cerrada, os olhos escuros indecisos, aquela quase feiúra que se agravava com a idade, o sofrimento e o orgu­lho.

Uma Revolta

domingo, janeiro 25, 2009

Quando o amor é grande demais torna-se inútil: já não é mais aplicável, e nem a pessoa amada tem a capacidade de receber tanto. Fico perplexa como uma criança ao notar que mesmo no amor tem-se que ter bom senso e senso de medida. Ah, a vida dos sentimentos é extremamente burguesa.

Sobre a Escrita...

domingo, janeiro 25, 2009

Meu Deus do céu, não tenho nada a dizer. O som de minha máquina é macio.
Que é que eu posso escrever? Como recomeçar a anotar frases? A palavra é o meu meio de comunicação. Eu só poderia amá-la. Eu jogo com elas como se lançam dados: acaso e fatalidade. A palavra é tão forte que atravessa a barreira do som. Cada palavra é uma idéia. Cada palavra materializa o espírito. Quanto mais palavras eu conheço, mais sou capaz de pensar o meu sentimento.
Devemos modelar nossas palavras até se tornarem o mais fino invólucro dos nossos pensamentos. Sempre achei que o traço de um escultor é identificável por um extrema simplicidade de linhas. Todas as palavras que digo - é por esconderem outras palavras.
Qual é mesmo a palavra secreta? Não sei é porque a ouso? Não sei porque não ouso dizê-la? Sinto que existe uma palavra, talvez unicamente uma, que não pode e não deve ser pronunciada. Parece-me que todo o resto não é proibido. Mas acontece que eu quero é exatamente me unir a essa palavra proibida. Ou será? Se eu encontrar essa palavra, só a direi em boca fechada, para mim mesma, senão corro o risco de virar alma perdida por toda a eternidade. Os que inventaram o Velho Testamento sabiam que existia uma fruta proibida. As palavras é que me impedem de dizer a verdade.
Simplesmente não há palavras.
O que não sei dizer é mais importante do que o que eu digo. Acho que o som da música é imprescindível para o ser humano e que o uso da palavra falada e escrita são como a música, duas coisas das mais altas que nos elevam do reino dos macacos, do reino animal, e mineral e vegetal também. Sim, mas é a sorte às vezes.
Sempre quis atingir através da palavra alguma coisa que fosse ao mesmo tempo sem moeda e que fosse e transmitisse tranqüilidade ou simplesmente a verdade mais profunda existente no ser humano e nas coisas. Cada vez mais eu escrevo com menos palavras. Meu livro melhor acontecerá quando eu de todo não escrever. Eu tenho uma falta de assunto essencial. Todo homem tem sina obscura de pensamento que pode ser o de um crepúsculo e pode ser uma aurora.
Simplesmente as palavras do homem.

Fãs

terça-feira, janeiro 13, 2009

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Blog Clarice Lispector!

O Lustre (trecho)

terça-feira, janeiro 13, 2009

Sentada à sombra de uma árvore, em breve era rodeada de instantes vazios porque há vários momentos nada sucedia e os segundos futuros nada trariam — pressentia ela. Aquietava-se — não conseguia disfarçar-se o largo bem-estar inexplicável que a aprofundava no próprio corpo pensa­tivo, o ente inclinado para uma sensação delicada e difícil — mas dissimu­lava-se por algum motivo procurando ver as pedras do chão, as sobrance­lhas franzidas, mentirosas, toda ela sonsa e estúpida. Alguma coisa curiosa e fria ocorria-lhe, alguma coisa um pouco sorrindo com desprezo mas atenta de ir até o fim, fazendo-a quase pensar num impulso irônico e fútil: se és como dizes uma criatura viva, move-te... e ela quase desejaria erguer-se e colher uma erva clara um pouco tenra. Dentro de seu rosto as noções sussurravam liquefazendo-se em decomposição — ela era uma menina descansando. Olhava, olhava. Fechava os olhos atentando a todos os pontos indevassáveis de seu estreito corpo, pensando-se toda sem pala­vras, recopiando o próprio existir. Olhava, olhava. Aos poucos, do silêncio, seu ser começava a viver mais, um instrumento abandonado que de si mesmo começasse a fazer som, os olhos enxergando porque a primeira matéria dos olhos era olhar. Nada a inspirava, ela estava isolada dentro de sua capacidade, existindo pela mesma fraca energia que a fizera nascer. Pensava simples e claro. Pensava música pequena e límpida que se alon­gava num só fio e enrolava-se clara, fluorescente e úmida, água em água, meditando um arpejo tolo. Pensava sensações intraduzíveis distraindo-se secretamente como se cantarolasse, profundamente inconsciente e obsti­nada, ela pensava um só traço fugaz: para nascer as coisas precisam ter vida, pois nascer é um movimento — se disserem que o movimento é necessário apenas à coisa que faz nascer e não à nascida não é certo porque a coisa que faz nascer não pode fazer nascer algo fora de sua natureza e assim sempre dá nascimento e uma coisa de sua própria espécie e assim com movimentos também — desse modo nasceram as pedras que não têm força própria mas já foram vivas senão não teriam nascido e agora elas estão mortas porque não têm movimento para fazer nascer uma outra pedra. Nenhum pensamento era extraordinário, as palavras é que o seriam. Ela pensava sem inteligência a própria realidade como se enxergasse e nunca poderia usar o que sentia, sua meditação era um modo de viver. Chegava-lhe informe de si mesma porém ao mesmo tem­po nela tilintava alguma qualidade precisa e delicada como números finos penetrando em números finos e de súbito um novo número leve soando polido e seco — enquanto a verdadeira sensação do corpo todo era expectante. E afinal algo sucedia tão distante, ah tão distante e talvez reduzido a um sim que ela se cansava aniquilada, pensando agora em palavras: estou muito, muito cansada, sabe. Vai, vai, murmurava com certa ânsia algo profundamente saciado e já sabido no seu corpo. Mas para onde? O vento, o vento soprava. Apenas quieta e à escuta, como voltada para o norte ou para leste ela parecia dirigir-se a alguma coisa verdadeira atra­vés do grande formar-se incessante de mínimos acontecimentos mortos, guiando a delicadeza do ser para um sentimento quase exterior como se tocando a terra com o pé descalço e atento sentisse água inacessível rolan­do. Ultrapassava longas distâncias apenas dando-se uma direção imóvel, sincera. Mas não conseguia ser inteiramente aspirada, como por sua pró­pria culpa. Ajudava-se sentindo uma vaga noção de viagem, do dia de partir para a cidade com Daniel, um pouco de fome e cansaço, mal tocava no almoço. Às vezes quase aproximava de um pensamento porém jamais o alcançava embora tudo ao redor lhe soprasse o seu começo; olhava com estranheza o espaço sem mistério, a brisa levantava na sua pele arre­pios de compreensão; um instante ainda penetrava no silêncio buscando no fundo dele um fio por onde se prender. E se um pássaro voava ou o grito de uma ave esguichava da mata próxima, ela era envolta por um turbilhão frio, o vento rodando folhas secas e poeira, vagos inícios inaca­bados, num redemoinho dela e do que já não era ela. Chegara o instante de deixar subir até os últimos nervos a onda que se formava aquém de sua fraqueza e que poderia morrer do próprio impulso. De partícula a partícula, porém, o pensamento indistinto veio descendo violentamente mudo até abrir-se no centro do corpo, os lábios, completo, perfeito, in­compreensível de tão livre de sua própria formação — preciso comer. Tomou-a então a suavidade apenas, mal pousando em seu ser ela poderia caminhar para diante sem ser empurrada, sem ser chamada, andando simplesmente porque mover-se era a qualidade de seu corpo. Era essa a impressão e o estômago aprofundava-se alegre, faminto. Mas continuou sentada. Parecia não saber erguer-se e na verdade dirigir-se, faltava-lhe angustiosamente um sentido. Alongava-se para a distância como se aos poucos pudesse perder a forma — pretendia ouvir as vozes e os ruídos do casarão e inclinava-se para distinguir. Encostava-se de novo à árvore, esfregava um dos pés empoeirados, ultrapassava a compreensão e por uma espécie de esforço irreprimível atingia a incompreensão como uma descoberta. Já inquieta, imóvel, a realidade parecia perturbá-la. Pensava com a voz frouxa da mãe: estou nervosa. Numa apreensão sem doçura, vibrava aridamente na imobilidade caprichosa e histérica. Até que se rom­pia a corda mais tensa, como que uma presença abandonava seu corpo e ela restava aquém de seu próprio existir comum. Empurrada, extraordi­nariamente indiferente e já sem muita fome, esquecia tudo para sempre como quem é esquecida.
Mas o que ela amava acima de tudo era fazer bonecos de barro, o que ninguém lhe ensinara. Trabalhava numa pequena calçada de cimen­to em sombra, junto à última janela do porão. Quando queria com muita força ia pela estrada até o rio. Numa de suas margens, escalável embora escorregadia, achava-se o melhor barro que alguém poderia desejar: bran­co, maleável, pastoso, frio. Só em pegá-lo, em sentir sua delicadeza alegrezinha e cega, aqueles pedaços timidamente vivos, o coração da pessoa se enternecia úmido, quase ridículo. Virgínia cavava com os dedos aquela terra pálida e lavada — na lata presa à cintura iam-se reunindo os trechos amorfos. O rio em pequenos gestos molhava-lhe os pés descalços e ela mexia os dedos miúdos com excitação e clareza. Com as mãos livres, então, cuidadosamente galgava a margem até a extensão plana. No pe­queno pátio de cimento depunha sua riqueza. Misturava o barro à água, as pálpebras frementes de atenção — concentrada, o corpo à escuta, ela podia obter uma proporção exata e nervosa de barro e de água numa sabedoria que nascia naquele mesmo instante, fresca e progressivamente criada. Conseguia uma matéria clara e tenra de onde se poderia modelar um mundo. Como, como explicar o milagre... Amedrontava-se pensativa. Nada dizia, não se movia mas interiormente sem nenhuma palavra repetia: eu não sou nada, não tenho orgulho, tudo pode me acontecer, se... quiser me impedirá de fazer a massa de barro... se quiser pode me pisar, me estragar tudo, eu sei que não sou nada... era menos que uma visão, era uma sensação no corpo, um pensamento assustado sobre o que lhe permi­tia conseguir tanto no barro e na água e diante de quem ela devia humi­lhar-se com seriedade. Agradecia-lhe com uma alegria difícil, frágil e tensa, sentia em... alguma coisa como o que não se vê de olhos fechados — mas o que não se vê de olhos fechados tem uma existência e uma força, como o escuro, como o escuro, como a ausência, compreendia-se ela assentindo, feroz e muda com a cabeça. Mas nada sabia de si própria, passaria inocente e distraída pela sua realidade sem reconhecê-la, como uma criança, como uma pessoa.

O Lustre (trecho)

terça-feira, janeiro 13, 2009

Mas às vezes era tão rápida a sua vida. Luzes caminham em direção, Virgínia espia o céu, as cores brilham sob o mar. Virgínia caminha sem direção, a claridade é o ar, Virgínia respira claridade, folhas tremem sem saber, Virgínia não pensa, as luzes caminham sem direção, Virgínia espia o céu... As vezes era tão rápida a sua vida. Sua pequena cabeça de menina tonteava, ela fitava o campo à sua frente, espiava Granja Quieta já perdida na distância e olhava sem procurar entender. Em Brejo Alto não havia mar, porém uma pessoa podia olhar rapidamente para a extensa campina, fechar logo os olhos, apertar o próprio coração e como um filho, como um filho nascendo, sentir o cheiro docemente podre do mar. E mesmo que nesse instante o dia fosse duro e novo, as plantas secas de poeira, nuvens vermelhas e quentes de verão, os girassóis ásperos sacudindo-se no final do grosso talo contra o espaço, mesmo que não houvesse a feliz umidade das terras próximas às águas... uma vez um pássaro desabrochou da campina para o ar em vôo súbito, fez o coração bater depressa num susto pálido. E isso era livre e leve como se alguém andasse ao longo da praia. Ela nunca estivera perto do mar mas sabia como era o mar, nem forçava sua vida a exprimi-lo em pensamento, ela sabia, isso bastava. Quando menos se esperava chegava a noite, a coruja piava, Daniel podia de um instante para outro chamá-la a passear, alguém podia aparecer à porta dando algum recado, ela e Daniel corriam para saber o quê, a criada podia adoecer, ela mesma de repente acordar uma vez mais tarde — ela era tão finalmente simples naquele tempo. Não havia o inesperado e o milagre era o movimento revelado das coisas; que brotasse uma rosa em seu corpo, Virgínia a colheria com cuidado e com ela enfeitaria os cabelos sem sorrir. Havia certa alegria admirada e tênue sem notas cômi­cas — aonde? ah, uma cor, as plantas frias que pareciam destilar sons pequenos, vagos e claros no ar, diminutos sopros tremulamente vivos. Sua vida era minuciosa mas ao mesmo tempo ela vivia apenas um só traço esboçado sem força e sem fim, raso e estarrecido como o vestígio de outra vida; e o mais que poderia fazer era seguir cautelosamente os seus vislumbres. Será que todo o mundo sabe o que eu sei? indagava-se com o ar obstinado e sem inteligência que era um sinal comum da família, a cabeça inclinada. Parava um instante à borda do campo e imobilizava-se à espera atentando para suas próprias possibilidades. Um longo minuto se desenrolava, da mesma cor e no mesmo plano com um ponto saindo fora de si em linha reta e vagarosa. Enquanto ele durava tudo o que existia fora dela era visto apenas pelos seus olhos numa constatação límpi­da e curiosa. Mas de um momento para outro, sem nenhum aviso, ela estremecia delicadamente recolhendo de uma só vez os movimentos contidos nas coisas ao seu redor. Instantaneamente transmitia seus próprios movimentos para o exterior em mistura com a carga recebida; em breve no ar do campo havia mais um elemento que ela criava emitindo com os pequenos sorrisos mudos sua própria força. Avançava e penetrava livre­mente pelo capinzal molhado, as pernas estreitas umedeciam-se.

O Lustre (trecho)

terça-feira, janeiro 13, 2009

Mas ela passaria os dias como uma visita na própria casa, não daria ordens, de nada cuidaria. Seu vestido florido e gasto vestia-a molemente, deixava entrever os longos seios gordos e aborrecidos. Ela já fora viva, com pequenas resoluções a cada minuto — brilhava seu olho fatigado e colérico. Assim vivera, casara e fizera Esmeralda nascer. E depois sobre-viera uma perda lenta, ela não abrangia com o olhar sua própria vida, embora seu corpo ainda continuasse a viver separado dos outros corpos. Preguiçosa, cansada e vaga, Daniel nascera e depois Virgínia, formados na parte inferior de seu corpo, incontroláveis — um pouco magros, cabelu­dos, os olhos até bonitos. Apegava-se a Esmeralda como ao resto de sua última existência, daquele tempo em que respirava para a frente dizendo: vou ter uma filha, meu marido vai comprar um grupo estofado, hoje é segunda-feira... Do tempo de solteira guardaria com amor uma camisola fina pelo uso como se a época sem homem e sem filhos fosse gloriosa. Assim defendia-se do marido, de Virgínia e de Daniel — os olhos piscan­do. O marido aos poucos impusera certa espécie de silêncio com seu corpo astuto e quieto. E aos poucos, depois do auge da proibição de compras e gastos, ela soubera numa alegria remoída, num dos maiores motivos de sua vida, que não vivia no seu próprio lar, mas no do marido, noda velha sogra. Sim, sim; antes ligava-se por meio de alegres fios ao que sucedia e agora os fios engrossavam pegajosos ou rompiam-se e ela se chocava bruscamente com as coisas. Tudo era tão irremediável, e ela vivia tão segregada, mas tão segregada, Maria — dirigia-se em pensamento a uma amiguinha da escola, perdida de vista. Simplesmente continuava, Maria. Olhava para Daniel e Virgínia, calmamente surpresa e altiva; eles haviam nascido. Até o parto fora fácil, ela não podia recordar mesmo a dor, sua parte inferior era bem sadia, pensava confusamente lançando um rápido olhar a si própria; não se ligavam ao seu passado. Dizia fraca­mente: come, Virgínia... — e estacava Virgínia... Nem fora ela quem esco­lhera o nome, Maria. Gostava dos apelidos brilhantes e irônicos como quem se abana com um leque recusando: Esmeralda, dois abanos rápi­dos... E a menina, como um galho, crescia sem ela ter decorado suas feições anteriores, sempre nova, estranha e séria, cocando a cabeça suja, tendo sono, pouco apetite, desenhando tolices em folhas de papel. Sim, a mãe não comia muito mas seu modo abandonado de estar à mesa dava a impressão de que chafurdava na comida. Quase nada fazia mas de algum modo parecia sentir-se tão enrolada na sua própria vida que mal poderia desvencilhar um braço e acenar sequer. Vendo-a largada so­bre a mesa; seu pai mastigando de olhos fixos; Esmeralda aguda, rígida e ávida dizendo: por onde passear?! por esses pântanos?!; Daniel escure­cer-se orgulhoso e quase estupidificado de tanto poder contido; e, ao fe­char os olhos, vendo em si mesma uma pequena sensação cerrada, ale­gríssima, firme misteriosa e indefinida, Virgínia jamais saberia que se inda­gava se uma qualidade numa pessoa excluía a possibilidade de outras, se o que havia dentro do corpo era bastante vivo e estranho a ponto de ser também o seu contrário. Quanto a si própria ela não sabia sequer adivinhar o que podia e o que não podia, o que conseguiria apenas com um bater de pálpebras e o que jamais obteria, mesmo cedendo a vida. Mas a si própria concedia o privilégio de não exigir gestos e palavras para se manifestar. Sentia que embora sem um pensamento, um desejo ou uma lembrança, ela era imponderavelmente aquilo que ela era e que con­sistia Deus sabe em quê.

Sobre Nós

sábado, janeiro 10, 2009

O Blog Clarice Lispector surgiu na quarta-feira, 3 de outubro de 2007, com a proposta de levar a obra de Clarice ao máximo de pessoas possíveis.

Nesse pouco tempo o blog foi citado numa reportagem do Jornal Folha Online e na Rádio CBN.

O blog atingiu 300.000 visitas e o que faz com que ele exista é saber que de alguma forma, ele contribui com os fãs da Clarice.

Obrigado!