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Mostrando postagens de junho, 2008

Você é um Número

Se você não tomar cuidado vira um número até para si mesmo. Porque a partir do instante em que você nasce classificam-no com um número. Sua identidade no Félix Pacheco é um número. O registro civil é um número. Seu título de eleitor é um número. Profissionalmente falando você também é. Para ser motorista, tem carteira com número, e chapa de carro. No Imposto de Renda, o contribuinte é identificado com um número. Seu prédio, seu telefone, seu número de apartamento - Tudo é número. Se é dos que abrem crediário, para eles você também é um número. Se tem propriedades, também. Se é sócio de um clube tem um número. Se é imortal da Academia Brasileira de Letras tem número da cadeira. É por isso que vou tomar aulas particulares de Matemática. Preciso saber das coisas. Ou aulas e Física. Não estou brincando: vou mesmo tomar aulas de Matemática, preciso saber alguma coisa sobre cálculo integral. Se você é comerciante, seu alvará de Localização o classifica também. Se é contribuinte de qualq...

No Jardim (trecho)

Pouco depois, enquanto mudava de roupa, o rosto de Lucrécia estava transviado pelos primeiros espantos do sono. Mal-assombrada como se já tivesse adormecido, in­terrompeu-se com o vestido na mão — chamada, fraca: mais um instante e começaria a sonhar. No banheiro nem sabia mais o que viera buscar. De novo arrastou-se para o quarto e parou à porta. Pela varanda soprava o vento da chuva. As coisas estavam exorcizadas, divididas, extremamente pálidas... a cortina voava quase levada e o quarto hesitava como se alguém acabasse de desaparecer pela janela. Havia um momento na imobilidade dos objetos que assombrava numa visão... Na sonolência, Lucrécia Neves se eriçou diante das coisas físicas. A luz estava apagada. O apo­sento porém se aclarava pela exalação mortiça de cada objeto e a própria cara da moça tornou-se tocante. Fitar as coisas imóveis por um momento a solevou num suspi­ro de sono, a própria imobilidade a transportou em desvairamento: bocejando cuidadosa, errante entre os obje­tos...

A Pequena Família (trecho)

Antes de começar a escrever, Otávio ordenava os papéis sobre a mesa minuciosamente, ajeitava a roupa em si mesmo. Gostava dos pequenos gestos e dos velhos hábitos, como vestes gastas, onde se mo­via com seriedade e segurança. Desde estudante assim se preparava para um trabalho. Depois de instalar-se junto à mesa, arrumava-a e, a consciên­cia avivada pela noção das coisas ao redor — não me perder em grandes idéias, sou também uma coisa —, deixava a pena correr um pouco livremente para libertar-se de alguma imagem ou reflexão obsedante que porventura quisesse acompanhá-lo e im­pedir a marcha do pensamento principal. Por isso trabalhar diante dos outros era um suplício. Receava o ridículo dos pequenos rituais e sem eles não podia passar, apoiavam tanto como uma superstição. Do mesmo modo como para viver cercava-se de permitidos e tabus, das fórmulas e das concessões. Tudo tornava-se mais fácil, como ensi­nado . O que fascinava e amedrontava em Joana era exatamente a liberdade em que ela v...

A Estátua Pública (trecho)

Eram três os degraus para a sala de jantar e a di­ferença de nível dispunha o aposento em profundeza. A má eletricidade do subúrbio, então distribuída apenas por algumas casas, construía à noite um compartimento cheio de estruturas e núcleos onde o tique-taque do pên­dulo tombava preciso — círculos concêntricos se apa­gando nas sombras dos móveis. Abafadores de bule amarelecendo, o passarinho empalhado, a caixa de ma­deira com vista dos Alpes na tampa, eram a presença minuciosa de Ana. A casa parecia ornamentada com os despojos de uma cidade maior. — Você está cansada? perguntou Ana da cabeceira da mesa, franzindo os olhos como se a filha estivesse longe e a luz entre ambas fosse forte. Lucrécia não gostava deste aposento tão impregnado da viuvez feliz de Ana. Para entendê-lo seria preciso continuidade de presença, parecia pensar a moça pro­curando olhar cada objeto: eles nada revelavam e guar­davam-se apenas para o modo de olhar da mãe. Que os deslocava e os espanava — afastando-se em...

A Paixão Segundo G.H. (trecho)

[...] Senti que meu rosto em pudor sorria. Ou talvez não sorrisse, não sei. Eu confiava. Em mim? no mundo? no Deus? na barata? Não sei. Talvez confiar não seja em quê ou em quem. Talvez eu agora soubesse que eu mesma jamais estaria à altura da vida, mas que minha vida estava à altura da vida. Eu não alcançaria jamais a minha raiz, mas minha raiz existia. Timidamente eu me deixava transpassar por uma doçura que me encabulava sem me constranger. Oh Deus, eu me sentia batizada pelo mundo. Eu botara na boca a matéria de uma barata, e enfim realizara o ato ínfimo. Não o ato máximo, como antes eu pensara, não o heroísmo e a santidade. Mas enfim o ato ínfimo que sempre me havia faltado. Eu sempre fora incapaz do ato ínfimo. E com o ato ínfimo, eu me havia deseroizado. Eu, que havia vivido do meio do caminho, dera enfim o primeiro passo de seu começo. Enfim, enfim quebrara-se realmente o meu invólucro, e sem limite eu era. Por não ser, eu era. Até o fim daquilo que eu não era, eu era. O que nã...

A Paixão Segundo G.H. (trecho)

Entendi então que, de qualquer modo, viver é uma grande bondade para com os outros. Basta viver, e por si mesmo isto resulta na grande bondade. Quem vive totalmente está vivendo para os outros, quem vive a própria largueza está fazendo uma dádiva, mesmo que sua vida se passe dentro da incomunicabilidade de uma cela. Viver é dádiva tão grande que milhares de pessoas se beneficiam com cada vida vivida. [...] E é inútil procurar encurtar caminho e querer começar já sabendo que a voz diz pouco, já começando por ser despessoal. Pois existe a trajetória, e a trajetória não é apenas um modo de ir. A trajetória somos nós mesmos. Em matéria de viver, nunca se pode chegar antes. A via-crucis não é um descaminho, é a passagem única, não se chega senão através dela e com ela. A insistência é o nosso esforço, a desistência é o prêmio. A este só se chega quando se experimentou o poder de construir, e, apesar do gosto de poder, prefere-se a desistência. A desistência tem que ser uma escolha. Desistir...

A Paixão Segundo G.H. (trecho)

[...] Quero o material das coisas. A humanidade está ensopada de humanização, como se fosse preciso; e essa falsa humanização impede o homem e impede a sua humanidade. Existe uma coisa que é mais ampla, mais surda, mais funda, menos boa, menos ruim, menos bonita. Embora também essa coisa corra o perigo de, em nossas mãos grossas, vir a se transformar em “pureza”, nossas mãos que são grossas e cheias de palavras. Nossas mãos que são grossas e cheias de palavras. [...] Não quero a beleza, quero a identidade. A beleza seria um acréscimo, e agora vou ter que dispensá-la. O mundo não tem intenção de beleza, e isto antes me teria chocado: no mundo não existe nenhum plano estético, nem mesmo o plano estético da bondade, e isto antes me chocaria. A coisa é muito mais que isto. O Deus é maior que a bondade com a sua beleza. Ah, despedir-se disso tudo significa tal grande desilusão. Mas é na desilusão que se cumpre a promessa, através da desilusão, através da dor é que se cumpre a promessa, e é...

A Paixão Segundo G.H. (trecho)

[...] Mas ouve um instante: não estou falando do futuro, estou falando de uma atualidade permanente. E isto quer dizer que a esperança não existe porque ela não é mais um futuro adiado, é hoje. Porque o Deus não promete. Ele é muito maior que isso: Ele é, e nunca pára de ser. Somos nós que não agüentamos esta luz sempre atual, e então a prometemos para depois, somente para não senti-la hoje mesmo e já. O presente é a face hoje do Deus. O horror é que sabemos que é em vida mesmo que vemos Deus. É com os olhos abertos mesmo que vemos Deus. E se adio a face da realidade para depois de minha morte - é por astúcia, porque prefiro estar morta na hora de vê-Lo e assim penso que não O verei realmente, assim como só tenho coragem de verdadeiramente sonhar quando estou dormindo. Sei que o que estou sentindo é grave e pode me destruir. Porque - porque é como se eu estivesse me dando a notícia de que o reino dos céus já é. E eu não quero o reino dos céus, eu não o quero, só agüento a sua promessa!...

A Caçada (trecho)

Nessa mesma tarde ouviu-se a cadência de patas nas pe­dras da rua do Mercado. A carroça e o cavalo avançavam a passo. De súbito a cabeça do cavalo cresceu, a um mo­vimento espavorido do pescoço ergueu-se: gengivas roxas apareceram e os freios cortaram-lhe a boca — num rincho de todo o corpo e na estridência das rodas: o cavalo e a carroça. Depois o vento continuou a soprar em si­lêncio. O que sucedia na rua não atingia mas chamava como para assistir a um incêndio. No quarto uma jovem estava de pé e, se procurava manter a sensatez, já se achava entregue ao próprio ru­mor sem linguagem. Também no aposento os objetos, de forma constante, tornaram-se insuportáveis além de al­guns segundos — a moça estava sempre de costas para alguma coisa; o quarto já se precipitara, pesado de orna­mentos. Só ela ainda estava consciente demais para co­meçar o disfarce, o vento entre os sobrados apressava-a. Enquanto se descalçava forçava mesmo a confusão do quarto e da rua, de onde tiraria a própria forma....

O Cidadão (trecho)

"Os seres marinhos, quando não tocam o fundo do mar, sè adaptam a uma vida flutuante ou pelágica", estudou Perseu na tarde de 15 de maio de 192... Heróico e vazio o cidadão continuou de pé junto da janela aberta. Mas na verdade jamais poderia transmi­tir a alguém o modo pelo qual ele era harmonioso, e mes­mo que falasse não diria uma palavra que cedesse a polidez de sua aparência: sua extrema harmonia era ape­nas evidente. "Os animais pelágicos se reproduzem com profusão", disse com oca luminosidade. Cego e glorioso — era isso apenas o que se podia saber dele vendo-o à janela de um segundo andar. Mas se ninguém conseguiria sondar sua harmonia — também ele parecia não sentir mais do que ela. Porque este era o seu grau de luz. "Os animais e vegetais marinhos com profusão", disse sem ímpeto mas sem freio porque este era o seu grau de luz. Não impor­ta que na luz ele fosse tão cego como os outros na escuri­dão. A diferença é que ele estava na luz. "Flutua...

A Paixão Segundo G.H. (trecho)

[...] Provação. Agora entendo o que é provação. Provação: significa que a vida está me provando. Mas provação: significa que eu também estou provando. E provar pode se transformar numa sede cada vez mais insaciável. Espera por mim: vou te tirar do inferno a que desci. Ouve, ouve: Pois do regozijo sem remissão, já estava nascendo em mim um soluço que mais parecia de alegria. Não era um soluço de dor, eu nunca o ouvira antes: era o de minha vida se partindo para me procriar. Naquelas areias do deserto eu estava começando a ser de uma delicadeza de primeira tímida oferenda, como a de uma flor. Que oferecia eu? que podia eu oferecer de mim - eu, que estava sendo o deserto, eu, que o havia pedido e tido? Eu oferecia o soluço. Chorava enfim dentro de meu inferno. As asas mesmo do negror eu as uso e as suo, e as usava e suava para mim - que és Tu, tu, fulgor do silêncio. Eu não sou Tu, mas mim é Tu. Só por isso jamais poderei Te sentir direto: porque és mim. Oh Deus, eu estava começando a ent...

A Legião Estrangeira (trecho)

Se me perguntassem sobre Ofélia e seus pais, teria respondido com o decoro da honestidade: mal os conheci. Diante do mesmo júri ao qual responderia: mal me conheço — e para cada cara de jurado diria com o mesmo límpido olhar de quem se hipnotizou para a obediência: mal vos conheço. Mas às vezes acordo do longo sono e volto-me com docilidade para o delicado abismo da desordem. Estou tentando falar sobre aquela família que sumiu há anos sem deixar traços em mim, e de quem me ficara apenas uma imagem esverdeada pela distância. Meu inesperado consentimento em saber foi hoje provocado pelo fato de ter aparecido em casa um pinto. Veio trazido por mão que queria ter o gosto de me dar coisa nascida. Ao desengradarmos o pinto, sua graça pegou-nos em flagrante. Amanhã é Natal, mas o momento de silêncio que espero o ano inteiro veio um dia antes de Cristo nascer. Coisa piando por si própria desperta a suavíssima curiosidade que junto de uma manjedoura é adoração. Ora, disse meu marido, e essa ago...

A Paixão Segundo G.H. (trecho)

[...] E tudo isto é neste próprio instante, é no já. Mas ao mesmo tempo o instante atual é todo remoto por causa do tamanho-grandeza do Deus. Por causa do enorme tamanho perpétuo é que, mesmo o que existe já, é remoto: no próprio instante em que se quebra no armário a barata, ela também é remota em relação ao seio da grande indiferença-interessada que a reabsorve impunemente. A grandiosa indiferença - era isto o que estava existindo dentro de mim? A grandeza infernal da vida: pois nem meu corpo me delimita, a misericórdia não vem fazer com que o corpo me delimite. No inferno, o corpo não me delimita, e a isso chamo de alma? Viver a vida que não é mais a de meu corpo - a isto eu chamo de alma impessoal? E minha alma impessoal me queima. A grandiosa indiferença de um astro é a alma da barata, o astro é a própria exorbitância do corpo da barata. A barata e eu aspiramos a uma paz que não pode ser nossa - é uma paz além do tamanho e do destino dela e meu. E porque minha alma é tão ilimitada...

O Morro do Pasto (trecho)

— Onze horas, disse Felipe. Mal acabara de falar o relógio da igreja bateu a primeira badalada, dourada, solene. O povo pareceu ou­vir um momento o espaço... o estandarte na mão de um anjo imobilizou-se estremecendo. Mas de súbito o fogo de artifício subiu e espocou entre as badala­das. A multidão, tocada do sono rápido em que sucum­bira, moveu-se bruscamente e de novo rebentaram gritos no carrossel. Sobre as cabeças as lanternas se embaciavam tre­mulando a visão; os bazares se entortavam a gotejar. Quando Felipe e Lucrécia alcançaram a roda-gigante o sino sacudiu-se acima da noite enchendo de emoção a festa religiosa — o movimento da multidão tornou-se mais ansiado e mais livre. A população acorrera para ce­lebrar o subúrbio e seu santo, e no escuro o pátio da igreja resplandecia. Misturando-se à pólvora queimada a groselha erguia os rostos em náusea e ofuscamento. As caras ora apareciam, ora desapareciam. Lucrécia achou-se tão perto de uma face que esta lhe riu. Era difícil per­ceber...

O Abrigo no Professor (trecho)

Joana bem se lembrava: dias antes de casar pro­curara o professor. Subitamente precisara encontrá-lo, senti-lo fir­me e frio antes de ir embora. Porque de algum modo parecia-lhe estar traindo toda a sua vida pas­sada com o casamento. Queria rever o professor, sentir seu apoio. E quando lhe surgiu a idéia de visitá-lo, acalmara-se aliviada. Ele haveria de lhe dar a palavra justa. Que pa­lavra? Nada, respondia-se misteriosamente, queren­do numa repentina vontade de fé e de boa espera guardar-se para ouvi-lo completamente nova, sem ter sequer uma idéia do que ia ganhar. Um dia já lhe sucedera isso: quando pela primeira vez se pre­parava para o circo, em pequena. Teve os melhores momentos aprontando-se para ele. E quando se aproximou do largo campo onde branqueava o bar­racão redondo e imenso, como uma dessas cúpulas que escondem ate certo instante o melhor prato da mesa, quando se aproximou na mão da criada, sen­tiu o medo e a angústia e a alegria trêmula no cora­ção, queria voltar, fugir...

A Paixão Segundo G.H. (trecho)

Pois em mim mesma eu vi como é o inferno. O inferno é a boca que morde e come a carne viva que tem sangue, e quem é comido uiva com o regozijo no olho: o inferno é a dor como gozo da matéria, e com o riso do gozo, as lágrimas escorrem de dor. E a lágrima que vem do riso de dor é o contrário da redenção. Eu via a inexorabilidade da barata com sua máscara de ritual. Eu via que o inferno era isso: a aceitação cruel da dor, a solene falta de piedade pelo próprio destino, amar mais o ritual de vida que a si próprio - esse era o inferno, onde quem comia a cara viva do outro espojava-se na alegria da dor. Pela primeira vez eu sentia com sofreguidão infernal a vontade de ter tido os filhos que eu nunca tivera: eu queria que se tivesse reproduzido, não em três ou quatro filhos, mas em vinte mil a minha orgânica infernalidade cheia de prazer. Minha sobrevivência futura em filhos é que seria a minha verdadeira atualidade, que é, não apenas eu, mas minha prazerosa espécie a nunca se interromper. N...

A Paixão Segundo G.H. (trecho)

Por enquanto, hoje, eu vivia no silêncio daquilo que daí a três milênios, depois de erosado e de novo erguido, seria de novo escadas, guindastes, homens e construções. Eu estava vivendo a pré-história de um futuro. Como uma mulher que nunca teve filhos mas os terá daí a três milênios, eu já vivia hoje do petróleo que em três milênios ia jorrar. Se ao menos eu tivesse entrado no quarto ao entardecer - hoje de noite ainda seria lua cheia, lembrei-me disso ao recordar a festa no terraço da noite anterior - eu veria a lua cheia nascer sobre o deserto. “Ah, quero voltar para a minha casa”, pedi-me de súbito, pois a lua úmida me dera saudade de minha vida. Mas daquela plataforma eu não conseguia nenhum momento de escuridão e lua. Só o braseiro, só o vento errante. E para mim nenhum cantil de água, nenhuma vasilha de comida. Mas quem sabe, menos de um ano depois, eu faria um achado tal como ninguém e eu mesma não teria ousado esperar. Um cálice de ouro?

O Casamento (trecho)

[...] Mas apesar de tudo a impressão continuava querendo ir para frente, como se o principal estivesse além da escadaria e dos leques. Parou um instante os movimentos e só os olhos batiam rápidos, à pro­cura da sensação. Ah, sim. Desceu pela escadaria de mármore, sentindo na planta dos pés aquele medo frio de escorregar, nas mãos um suor cálido, na cin­tura uma fita apertando, puxando-a como um leve guindaste para cima. Depois o cheiro das fazendas novas, o olhar brilhante e curioso de um homem atravessando-a e deixando-lhe, como se tivesse com­primido um botão no escuro, o corpo iluminado. Ela era percorrida por longos músculos inteiros. Qual­quer pensamento descia por essas cordas polidas até tremer ali, nos tornozelos, onde a carne era macia como a de um frango. [...] Olhava-o misteriosamente, séria e terna. E agora procurava emocionar-se pensando nos dois futuros mortos. Encostou a cabeça no seu peito e lá um cora­ção batia. Pensou: mas mesmo assim, apesar da morte, vou deixá-lo um...

A Paixão Segundo G.H. (trecho)

Não era usando como instrumento nenhum de meus atributos que eu estava atingindo o misterioso fogo manso daquilo que é um plasma - foi exatamente tirando de mim todos os atributos, e indo apenas com minhas entranhas vivas. Para ter chegado a isso, eu abandonava a minha organização humana - para entrar nessa coisa monstruosa que é a minha neutralidade viva. [...] E eu, agora eu já não era mais uma criança inquisidora. Eu crescera, e me tornara tão simples como uma rainha. Reis, esfinges e leões - eis a cidade onde vivo, e tudo extinto. Sobrei, presa por uma das pedras que desabaram. E, como o silêncio julgou a minha imobilidade como sendo a de uma morta, todos esqueceram-se de mim, foram embora sem me retirarem, e, julgada morta, fiquei assistindo. E vi, enquanto o silêncio dos que realmente haviam morrido ia-me invadindo como hera invade a boca dos leões de pedra. E porque eu mesma estava então certa de que terminaria morrendo de inanição sob a pedra desabada que me prendia pelos membr...

Otávio (trecho)

"De profundis". Joana esperou que a idéia se tor­nasse mais clara, que subisse das névoas aquela bola brilhante e leve que era o germe de um pensamento. "De profundis". Sentia-o vacilar, quase perder o equilíbrio e mergulhar para sempre em águas des­conhecidas. Ou senão, a momentos, afastar as nu­vens e crescer trêmulo, quase emergir completa­mente ... Depois o silêncio. Fechou os olhos, vagarosamente foi descan­sando. Quando os abriu recebeu um pequeno choque. E durante longos e profundos segundos soube que aquele trecho de vida era uma mistura do que já vivera com o que ainda viveria, tudo fundido e eterno. Estranho, estranho. A luz alaranjada das 9 horas, aquela impressão de intervalo, um piano longínquo insistindo nas notas agudas, seu coração batendo apressado de encontro ao calor da manhã e, atrás de tudo, feroz, ameaçador, o silêncio latejando grosso e impalpável. Tudo desvaneceu-se. O piano interrompeu a insistência nas últimas notas e após um instante de re...

A Paixão Segundo G.H. (trecho)

Vou agora te contar como entrei no inexpressivo que sempre foi a minha busca cega e secreta. De como entrei naquilo que existe entre o número um e o número dois, de como vi a linha de mistério e fogo, e que é linha sub-reptícia. Entre duas notas de música existe uma nota, entre dois fatos existe um fato, entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam existe um intervalo de espaço, existe um sentir que é entre o sentir - nos interstícios da matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo é aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio.

A Mulher da Voz e Joana (trecho)

Joana não a olhou mais atentamente senão quan­do ouviu sua voz. O tom baixo e curvo, sem vibra­ções, despertou-a. Fitou a mulher com curiosidade. Deveria ter vivido alguma coisa que Joana ainda não conhecera. Não compreendia aquela entonação, tão longe da vida, tão longe dos dias... Joana lembrou-se de como uma vez, poucos meses depois de casada, dirigira-se ao marido perguntando-lhe qualquer coisa. Estavam na rua. E antes mesmo de terminar a frase, com surpresa de Otávio, ela parara — a testa franzida, o olhar diver­tido. Ah — descobrira — então ela repetia uma daquelas vozes que ouvira em solteira tantas vezes, sempre vagamente perplexa. A voz de uma mulher jovem junto de seu homem. Como a dela própria que soara naquele instante para Otávio: aguda, vazia, lançada para o alto, com notas iguais e claras. Algo inacabado, extático, um pouco saciado. Tentando gritar... Claros dias, límpidos e secos, voz e dias assexuados, meninos de coro em missa campal. E alguma coisa perdida, encaminhan...

A Paixão Segundo G.H. (trecho)

Foi pensando no sal dos olhos da barata que, num suspiro de quem vai ser obrigado a ceder mais um passo, percebi que ainda estava usando a antiga beleza humana: sal. Também a beleza do sal e a beleza das lágrimas eu teria de abandonar. Também isso, pois o que eu estava vendo era ainda anterior ao humano. Pois o que eu estava vendo era ainda anterior ao humano. Não, não havia sal naqueles olhos. Eu tinha a certeza de que os olhos da barata eram insossos. Para o sal eu sempre estivera pronta, o sal era a transcendência que eu usava para poder sentir um gosto, e poder fugir do que eu chamava de “nada”. Para o sal eu estava pronta, para o sal eu toda me havia construído. Mas o que minha boca não saberia entender - era o insosso, O que eu toda não conhecia - era o neutro. E o neutro era a vida que eu antes chamava de o nada. O neutro era o inferno. O sol caminhara um pouco e fixara-se em minhas costas. Também ao sol estava a barata bipartida. Não posso fazer nada por você, barata. Não quero...

Os Obedientes

Trata-se de uma situação simples, um fato a contar e esquecer. Mas se alguém comete a imprudência de parar um instante a mais do que deveria, um pé afunda dentro e fica-se comprometido. Desde esse instante em que também nós nos arriscamos, já não se trata mais de um fato a contar, começam a faltar as palavras que não o trairiam. A essa altura, afundados demais, o fato deixou de ser um fato para se tornar apenas a sua difusa repercussão. Que, se for retardada demais, vem um dia explodir como nesta tarde de domingo, quando há semanas não chove e quando, como hoje, a beleza ressecada persiste embora em beleza. Diante da qual assumo uma gravidade como diante de um túmulo. A essa altura, por onde anda o fato inicial? ele se tornou esta tarde. Sem saber como lidar com ela, hesito em ser agressiva ou recolher-me um pouco ferida. O fato inicial está suspenso na poeira ensolarada deste domingo — até que me chamam ao telefone e num salto vou lamber grata a mão de quem me ama e me liberta. Cronol...

A Paixão Segundo G.H. (trecho)

Era com alegria infernal que eu como que ia morrer. Eu começava a sentir que meu passo mal-assombrado seria irremediável, e que eu estava pouco a pouco abandonando a minha salvação humana. Sentia que o meu de dentro, apesar de matéria fofa e branca, tinha no entanto força de rebentar meu rosto de prata e beleza, adeus beleza do mundo. Beleza que me é agora remota e que não quero mais estou sem poder mais querer a beleza - talvez nunca a tivesse querido mesmo, mas era tão bom! eu me lembro como o jogo da beleza era bom, a beleza era uma transmutação contínua. Mas com alívio infernal eu me despeço dela. O que sai do ventre da barata não é transcendentável - ah, não quero dizer que é o contrário da beleza, “contrário de beleza” nem faz sentido o que sai da barata é: “hoje”, bendito o fruto de teu ventre - eu quero a atualidade sem enfeitá-la com um futuro que a redima, nem com uma esperança - até agora o que a esperança queria em mim era apenas escamo tear a atualidade. Mas eu quero muito...