O Corpo (A Via Crucis do Corpo)

terça-feira, setembro 07, 2010

Xavier era um homem truculento e sangüíneo. Muito forte esse homem. Adorava tangos. Foi ver O último tango em Paris e excitou-se terrivelmente. Não compreendeu o filme: achava que se tratava de filme de sexo. Não descobriu que aquela era a história de um homem desesperado. Na noite em que viu O último tango em Paris foram os três para cama: Xavier, Carmem e Beatriz. Todo o mundo sabia que Xavier era bígamo: vivia com duas mulheres.
Cada noite era uma. Às vezes duas vezes por noite. A que sobrava ficava assistindo. Uma não tinha ciúme da outra. Beatriz comia que não era vida: era gorda e enxundiosa. Já Carmem era alta e magra. A noite do último tango em Paris foi memorável para os três. De madrugada estavam exaustos. Mas Carmem se levantou de manhã, preparou um lautíssimo desjejum — com gordas colheres de grosso creme de leite — e levou-o para Beatriz e Xavier. Estava estremunhada. Precisou tomar um banho de chuveiro gelado para se pôr em forma de novo. Nesse dia — domingo — almoçaram às três horas da tarde. Quem cozinhou foi Beatriz, a gorda. Xavier bebeu vinho francês. E comeu sozinho um frango inteiro. As duas comeram o outro frango. Os frangos eram recheados de farofa de passas e ameixas, tudo úmido e bom. Às seis horas da tarde foram os três para a igreja. Pareciam um bolero. O bolero de Ravel. E de noite ficaram em casa vendo televisão e comendo. Nessa noite não aconteceu nada: os três estavam muito cansados.
E assim era, dia após dia.
Xavier trabalhava muito para sustentar as duas e a si mesmo, as grandes comidas. E às vezes enganava a ambas com uma prostituta ótima. Mas nada contava em casa pois não era doido. Passavam-se dias, meses, anos. Ninguém morria. Xavier tinha quarenta e sete anos. Carmem tinha trinta e nove. E Beatriz já completara os cinqüenta. A vida lhes era boa. Às vezes Carmem e Beatriz saíam a fim de comprar camisolas cheias de sexo. E comprar perfume. Carmem era mais elegante. Beatriz, com suas banhas, escolhia biquíni e um sutiã mínimo para os enormes seios que tinha. Um dia Xavier só chegou de noite bem tarde: as duas desesperadas. Mal sabiam que ele estava com a sua prostituta. Os três na verdade eram quatro, como os três mosqueteiros.
Xavier chegou com uma fome que não acabava mais. E abriu uma garrafa de champanha. Estava em pleno vigor. Conversou animadamente com as duas, contoulhes que a indústria farmacêutica que lhe pertencia ia bem de finanças. E propôs às duas irem os três a Montevidéu, para um hotel de luxo. Foi uma tal azáfama a preparação das três malas. Carmem levou toda a sua complicada maquilagem.
Beatriz saiu e comprou uma minissaia. Foram de avião. Sentaram-se em banco de três lugares: ele no meio das duas. Em Montevidéu compraram tudo o que quiseram. Inclusive uma máquina de costura para Beatriz e uma máquina de escrever que Carmem quis para aprender a manipulá-la. Na verdade não precisava de nada, era uma pobre desgraçada. Mantinha um diário: anotava nas páginas do grosso caderno encadernado de vermelho as datas em que Xavier a procurava. Dava o diário a Beatriz para ler.
Em Montevidéu compraram um livro de receitas culinárias. Só que era em francês e elas nada entendiam. As palavras mais pareciam palavrões. Então compraram um receituário em castelhano. E se esmeraram nos molhos e nas sopas. Aprenderam a fazer rosbife. Xavier engordou três quilos e sua força de touro acresceu-se.
Às vezes as duas se deitavam na cama. Longo era o dia. E, apesar de não serem homossexuais, se excitavam uma à outra e faziam amor. Amor triste. Um dia contaram esse fato a Xavier. Xavier vibrou. E quis que nessa noite as duas se amassem na frente dele. Mas, assim encomendado, terminou tudo em nada. As duas choraram e Xavier encolerizouse danadamente.
Durante três dias ele não disse nenhuma palavra às duas. Mas, nesse intervalo, e sem encomenda, as duas foram para a cama e com sucesso. Ao teatro os três não iam. Preferiam ver televisão. Ou jantar fora. Xavier comia com maus modos: pegava a comida com as mãos, fazia muito barulho para mastigar, além de comer com a boca aberta. Carmem, que era mais fina, ficava com nojo e vergonha. Sem vergonha mesmo era Beatriz que até nua andava pela casa.
Não se sabe como começou. Mas começou.
Um dia Xavier veio do trabalho com marcas de batom na camisa. Não pôde negar que estivera com a sua prostituta preferida. Carmem e Beatriz pegaram cada uma um pedaço de pau e correram pela casa toda atrás de Xavier. Este corria feito um desesperado, gritando: perdão! perdão! perdão! As duas, também cansadas, afinal deixaram de persegui-lo. Às três horas da manhã Xavier teve vontade de ter mulher. Chamou Beatriz porque ela era menos rancorosa. Beatriz, mole e cansada, prestou-se aos desejos do homem que parecia um super-homem.
Mas no dia seguinte avisaram-lhe que não cozinhariam mais para ele. Que se arranjasse com a terceira mulher. As duas de vez em quando choravam e Beatriz preparou para ambas uma salada de batata com maionese. De tarde foram ao cinema. Jantaram fora e só voltaram para casa à meia-noite.
Encontrando um Xavier abatido, triste e com fome. Ele tentou explicar:
— É porque às vezes tenho vontade durante o dia!
— Então, disse-lhe Carmem, então por que não volta para casa?
Ele prometeu que assim faria. E chorou. Quando chorou, Carmem e Beatriz ficaram de coração partido. Nessa noite as duas fizeram amor na sua frente e ele roeuse de inveja. Como é que começou o desejo de vingança? As duas cada vez mais amigas e desprezando-o.
Ele não cumpriu a promessa e procurou a prostituta. Esta excitava-o porque dizia muito palavrão. E chamava-o de filho da puta. Ele aceitava tudo. Até que veio um certo dia.
Ou melhor, uma noite. Xavier dormia placidamente como um bom cidadão que era. As duas ficaram sentadas junto de uma mesa, pensativas. Cada uma pensava na infância perdida. E pensaram na morte. Carmem disse:
— Um dia nós três morreremos. Beatriz retrucou:
— E à toa.
Tinham que esperar pacientemente pelo dia em que fechariam os olhos para sempre. E Xavier? O que fariam com Xavier? Este parecia uma criança dormindo.
— Vamos esperar que Xavier morra de morte morrida? perguntou Beatriz.
Carmem pensou, pensou e disse:
— Acho que devemos as duas dar um jeito.
— Que jeito?
— Ainda não sei.
— Mas temos que resolver.
— Pode deixar por minha conta, eu sei o que faço.
E nada de fazerem nada. Daqui a pouco seria madrugada e nada teria acontecido. Carmem fez para as duas um café bem forte. E comeram chocolate até à náusea. E nada, nada mesmo.
Ligaram o rádio de pilha e ouviram uma lancinante música de Schubert. Era piano puro. Carmem disse:
— Tem que ser hoje.
Carmem liderava e Beatriz obedecia. Era uma noite especial: cheia de estrelas que as olhavam faiscantes e tranqüilas. Que silêncio. Mas que silêncio. Foram as duas para perto de Xavier para ver se se inspiravam. Xavier roncava. Carmem realmente inspirou-se. Disse para Beatriz:
— Na cozinha há dois facões.
— E daí?
— E daí nós somos duas e temos dois facões.
— E daí?
— E daí, sua burra, nós duas temos armas e poderemos fazer o que precisamos fazer. Deus manda.
— Não é melhor não falar em Deus nessa hora?
— Você quer que eu fale no Diabo? Não, falo em Deus que é dono de tudo. Do espaço e do tempo.
Então foram à cozinha. Os dois facões eram amolados, de fino aço polido.
Teriam força?
Teriam, sim.
Foram armadas. O quarto estava escuro. Elas faquejaram erradamente, apunhalando o cobertor. Era noite fria. Então conseguiram distinguir o corpo adormecido de Xavier. O rico sangue de Xavier escorria pela cama, pelo chão, um desperdício.
Carmem e Beatriz sentaram-se junto à mesa da sala de jantar, sob a luz amarela da lâmpada nua, estavam exaustas. Matar requer força. Força humana. Força divina. As duas estavam suadas, mudas, abatidas. Se tivessem podido, não teriam matado o seu grande amor.
E agora? Agora tinham que se desfazer do corpo. O corpo era grande. O corpo pesava.
Então as duas foram ao jardim e com auxílio de duas pás abriram no chão uma cova.
E, no escuro da noite — carregaram o corpo pelo jardim afora. Era difícil porque Xavier morto parecia pesar mais do que quando vivo, pois escapara-lhe o espírito.
Enquanto o carregavam, gemiam de cansaço e de dor. Beatriz chorava.
Puseram o grande corpo dentro da cova, cobriram-na com a terra úmida e cheirosa do jardim, terra de bom plantio. Depois entraram em casa, fizeram de novo café, e revigoraram-se um pouco.
Beatriz, muito romântica que era — vivia lendo foto-novelas onde acontecia amor contrariado ou perdido — Beatriz teve a idéia de plantarem rosas naquela terra fértil.
Então foram de novo ao jardim, pegaram uma muda de rosas vermelhas e plantaram-na na sepultura do pranteado Xavier. Amanhecia. O jardim orvalhado. O orvalho era uma bênção ao assassinato. Assim elas pensaram, sentadas no banco branco que lá havia.
Passaram-se dias. As duas mulheres compraram vestidos pretos. E mal comiam.
Quando anoitecia a tristeza caía sobre elas. Não tinham mais gosto de cozinhar. De raiva, Carmem, a colérica, rasgou o livro de receitas em francês. Guardou o castelhano: nunca sabia se ainda não seria necessário.
Beatriz passou a ocupar-se da cozinha. Ambas comiam e bebiam em silêncio. O pé de rosas vermelhas parecia ter pegado. Boa mão de plantio, boa terra próspera. Tudo resolvido.
E assim ficaria encerrado o problema.
Mas acontece que o secretário de Xavier estranhou a longa ausência. Havia papéis urgentes a assinar. Como a casa de Xavier não tinha telefone, foi até lá. A casa parecia banhada de mala suerte. As duas mulheres disseram-lhe que Xavier viajara, que fora a Montevidéu. O secretário não acreditou muito mas pareceu engolir a história.
Na semana seguinte o secretário foi à Polícia. Com Polícia não se brinca. Antes os policiais não quiseram dar crédito à história. Mas, diante da insistência do secretário, resolveram preguiçosamente dar ordem de busca na casa do polígamo. Tudo em vão: nada de Xavier. Então Carmem falou assim:
— Xavier está no jardim.
— No jardim? fazendo o quê?
— Só Deus sabe o quê.
— Mas nós não vimos nada nem ninguém. Foram ao jardim: Carmem, Beatriz, o secretário de nome Alberto, dois policiais, e mais dois homens que não se sabia quem eram. Sete pessoas. Então Beatriz, sem uma lágrima nos olhos, mostrou-lhes a cova florida. Três homens abriram a cova, destroçando o pé de rosas que sofriam à toa a brutalidade humana.
E viram Xavier. Estava horrível, deformado, já meio roído, de olhos abertos.
— E agora? disse um dos policiais.
— E agora é prender as duas mulheres.
— Mas, disse Carmem, que seja numa mesma cela.
— Olhe, disse um dos policiais diante do secretário atônito, o melhor é fingir que nada aconteceu senão vai dar muito barulho, muito papel escrito, muita falação.
— Vocês duas, disse o outro policial, arrumem as malas e vão viver em
Montevidéu. Não nos dêem maior amolação.
As duas disseram: muito obrigada.
E Xavier não disse nada. Nada havia mesmo a dizer.

Explicação (A Via Crucis do Corpo)

segunda-feira, setembro 06, 2010

O poeta Álvaro Pacheco, meu editor na Artenova, me encomendou três histórias que, disse ele, realmente aconteceram. Os fatos eu tinha, faltava a imaginação. E era assunto perigoso. Respondi-lhe que não sabia fazer história de encomenda. Mas — enquanto ele me falava ao telefone — eu já sentia nascer em mim a inspiração. A conversa telefônica foi na sexta-feira. Comecei no sábado. No domingo de manhã as três histórias estavam prontas: "Miss Algrave", "O Corpo" e "Via Crucis". Eu mesma espantada. Todas as histórias deste livro são contundentes. E quem mais sofreu fui eu mesma. Fiquei chocada com a realidade. Se há indecências nas histórias a culpa não é minha. Inútil dizer que não aconteceram comigo, com minha família e com meus
amigos. Como é que sei? Sabendo. Artistas sabem de coisas. Quero apenas avisar que não escrevo por dinheiro e sim por impulso. Vão me jogar pedras. Pouco importa. Não sou de brincadeiras, sou mulher séria. Além do mais tratava-se de um desafio.
Hoje é dia 12 de maio, Dia das Mães. Não fazia sentido escrever nesse dia histórias que eu não queria que meus filhos lessem porque eu teria vergonha. Então disse ao editor: só publico sob pseudônimo. Até já tinha escolhido um nome bastante simpático: Cláudio Lemos. Mas ele não aceitou. Disse que eu devia ter liberdade de escrever o que quisesse. Sucumbi. Que podia fazer? senão ser a vítima de mim mesma. Só peço a Deus que ninguém me encomende mais nada. Porque, ao que parece, sou capaz de revoltadamente obedecer, eu a inliberta.
Uma pessoa leu meus contos e disse que aquilo não era literatura, era lixo. Concordo. Mas há hora para tudo. Há também a hora do lixo. Este livro é um pouco triste porque eu descobri, como criança boba, que este é um mundo-cão.
É um livro de treze histórias. Mas podia ser de quatorze. Eu não quero. Porque estaria desrespeitando a confidência de um homem simples que me contou a sua vida. Ele é charreteiro numa fazenda. E disse-me: para não derramar sangue, separei-me de minha mulher, ela se desencaminhou e desencaminhou minha filha de dezesseis anos. Ele tem um filho de dezoito anos que nem quer ouvir falar no nome da própria mãe. E assim são as coisas.

CL.

PS. — "O homem que apareceu" e "Por enquanto" também foram escritos no mesmo domingo maldito. Hoje, 13 de maio, segunda-feira, dia da libertação dos escravos — portanto da minha também — escrevi "Danúbio Azul", "A língua do 'p'" e "Praça Mauá". "Ruído de passos" foi escrito dias depois numa fazenda, no escuro da grande noite.
Já tentei olhar bem de perto o rosto de uma pessoa — uma bilheteira de cinema. Para saber do segredo de sua vida. Inútil. A outra pessoa é um enigma. E seus olhos são de estátua: cegos.