Duas Histórias a Meu Modo

sábado, outubro 25, 2008

A narradora relembra duas histórias, que ela escrevera para se divertir, dando ao autor imaginário o nome de Marcel Aymé.
Félicien era um vinicultor francês que produzia o melhor vinho da região, mas não gostava de vinho. Ele e a mulher Leontina escondiam de todos esse fato. Félicien costumava até fingir-se de alcoolizado para esconder que não bebia vinho.
Outra história: Etienne Duvilé, funcionário estadual em Paris, gostava de vinho, mas não o tinha. Sua realidade era uma família grande que sonhava com mesa farta e ele, com vinho. Depois do sonho de uma noite de sábado, a sede de vinho piorou. Ele passou, acordado, a querer não só beber vinho mas beber todo o mundo. Até hoje ele está internado num hospício, tratado com água mineral “ que estanca sedes pequenas e não a grande”.

Menino a Bico de Pena

sábado, outubro 25, 2008

Um menino, que ainda não fala nem anda direito, está sentado no chão. Tenta dar alguns passos, cai; engatinha, baba. Depois a mãe o toma no colo, o faz dormir, troca a fralda dele e o ouve dar os primeiros sinais da fala.

Prece

sábado, outubro 25, 2008

Alivia a minha alma, faze com que eu sinta que Tua mão está dada à minha, faze com que eu sinta que a morte não existe porque na verdade já estamos na eternidade, faze com que eu sinta que amar é não morrer, que a entrega de si mesmo não significa a morte, faze com que eu sinta uma alegria modesta e diária, faze com que eu não Te indague demais, porque a resposta seria tão misteriosa quanto a pergunta, faze com que me lembre de que também não há explicação porque um filho quer o beijo de sua mãe e no entanto ele quer e no entanto o beijo é perfeito, faze com que eu receba o mundo sem receio, pois para esse mundo incompreensível eu fui criada e eu mesma também incompreensível, então é que há uma conexão entre esse mistério do mundo e o nosso, mas essa conexão não é clara para nós enquanto quisermos entendê-la, abençoa-me para eu viva com alegria o pão que eu como, o sono que durmo, faze com que eu tenha caridade por mim mesma, pois senão não poderei sentir que Deus me amou, faze com que eu perca o pudor de desejar que na hora de minha morte haja uma mão humana amada para apertar a minha, amém.

História Interrompida

quarta-feira, outubro 08, 2008

Ele era triste e alto. Jamais falava comigo que não desse a entender que seu maior defeito consistia na sua tendência para a destruição. E por isso, dizia, alisando os cabelos negros como quem alisa o pêlo macio e quente de um gatinho, por isso é que sua vida se resumia num monte de cacos: uns brilhantes, outros baços, uns alegres, outros como um "pedaço de hora perdida", sem significação, uns vermelhos e completos, outros brancos, mas já espedaçados.
Eu, na verdade não sabia o que retrucar e lamentava não ter um gesto de reserva, como o seu, de alisar o cabelo, para sair da confusão. No entanto, para quem leu um pouco e pensou bastante nas noites de insônia, é relativamente fácil dizer qualquer coisa que pareça profunda. Eu lhe respondia que mesmo destruindo ele construía: pelo menos esse monte de cacos para onde olhar e de que falar. Perfeitamente absurdo. Ele, sem dúvida, também o achava, porque não respondia. Ficava muito triste, a olhar para o chão e a alisar seu gatinho morno.
[...]
E repentinamente a história se partiu. Nem teve ao menos um fim suave. Terminou com a brusquidão e a falta de lógica de uma bofetada em pleno rosto.Estou cansada e tenho um filho. Não lhe dei o nome de W... E não costumo olhar para trás: tenho em mente ainda o castigo que Deus deu à mulher de Loth. E só escrevi "isso" para ver se conseguia achar uma resposta a perguntas que me torturam, de quando em quando, perturbando minha paz: que sentido teve a passagem de W... pelo mundo? Que sentido teve a minha dor? Qual o fio que esses fatos a... "Eternidade. Vida. Mundo. Deus."?

Encarnação Involuntária

quarta-feira, outubro 08, 2008

A narradora tem o hábito de, quando vê uma pessoa que nunca viu, observá-la e encarnar-se nela, para poder conhecê-la.
Certa vez, num avião encarnou-se numa missionária. Durante toda a viagem e alguns dias em terra, assumiu o “ar de sofrimento-superado-pela-paz-de-se-ter-uma missão”.
A narradora levanta a hipótese de nunca ter sido ela mesma senão no momento de nascer, e o resto tinha sido encarnações. Depois ela afirma que não, que ela é uma pessoa. “E quando o fantasma de mim mesmo me toma – então é um encontro de alegria, uma tal festa, que a modo de dizer choramos uma no ombro da outra”.
Uma vez, também em viagem, ela encontrou uma prostituta perfumadíssima que fumava entrefechando o olhos e estes ao mesmo tempo olhavam um homem que já estava sendo hipnotizado. Então, a narradora fez o mesmo. “Mas o homem gordo que eu olhava para experimentar e ter a alma da prostituta, o gordo estava mergulhado no New York Times. E meu perfume era discreto demais. Falhou tudo”.

A Vez de Missionária

quarta-feira, outubro 08, 2008

Quando o fantasma de pessoa viva me toma. Sei que por vários dias serei essa mulher do missionário. A magreza e a delicadeza dela já me tomaram. É com algum deslumbramento, e prévio cansaço, que sucumbo ao que vou experimentar viver. E com alguma apreensão, do ponto de vista prático: ando agora ocupado demais com os meus deveres para poder arcar com o peso dessa vida nova que não conheço, mas cuja tensão evangelical já começo a sentir. Percebo que no avião mesmo já comecei a andar com esse passo de santa leiga. Quando saltar em terra, provavelmente já terei esse ar de sofrimento físico e de esperança moral. No entanto quando entrei no avião estava tão forte. Estava, não, estou. É que toda a minha força está sendo usada para eu conseguir ser fraca. Sou uma missionária ao vento. Entendo, entendo, entendo. Não entendo é nada: só que "não entendo" com o mesmo fanatismo depurado dessa mulher pálida. Já sei que só daí a uns dias conseguirei recomeçar a minha própria vida, que nunca foi própria, senão quando o meu fantasma me toma.