Um Sopro de Vida

quinta-feira, julho 31, 2008

Isto não é um lamento, é um grito de ave de rapina. Irisada e intranqüila. O beijo no rosto morto.
Eu escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida. Viver é uma espécie de loucura que a morte faz. Vivam os mortos porque neles vivemos.
De repente as coisas não precisam mais fazer sen­tido. Satisfaço-me em ser. Tu és? Tenho certeza que sim. O não sentido das coisas me faz ter um sorriso de complacência. De certo tudo deve estar sendo o que é.
[...]
Quando acabardes este livro chorai por mim um aleluia. Quando fechardes as últi­mas páginas deste malogrado e afoito e brincalhão li­vro de vida então esquecei-me. Que Deus vos abençoe então e este livro acaba bem. Para enfim eu ter re­pouso. Que a paz esteja entre nós, entre vós e entre mim. Estou caindo no discurso? que me perdoem os fiéis do templo: eu escrevo e assim me livro de mim e posso então descansar.

A Viagem (trecho)

quinta-feira, julho 31, 2008

Impossível explicar. Afastava-se aos poucos da­quela zona onde as coisas têm forma fixa e arestas, onde tudo tem um nome sólido e imutável. Cada vez mais afundava na região líquida, quieta e insondável, onde pairavam névoas vagas e frescas como as da madrugada. Da madrugada erguendo-se no campo. Na fazenda do tio acordara no meio da noite. As tábuas da casa velha rangiam. De lá do primeiro andar, solta no espaço escuro, afundara os olhos na terra, procurando as plantas que se torciam enrodilhadas como víboras. Alguma coisa piscava na noite, espiando, espiando, olhos de um cão deitado, vigi­lante. O silêncio pulsava no seu sangue e ela arfava com ele. Depois a madrugada nasceu sobre as cam­pinas, rosada, úmida. As plantas eram de novo ver­des e ingênuas, o talo fremente, sensível ao sopro do vento, nascendo da morte. Já nenhum cão vigiava a fazenda, agora tudo era um, leve, sem consciência. Havia então um cavalo solto na campina quieta, a mobilidade de suas pernas apenas adivinhada. Tudo impreciso, mas de súbito na imprecisão encontrara uma nitidez que ela apenas adivinhara e não pudera possuir inteiramente. Perturbada pensara: tudo, tudo.
As palavras são seixos rolando no rio. Não fora feli­cidade o que sentira então, mas o que sentira fora fluido, docemente amorfo, instante resplandecente, instante sombrio. Sombrio como a casa que ficava na estrada coberta de árvores folhudas e poeira do cami­nho. Nela morava um velho descalço e dois filhos, grandes e belos reprodutores. O mais novo tinha olhos, sobretudo olhos, beijara-a uma vez, um dos melhores beijos que jamais sentira, e alguma coisa erguia-se no fundo de seus olhos quando ela lhe es­tendia a mão. Essa mesma mão que agora repousava sobre o espaldar de uma cadeira, como um pequeno corpinho aparte, saciado, negligente. Quando era pe­quena costumava fazê-la dançar, como a uma moci­nha tenra. Dançara-a mesmo para o homem que fu­gia ou fora preso, para o amante — e ele fascinado e angustiado terminara por apertá-la, beijá-la como se realmente a mão sozinha fosse uma mulher. Ah, vivera muito, a fazenda, o homem, as esperas. Ve­rões inteiros, onde as noites decorriam insones, dei­xavam-na pálida, os olhos escuros. Dentro da insônia, várias insônias. Conhecera perfumes. Um cheiro de verdura úmida, verdura aclarada por luzes, onde? Ela pisara então na terra molhada dos canteiros, enquanto o guarda não prestava atenção. Luzes pen­dendo de fios, balançando, assim, meditando indife­rentes, música de banda no coreto, os negros farda­dos e suados. As árvores iluminadas, o ar frio e arti­ficial de prostitutas. E sobretudo havia o que não se pode dizer: olhos e boca atrás da cortina espian­do, olhos de um cão piscando a intervalos, um rio rolando em silêncio e sem saber. Também: as plan­tas crescendo de sementes e morrendo.
[...]

A Partida dos Homens (trecho)

quinta-feira, julho 31, 2008

[...]
O silêncio ficou palpitando atrás dele em peque­nos sussurros. Há quanto tempo estivera observando-o, sem sentir.
Ah, então ela morreria.
Sim, que morreria. Simples como o pássaro voa­ra. Inclinou a cabeça para um lado, suavemente co­mo uma louca mansa: mas é fácil, tão fácil... nem é inteligente... é a morte que virá, que virá... Quantos segundos haviam decorrido? Um ou dois. Ou mais. O frio. Percebeu que por um milagre to­mara agora consciência daqueles pensamentos, que eles eram tão profundos que haviam decorrido sob outros materiais e fáceis, simultaneamente... En­quanto ela vivera o sonho, observara as coisas ao redor, usara-as mentalmente, nervosamente, como quem crispa as mãos na cortina enquanto olha a paisagem. Fechou os olhos, docemente serena e can­sada, envolvida em longos véus cinzentos. Um mo­mento ainda sentiu a ameaça de incompreensão nas­cendo do interior longínquo do corpo como um flu­xo de sangue. Eternidade é o não ser, a morte é a imortalidade — boiavam ainda, soltos restos de tormenta. E ela não sabia mais a que ligá-los, tão can­sada.
Agora a certeza de imortalidade se desvanecera para sempre. Mais uma vez ou duas na vida — tal­vez num fim de tarde, num instante de amor, no mo­mento de morrer — teria sublime inconsciência cria­dora, a intuição aguda e cega de que era realmente imortal para todo o sempre.
[...]

A Víbora (trecho)

segunda-feira, julho 28, 2008

Que transponho suavemente alguma coisa...
Otávio lia enquanto o relógio estalava os se­gundos e rompia o silêncio da noite com 11 bada­ladas .
Que transponho suavemente alguma coisa... Ê a impressão. A leveza vem vindo não sei de onde. Cortinas inclinam-se sobre as próprias cinturas languidamente. Mas também a marcha negra, parada, dois olhos fitando e nada podendo dizer. Deus pou­sa numa árvore pipilando e linhas retas se dirigem inacabadas, horizontais e frias. É a impressão... Os momentos vão pingando maduros e mal tomba um ergue-se outro, de leve, o rosto pálido e pe­queno. De repente também os momentos acabam. O sem-tempo escorre pelas minhas paredes, tortuoso e cego. Aos poucos acumula-se num lago escuro e quieto e eu grito: vivi!
A noite calava as coisas lá fora, algum sapo coaxava a intervalos. Cada arbusto era um vulto imóvel e recolhido.
Longe brilhavam e tremiam pequenas luzes avermelhadas, olhos insones. Na escuridão como da água.
[...]

Miss Algrave

segunda-feira, julho 28, 2008

Ela era sujeita a julgamento. Por isso não contou nada a ninguém. Se contasse, não acreditariam porque não acreditavam na realidade. Mas ela que morava em Londres, onde os fantasmas existem nos becos escuros, sabia da verdade.Seu dia, Sexta-feira, fora igual aos outros. Só aconteceu sábado à noite. Mas na Sexta fez tudo igual como sempre. Embora a atormentasse uma lembrança horrível: quando era pequena, com uns sete anos de idade, brincava de marido e mulher com seu primo Jack, na cama grande da vovó. E ambos faziam de tudo para Ter filhinhos sem conseguir. Nunca mais vira Jack nem queria vê-lo. Se era culpada, ele também o era.Solteira, é claro, virgem, é claro. Morava sozinha numa cobertura em Soho. Nesse dia tinha feito suas compras de comida: legumes e frutas. Porque comer carne ela considerava pecado.Quando passava pelo Picadilly Circle e via as mulheres esperando homens nas esquinas, só faltava vomitar. Ainda mais por dinheiro! Era demais para se suportar. E aquela estátua de Eros, ali, indecente.Foi depois do almoço ao trabalho: era datilógrafa perfeita. Seu chefe nunca olhava para ela e tratava-a felizmentecom respeito chamando-a de Miss Algrave. Seu primeiro nome era Ruth. E descendia de irlandeses. Era ruiva, usava cabelos enrolados na nuca em coque severo. Tinha muitas sardas e pele tão clara e fina que parecia uma seda branca. Os cílios também eram ruivos. Era uma mulher bonita.Orgulhava-se muito do seu físico: cheia de corpo e alta. Mas nunca ninguém havia tocado nos seus seios.Costumava jantar num restaurante barato em Soho mesmo. Comia camarão com molho de tomate. E nunca entrara num pub: nauseava-a o cheiro do álcool, quando passava por um. Sentia-se ofendida pela humanidade.Cultivava gerâneos vermelhos que eram uma glória na primavera. Seu pai era pastor protestante e a mãe ainda morava em Dublin com o filho casado. Seu irmão era casado com uma verdadeira cadela chamada Tootzi.De vez em quando Miss Algrave escrevia uma carta de protesto para o Time. E eles publicavam. Via com muito gosto o seu nome: sincerely Ruth Algrave.Tomava banho só uma vez por semana, no Sábado. Para não ver o seu corpo nu, não tirava nem as calcinhas nem o sutiã.No dia em que aconteceu era Sábado e não tinha portanto trabalho. Acordou cedo e tomou chá de jasmim. Depois rezou. Depois saiu para tomar ar.Perto do Savoy Hotel quase foi atropelada. Se isso acontecesse e ela morresse teria sido horrível porque nada lhe aconteceria de noite.Foi ao ensaio do canto coral. Tinha voz maviosa. Sim, era uma pessoa privilegiada.Depois foi almoçar e permitiu-se comer camarão: estava tão bom que até parecia pecado.Então dirigiu-se ao Hyde Park e sentou-se na grama. Levara a Bíblia para ler. Mas- que Deus a perdoasse – o sol estava tão guerrilheiro, tão bom tão quente, que, não leu nada, ficou só sentada no chão sem coragem de se deitar. Procurou não olhar os casais que se beijavam e se acariciavam sem a menor vergonha.Depois foi para casa, regou as begônias e tomou banho. Então visitou Mrs. Cabot que tinha noventa e sete anos. Levou-lhe um pedaço de bolo com passas e tomaram chá. Miss Algrave sentia-se muito feliz, embora...Bem, embora.Às ste horas voltou para casa. Nada tinha a fazer. Então tricotou uma suéter para o inverno. De cor esplendorosa: amarela como o sol.Antes de dormir tomou mais chá de jasmim com biscoitos, escovou os dentes, mudou de roupa e meteu-se na cama. Suas cortinas de gaze ela mesma fizera e pendurara.Era maio. As cortinas se balançavam à brisa dessa noite tão singular. Singular por quê? Não sabia.Leu um pouco o jornal da manhã e fechou a luz da cabeceira. Pela janela aberta via o luar. Era noite de lua cheia.Suspirou muito porque era difícil viver só. A solidão a esmagava. Terrível não ter uma só pessoa para conversar. Era a criatura mais solitária que conhecia. Até Mrs. Cabot tinha um gato. Ruth Algrave não tinha bicho nenhum: eram bestiais demais para o seu gosto. Nem tinha televisão. Por dois motivos: faltava-lhe dinheiro e não queria ficar vendo as imoralidades que apareciam na . Na televisão de Mrs. Cabot vira um homem beijando uma mulher na boca. E isso sem falar no perigo da transmissão de micróbios. Ah, se pudesse escreveria todos os dias uma carta de protesto para o Time. Mas não adiantava protestar, ao que parecia. A falta de vergonha estava no ar. Até já vira um cachorro com uma cadela. Ficou impressionada. Mas se assim Deus queria, que então assim fosse. Mas ninguém a tocaria jamais, pensou. Ficava curtindo a solidão.Até as crianças eram imorais. Evitava-as. E lamentava muito Ter nascido da incontinência de seu pai e de sua mãe. Sentia pudor deles não terem tido pudor.Como deixava arroz cru na janela, os pombos vinham visitá-la. Às vezes entravam-lhe no quarto. Eram enviados por Deus. Tão inocentes. Arrulhando. Mas era meio imoral o arrulho deles, embora menos do que ver mulher quase nua na televisão. Ia amanhã sem falta escrever uma carta protestando contra os maus costumes daquela maldita cidade que era Londres. Chegara uma vez a ver uma fila de viciados junto de uma farmácia, esperando a vez de tomarem uma aplicação. Como é que a Rainha permitia? Mistério. Escreveria mais uma carta denunciando a própria Rainha. Escrevia bem, sem erros de gramática e batia as cartas na máquina do escritório quando tinha um instantede folga. Mr. Clairson, seu chefe, elogiava muito as cartas publicadas. Até dissera que ela poderia um dia vir a ser escritora. Ficara orgulhosa e agradecera muito.Estava assim deitada na cama com a sua solidão. O embora.Foi então que aconteceu.Sentiu que pela janela entrava uma coisa que não era um pombo. Teve medo. Falou bem alto:- Quem é você?E a resposta veio em forma de vento:- Eu sou um eu.- Quem é você? Perguntou trêmula.- Vim de Saturno para amar você.- Mas eu não estou vendo ninguém! Gritou.- O que importa é que você está me sentindo.E sentia mesmo. Teve um frisson eletrônico.- Como é que você se chama? Perguntou com medo.- Pouco importa.- Mas quero chamar seu nome!- Chame-me de Ixtlan.Eles se entendiam em sânscrito. Seu contato era frio como o de uma lagartixa, dava-lhe calafrios. Ixtlan tinha sobre a cabeça uma coroa de cobras entrelaçadas, mansas pelo terror de poder morrer. O manto que cobria o seu corpo era da mais sofrida cor roxa, era ouro mau e púrpura coagulada.Ele disse:- Tire a camisola. A lua estava enorme dentro do quarto. Ixtlan era branco e pequeno. Deitou-se ao seu lado na cama de ferro. E passou a mão pelos seus seios. Rosas negras.Ela nunca tinha sentido o que sentiu. Era como se um aleijado jogasse no ar o seu cajado.Começou a suspirar e disse para Ixtlan: - Eu te amo, meu amor! Meu grande amor! E – é, sim. Aconteceu. Ela queria que não acabasse nunca. Como era bom, meu Deus. Tinha vontade de mais , mais e mais.Ela pensava: aceitai-me! Ou então: “Eu me vos oferto.” Era o domínio do “aqui e agora”.Perguntou-lhe: quando é que você volta?Ixtlan respondeu: - Na próxima lua cheia.- Mas eu não posso esperar tanto!- É o jeito, disse ele até friamente.- Vou ficar esperando bebê? - Não.- Mas vou morrer de saudade de você! Como é que eu faço? - Use-se.Ele se levantou, beijou-a castamente na testa. E saiu pela janela.Começou a chorar baixinho. Parecia um triste violino sem arco. A prova de que tudo acontecera mesmo era o lençol manchado de sangue. Guardou-o sem lavá-lo e poderia mostrá-lo a quem não acreditasse nela.Viu a madrugada nascer toda cor-de-rosa. No fog os primeiros passarinhos começaram a pipilar com do çura, ainda sem alvoroço.Deus iluminava seu corpo.Mas, como uma baronesa Von Blich, nostalgicamente recostada em seu dossel de cetim de seu leito, fingiu tocar a campainha para chamar o mordomo que lhe traria café quente, forte, forte.Ela o amava e ia esperar ardentemente pela nova lua cheia. Não quis tomar banho para não tirar de si o gosto de Ixtlan. Com ele não fora pecado e sim uma delícia. Não queria mais escrever nenhuma carta de protesto: não protestava mais.E não foi à igreja. Era mulher realizada. Tinha marido. Então no Domingo, na hora do almoço, comeu filet mignon com purê de batatas. A carne sangrenta era ótima. E tomou vinho tinto italiano. Era mesmo privilegiada. Fora escolhida por um ser de Saturno.Tinha lhe perguntado por que a havia escolhido. Ele dissera que era por ela ser ruiva e virgem. Sentia-se bestial. Não tinha mais nojo dos bichos. Eles que se amassem, era a melhor coisa do mundo. E ela esperaria por Ixtlan. Ele voltaria: eu sei, eu sei, eu sei, pensava ela. Também não tinha mais repulsa pelos casais do Hyde Park. Sabia como eles se sentiam.Como era bom viver. Como era bom comer carne sangrenta. Como era bom tomar vinho italiano bem adstringente, meio amargando e restringindo a língua.Era agora imprópria para menores de dezoito anos. E se deleitava, babava-se de gosto nisso.Como era Domingo, foi ao canto coral. Cantou melhor do que nunca e não se surpreendeu quando a escolheram para solista. Cantou a sua aleluia. Assim: Aleluia! Aleluia! Aleluia!Depois foi ao Hyde Park e deitou-se na grama quente, abriu um pouco as pernas para o sol entrar. Ser mulher era uma coisa soberba. Só quem era mulher sabia. Mas pensou: será que vou Ter que pagar um preço muito caro pela minha felicidade? Não se incomodava. Pagaria tudo que tivesse de pagar. Sempre pagara e sempre fora infeliz. E agora acabara-se a infelicidade. Ixtlan! Volte logo! Não posso mais esperar! Venha! Venha! Venha! Pensou: será que ele gostara de mim porque eu sou um pouco estrábica? Na próxima lua cheia perguntaria a ele. Se fosse por isso, não tinha dúvida: forçaria a mão e se tornaria completamente vesga. Ixtlan, tudo o que você quiser que eu faça, eu faço. Só que morria de saudade. Volte, my love.Sim. Mas fez uma coisa que era traição. Ixtlan a compreenderia e perdoaria. Afinal de contas, a pessoa tinha que dar um jeito, não tinha? Foi o seguinte: não agüentando mais, encaminhou-se para o Picadilly Circle e achegou-se a um homem cabeludo. Levou-o ao seu quarto. Disse-lhe que não precisava pagar. Mas ele fez questão e antes de ir embora deixou na mesa-de-cabeceira uma libra inteira! Bem que estava precisando de dinheiro. Ficou furiosa, porém, quando ele não quis acreditar na sua história. Mostrou-lhe, quase até o seu nariz, o lençol manchado de sangue. Ele riu-se dela.Na Segunda-feira de manhã resolveu-se: não ia mais trabalhar como datilógrafa tinha outros dons. Mr. Clairson que se danasse. Ia era ficar mesmo nas ruas e levar homens paro o quarto. Como era boa de cama , pagar-lhe-iam muito bem. Poderia beber vinho italiano todos os dias. Tinha vontade de comprara um vestido bem vermelho com o dinheiro que o cabeludo lhe deixara. Soltara os cabelos bastos que eram uma beleza de ruivos. Ela parecia um uivo.Aprendera que valia muito. Se Mr. Clairson, o sonso, quisesse que ela trabalhasse para ele, teria que ser de outro bom modo. Antes compraria o vestido vermelho decotado e depois iria ao escritório chegando de propósito, pela primeira vez na vida, bem atrasada. E falaria assim com o chefe:- Chega de datilografia! Você não me venha com uma de sonso! Quer saber de uma coisa? Deite-se comigo na cama, seu desgraçado! E tem mais: me pague um salário alto por mês, seu sovina!Tinha certeza que ele aceitaria. Era casado com uma mulher pálida e insignificante, a Joan, e tinha uma filha anêmica, a Lucy. Vai é se deliciar comigo, o filho de uma cadela.E quando chegasse a lua cheia- tomaria um banho purificador de todos os homens para estar pronta para o festim com Ixtlan.

Preciosidade (Para Mafalda)

sexta-feira, julho 25, 2008

De manhã cedo era sempre a mesma coisa renovada: acor­dar. O que era vagaroso, desdobrado, vasto. Vastamente ela abria os olhos.
Tinha quinze anos e não era bonita. Mas por dentro da magreza, a vastidão quase majestosa em que se movia como dentro de uma meditação. E dentro da nebulosi­dade algo precioso. Que não se espreguiçava, não se com­prometia, não se contaminava. Que era intenso como uma jóia. Ela.
Acordava antes de todos, pois para ir à escola teria que pegar um ônibus e um bonde, o que lhe tomaria uma hora. O que lhe daria uma hora. De devaneio agudo como um crime. O vento da manhã violentando a janela e o rosto até que os lábios ficavam duros, gelados. Então ela sorria. Como se sorrir fosse em si um objetivo. Tudo isso aconteceria se tivesse a sorte de "ninguém olhar para ela".
Quando de madrugada se levantava — passado o ins­tante de vastidão em que se desenrolava toda — vestia-se correndo, mentia para si mesma que não havia tempo de tomar banho, e a família adormecida jamais adivinhara quão poucos ela tomava. Sob a luz acesa da sala de jantar, engolia o café que a empregada, se coçando no escuro da cozinha,requentara. Mal tocava no pão que a manteiga não amolecia. Com a boca fresca de jejum, os livros embaixo do braço, abria enfim a porta, transpunha a mornidão insossa da casa, galgando-se para a gélida fruição da manhã. Então já não se apressava mais.
Tinha que atravessar a longa rua deserta até alcançar a avenida, do fim da qual um ônibus emergiria cambaleando dentro da névoa, com as luzes da noite ainda acesas no farol. Ao vento de junho, o ato misterioso, autoritário e perfeito era erguer o braço — e já de longe o ônibus trêmulo come­çava a se deformar obedecendo à arrogância de seu corpo, representante de um poder supremo, de longe o ônibus começava a tornar-se incerto e vagaroso, vagaroso e avan­çando, cada vez mais concreto — até estacar no seu rosto em fumaça e calor, em calor e fumaça. Então subia, séria como uma missionária por causa dos operários no ônibus que "poderiam lhe dizer alguma coisa". Aqueles homens que não eram mais rapazes. Mas também de rapazes tinha medo, medo também de meninos. Medo que lhe "disses­sem alguma coisa", que a olhassem muito. Na gravidade da boca fechada havia a grande súplica: respeitassem-na. Mais que isso. Como se tivesse prestado voto, era obrigada a ser venerada, e, enquanto por dentro o coração batia de medo, também ela se venerava, ela, a depositária de um ritmo. Se a olhavam, ficava rígida e dolorosa. O que a poupava é que os homens não a viam. Embora alguma coisa nela, à medi­da que dezesseis anos se aproximava em fumaça e calor, alguma coisa estivesse intensamente surpreendida — e isso surpreendesse alguns homens. Como se alguém lhes tivesse tocado no ombro. Uma sombra talvez. No chão a enorme sombra de moça sem homem, cristalizável elemento incerto que fazia parte da monótona geometria das grandes cerimônias públicas. Como se lhes tivessem tocado no om­bro. Eles olhavam e não a viam. Ela fazia mais sombra do que existia.
No ônibus, os operários eram silenciosos com a mar­mita na mão, o sono ainda no rosto. Ela sentia vergonha de não confiar neles, que eram cansados. Mas até que os esquecesse, o desconforto. É que eles "sabiam". E como tam­bém ela sabia, então o desconforto. Todos sabiam o mes­mo. Também seu pai sabia. Um velho pedindo esmola sabia. A riqueza distribuída, e o silêncio.
Depois, com andar de soldado, atravessava — incólu­me — o Largo da Lapa, onde era dia. A essa altura a batalha estava quase ganha. Escolhia no bonde um banco se possí­vel vazio ou, se tivesse sorte, sentava-se ao lado de alguma asseguradora mulher com uma trouxa de roupa no colo, por exemplo — e era a primeira trégua. Ainda teria de enfrentar na escola o longo corredor onde os colegas esta­riam de pé conversando, e onde os tacos de seus sapatos faziam um ruído que as pernas tensas não podiam conter como se ela quisesse inutilmente fazer parar de bater um coração, sapatos com dança própria. Fazia-se um vago silêncio entre os rapazes que talvez sentissem, sob o seu disfarce, que ela era uma das devotas. Passava entre as alas dos colegas crescendo, e eles não sabiam o que pensar nem como comentá-la. Era feio o ruído de seus sapatos. Rom­pia o próprio segredo com tacos de madeira. Se o corredor demorasse um pouco mais, ela como que esqueceria seu destino e correria com as mãos tapando os ouvidos. Só tinha sapatos duráveis. Como se fossem ainda os mesmos que em solenidade lhe haviam calçado quando nascera. Atravessava o corredor interminável como a um silêncio de trincheira, e no seu rosto havia algo tão feroz — e soberbo também,por causa de sua sombra — que ninguém lhe dizia nada. Proibitiva, ela os impedia de pensar.
Até que, enfim, a classe de aula. Onde de repente tudo se tornava sem importância e mais rápido e leve, onde seu rosto tinha algumas sardas, os cabelos caíam nos olhos, e onde ela era tratada como um rapaz. Onde era inteligente. A astuciosa profissão. Parecia ter estudado em casa. Sua curiosidade informava-lhe mais que respostas. Adivinhava, sentindo na boca o gosto cítrico das dores heróicas, adivi­nhava a repulsão fascinada que sua cabeça pensante criava nos colegas, que, de novo, não sabiam como comentá-la. Cada vez mais a grande fingida se tornava inteligente. Aprendera a pensar. O sacrifício necessário: assim "ninguém tinha coragem".
Às vezes, enquanto o professor falava, ela, intensa, nebulosa, fazia riscos simétricos no caderno. Se um risco, que tinha que ser ao mesmo tempo forte e delicado, saía fora do círculo imaginário em que deveria caber, tudo desa­baria: ela se concentrava ausente, guiada pela avidez do ideal. Às vezes, em vez de riscos, desenhava estrelas, estrelas, estre­las, estrelas, tantas e tão altas que desse trabalho anuncia-dor saía exausta, erguendo uma cabeça mal acordada.
A volta para casa era tão cheia de fome que a impa­ciência e o ódio roíam seu coração. Na volta parecia outra cidade: no Largo da Lapa centenas de pessoas reverberadas pela fome pareciam ter esquecido e, se lhes lembrassem, arreganhariam dentes. O sol delineava cada homem com carvão preto. Sua própria sombra era uma estaca negra. Nesta hora em que o cuidado tinha que ser maior, ela era protegida pela espécie de feiúra que a fome acentuava, seus traços escurecidos pela adrenalina que escurecia a carne dos animais de caça. Na casa vazia, toda a família na repartição,gritava com a empregada que nem sequer lhe respondia. Comia como um centauro. A cara perto do prato, os cabe­los quase na comida.
— Magrinha, mas como devora, dizia a empregada esperta.
— Pro diabo, gritava-lhe sombria.
Na casa vazia, sozinha com a empregada, já não anda­va como um soldado, já não precisava tomar cuidado. Mas sentia falta da batalha das ruas. Melancolia da liberdade, com o horizonte ainda tão longe. Dera-se ao horizonte. Mas a nostalgia do presente. O aprendizado da paciência, o jura­mento da espera. Do qual talvez não soubesse jamais se livrar. A tarde transformando-se em interminável e, até todos voltarem para o jantar e ela poder se tornar com alívio uma filha, era o calor, o livro aberto e depois fechado, uma intui­ção, o calor: sentava-se com a cabeça entre as mãos, deses­perada. Quando tinha dez anos, relembrou, um menino que a amava jogara-lhe um rato morto. Porcaria! berrara branca com a ofensa. Fora uma experiência. Jamais contara a ninguém. Com a cabeça entre as mãos, sentada. Dizia quinze vezes: sou vigorosa, sou vigorosa, sou vigorosa — depois percebia que apenas prestara atenção à contagem. Suprindo com a quantidade, disse mais uma vez: sou vigo­rosa, dezesseis. E já não estava mais à mercê de ninguém. Desesperada porque, vigorosa, livre, não estava mais à mercê. Perdera a fé. Foi conversar com a empregada, antiga sacer­dotisa. Elas se reconheciam. As duas descalças, de pé na cozinha, a fumaça do fogão. Perdera a fé, mas, à beira da graça, procurava na empregada apenas o que esta já perdera, não o que ganhara. Fazia-se pois distraída e, conversando, evitava a conversa. "Ela imagina que na minha idade devo saber mais do que sei e é capaz de me ensinar alguma coisa",pensou, a cabeça entre as mãos, defendendo a ignorância como a um corpo. Faltavam-lhe elementos, mas não os queria de quem já os esquecera. A grande espera fazia parte. Dentro da vastidão, maquinando.
Tudo isso, sim. Longo, cansado, a exasperação. Mas na madrugada seguinte, como uma avestruz lenta se abre, ela acordava. Acordou no mesmo mistério intacto, abrindo os olhos ela era a princesa do mistério intacto.
Como se a fábrica já tivesse apitado, vestiu-se correndo, bebeu de um sorvo o café. Abriu a porta de casa.
E então já não se apressou mais. A grande imolação das ruas. Sonsa, atenta, mulher de apache. Parte do rude ritmo de um ritual.
Era uma manhã ainda mais fria e escura que as outras, ela estremeceu no suéter. A branca nebulosidade deixava o fim da rua invisível. Tudo estava algodoado, não se ouviu sequer o ruído de algum ônibus que passasse pela avenida. Foi andando para o imprevisível da rua. As casas dormiam nas portas fechadas. Os jardins endurecidos de frio. No ar escuro, mais que no céu, no meio da rua uma estrela. Uma grande estrela de gelo que não voltara ainda, incerta no ar, úmida, informe. Surpreendida no seu atraso, arredondava-se na hesitação. Ela olhou a estrela próxima. Caminhava sozinha na cidade bombardeada.
Não, ela não estava sozinha. Com os olhos franzi­dos pela incredulidade no fim longínquo de sua rua, de dentro do vapor, viu dois homens. Dois rapazes vindo. Olhou ao redor como se pudesse ter errado de rua ou de ci­dade. Mas errara os minutos: saíra de casa antes que a estre­la e dois homens tivessem tempo de sumir. Seu coração se espantou.
O primeiro impulso, diante de seu erro, foi o de refazer para trás os passos dados e entrar em casa até que eles passassem: "eles vão olhar para mim, eu sei, não há mais ninguém para eles olharem e eles vão me olhar muito!" Mas como voltar e fugir, se nascera para a dificuldade. Se toda a sua lenta preparação tinha o destino ignorado a que ela, por culto, tinha que aderir. Como recuar, e depois nunca mais esquecer a vergonha de ter esperado em miséria atrás de uma porta?
E mesmo talvez não houvesse perigo. Eles não teriam coragem de dizer nada porque ela passaria com o andar duro, de boca fechada, no seu ritmo espanhol.
De pernas heróicas, continuou a andar. Cada vez que se aproximava, eles que também se aproximavam — então todos se aproximavam, a rua ficou cada vez um pouco mais curta. Os sapatos dos dois rapazes misturavam-se ao ruído de seus próprios sapatos, era ruim ouvir. Era insistente ouvir. Os sapatos eram ocos ou a calçada era oca. A pedra do chão avisava. Tudo era eco e ela ouvia, sem poder impedir, o silêncio do cerco comunicando-se pelas ruas do bairro, e via, sem poder impedir, que as portas mais fechadas haviam ficado. Mesmo a estrela retirara-se. Na nova pali­dez da escuridão, a rua entregue aos três. Ela andava, ouvia os homens, já que não poderia olhá-los e já que precisava sabê-los. Ela os ouvia e surpreendia-se com a própria cora­gem em continuar. Mas não era coragem. Era o dom. E a grande vocação para um destino. Ela avançava, sofrendo em obedecer. Se conseguisse pensar em outra coisa não ouviria os sapatos. Nem o que eles pudessem dizer. Nem o silêncio com que cruzariam.
Com brusca rigidez olhou-os. Quando menos esperava, traindo o voto de segredo, viu-os rápida. Eles sorriam? Não, estavam sérios.Não deveria ter visto. Porque, vendo, ela por um ins­tante arriscava-se a tornar-se individual, e também eles. Era do que parecia ter sido avisada: enquanto executasse um mundo clássico, enquanto fosse impessoal, seria filha dos deuses, e assistida pelo que tem que ser feito. Mas, tendo visto o que olhos, ao verem, diminuem, arriscara-se a ser um ela-mesma que a tradição não amparava. Por um instan­te hesitou toda, perdida de um rumo. Mas era tarde demais para recuar. Só não seria tarde demais se corresse. Mas correr seria como errar todos os passos, e perder o ritmo que ainda a sustentava, o ritmo que era o seu único talismã, o que lhe fora entregue à orla do mundo onde era para ser sozinha — à orla do mundo onde se tinham apagado todas as lem­branças, e como incompreensível lembrete restara o cego talismã, ritmo que era de seu destino copiar, executando-o para a consumação do mundo. Não a própria. Se ela corresse, a ordem se alteraria. E nunca lhe seria perdoado o pior: a pressa. E mesmo quando se foge correm atrás, são coisas que se sabem.
Rígida, catequista, sem alterar por um segundo a len­tidão com que avançava, ela avançava. "Eles vão olhar para mim, eu sei!" Mas tentava, por instinto de uma vida anterior, não lhes transmitir susto. Adivinhava o que o medo desen­cadeia. Ia ser rápido, sem dor. Só por uma fração de segundo se cruzariam, rápido, instantâneo, por causa da vantagem a seu favor dela estar em movimento e deles virem em mo­vimento contrário, o que faria com que o instante se redu­zisse ao essencial necessário — à queda do primeiro dos sete mistérios que tão secretos eram que deles ficara apenas uma sabedoria: o número sete. Fazei com que eles não digam nada, fazei com que eles só pensem, pensar eu deixo. Ia ser rápido, e um segundo depois da transposição ela diria maravilhada, galgando-se para outras e outras ruas: quase não doeu. Mas o que se seguiu não teve explicação.
O que se seguiu foram quatro mãos difíceis, foram quatro mãos que não sabiam o que queriam, quatro mãos erradas de quem não tinha a vocação, quatro mãos que a tocaram tão inesperadamente que ela fez a coisa mais certa que poderia ter feito no mundo dos movimentos: ficou para­lisada. Eles, cujo papel predeterminado era apenas o de passar junto do escuro de seu medo, e então o primeiro dos sete mistérios cairia; eles que representariam apenas o hori­zonte de um só passo aproximado, eles não compreenderam a função que tinham e, com a individualidade dos que têm medo, haviam atacado. Foi menos de uma fração de segundo na rua tranqüila. Numa fração de segundo a tocaram como se a eles coubessem todos os sete mistérios. Que ela conser­vou todos, e mais larva se tornou, e mais sete anos de atraso.
Ela não os olhou porque sua cara ficou voltada com serenidade para o nada.
Mas pela pressa com que a magoaram soube que eles tinham mais medo do que ela. Tão assustados que já não estavam mais ali. Corriam. "Tinham medo que ela gritasse e as portas das casas uma por uma se abrissem", raciocinou, eles não sabiam que não se grita.
Ficou de pé, ouvindo com tranqüila loucura os sapa­tos deles em fuga. A calçada era oca ou os sapatos eram ocos ou ela própria era oca. No oco dos sapatos deles ouvia atenta o medo dos dois. O som batia nítido nas lajes como se batessem à porta sem parar e ela esperasse que desistis­sem. Tão nítido na nudez da pedra que o sapateado não parecia distanciar-se: era ali a seus pés, como um sapateado de vitória. De pé, ela não tinha por onde se sustentar senão pelos ouvidos.A sonoridade não esmorecia, o afastamento era-lhe transmitido por um apressado cada vez mais preciso de tacos. Os tacos não ecoavam mais na pedra, ecoavam no ar como castanholas cada vez mais delicadas. Depois perce­beu que há muito não ouvia nenhum som.
E, trazidos de volta pela brisa, o silêncio e uma rua vazia.
Até esse instante mantivera-se quieta, de pé no meio da calçada. Então, como se houvesse várias etapas da mes­ma imobilidade, ficou parada. Daí a pouco suspirou. E em nova etapa, manteve-se parada. Depois mexeu a cabeça, e então ficou mais profundamente parada.
Depois recuou devagar até um muro, corcunda, bem devagar, como se tivesse um braço quebrado, até que se encostou toda no muro, onde ficou inscrita. E então man­teve-se parada. Não se mover é o que importa, pensou de longe, não se mover. Depois de um tempo, provavel­mente ter-se-ia dito assim: agora mova um pouco as pernas mas bem devagar. Porque, bem devagar, moveu as pernas. Depois do que, suspirou e ficou quieta olhando. Ainda es­tava escuro.
Depois amanheceu.
Devagar reuniu os livros espalhados pelo chão. Mais adiante estava o caderno aberto. Quando se abaixou para recolhê-lo, viu a letra redonda e graúda que até esta manhã fora sua.
Então saiu. Sem saber com que enchera o tempo, senão com passos e passos, chegou à escola com mais de duas horas de atraso. Como não tinha pensado em nada, não sabia que o tempo decorrera. Pela presença do professor de Latim constatou com uma surpresa polida que na classe já haviam começado a terceira hora.— Que foi que te aconteceu? sussurrou a menina da carteira ao lado.
— Por quê?
— Você está branca. Está sentindo alguma coisa?
— Não, disse tão claro que vários colegas olharam-na. Levantou-se e disse bem alto:
— Dá licença!
Foi para o lavatório. Onde, diante do grande silêncio dos ladrilhos, gritou aguda, supersônica: Estou sozinha no mundo! Nunca ninguém vai me ajudar, nunca ninguém vai me amar! Estou sozinha no mundo!
Estava ali perdendo também a terceira aula, no longo banco do lavatório, em frente a várias pias. "Não faz mal, depois copio os pontos, peço emprestado os cadernos para copiar em casa — estou sozinha no mundo!", interrom­peu-se batendo várias vezes a mão fechada no banco. O ruído dos quatro sapatos de repente começou como uma chuva miúda e rápida. Ruído cego, nada se refletiu nos ladrilhos brilhantes. Só a nitidez de cada sapato que não se emaranhou nenhuma vez com outro sapato. Como nozes caindo. Era só esperar como se espera que parem de bater à porta. Então pararam.
Quando foi molhar os cabelos diante do espelho, ela era tão feia.
Ela possuía tão pouco, e eles haviam tocado.
Ela era tão feia e preciosa.
Estava pálida, os traços afinados. As mãos, umedecendo os cabelos, sujas de tinta ainda do dia anterior. "Preciso cuidar mais de mim", pensou. Não sabia como. A verdade é que cada vez sabia menos como. A expressão do nariz era a de um focinho apontando na cerca.
Voltou ao banco e ficou quieta, com um focinho. "Uma pessoa não é nada." "Não", retrucou-se em mole protesto, "não diga isso", pensou com bondade e melancolia. "Uma pessoa é alguma coisa", disse por gentileza.
Mas no jantar a vida tomou um senso imediato e his­térico:
— Preciso de sapatos novos! os meus fazem muito ba­rulho, uma mulher não pode andar com salto de madeira, chama muita atenção! Ninguém me dá nada! Ninguém me dá nada! — e estava tão frenética e estertorada que nin­guém teve coragem de lhe dizer que não os ganharia. Só disseram:
— Você não é uma mulher e todo salto é de madeira. Até que, assim como uma pessoa engorda, ela deixou,
sem saber por que processo, de ser preciosa. Há uma obs­cura lei que faz com que se proteja o ovo até que nasça o pinto, pássaro de fogo.
E ela ganhou os sapatos novos.

O Abrigo no Homem (trecho)

sexta-feira, julho 25, 2008

[...]
Como terminar a história de Joana? Se pudesse co­lher e acrescentar o olhar que surpreendera em Lídia: ninguém te amará... Sim, terminar assim: apesar de ser das criaturas soltas e sozinhas no mun­do, ninguém jamais pensou em dar alguma coisa a Joana. Não amor, entregavam-lhe sempre outro sentimento qualquer. Viveu sua vida, ávida como uma virgem — isso para o túmulo. Fez-se muitas perguntas, mas nunca pôde se responder: parava para sentir. Como nasceu um triângulo? antes em idéia? ou esta veio depois de executada a forma? um triângulo nasceria fatalmente? as coisas eram ri­cas . — Desejaria deter seu tempo na pergunta. Mas o amor a invadia. Triângulo, círculo, linhas re­tas... harmônico e misterioso como um arpejo. Onde se guarda a música enquanto não soa? — in­dagava-se. E rendida respondia: que façam harpa de meus nervos quando eu morrer.
O fim da lucidez de Joana misturou-se ao navio torto sobre as ondas, movendo-se. Bastava menear a cabeça para que as ondas a acompanhassem. Mas ela tivera coisa, ah isso tivera. Um marido, seios, um amante, uma casa, livros, cabelos cortados, uma tia, um professor. Titia, ouça-me, eu conheci Joa­na, de quem lhe falo agora. Era uma mulher fraca em relação às coisas. Tudo lhe parecia às vezes preciso demais, impossível de ser tocado. E, às ve­zes, o que usavam como ar de respirar, era peso e morte para ela. Veja se compreende a minha he­roína, titia, escute. Ela é vaga e audaciosa. Ela não ama, ela não é amada. Você terminaria notando-o como Lídia, outra mulher —uma jovem mulher cheia do próprio destino —, observou-o. No entanto o que há dentro de Joana é alguma coisa mais forte que o amor que se dá e o que há dentro dela exige mais do que o amor que se recebe. Compre­ende, titia? Eu não a chamaria de herói como eu mesma prometera a papai. Pois nela havia um medo enorme. Um medo anterior a qualquer julgamento e compreensão. — Me ocorreu agora isso: quem sabe, talvez a crença na sobrevivência futura venha de se notar que a vida sempre nos deixa intocados. — Compreende, titia? — esqueça a interrupção da vida futura — compreende? Vejo teus olhos aber­tos, me olhando com medo, com desconfiança, mas querendo mesmo assim, com tua feminilidade de velha, agora morta, é verdade, agora morta, gostar de mim, passando por cima de minha aspereza. Po­bre!, a maior revolta que senti em ti, além das que eu provocava, pode ser resumida naquele frase quase diária que ainda ouço, misturada ao teu cheiro que não posso esquecer: "oh, não poder sair à rua na roupa em que se está!" Que mais te contar? Tenho os cabelos cortados, castanho, às vezes uso franja. Vou morrer um dia. Nasci também. Havia o quarto com os dois. Ele era bonito. O quarto rodava um pou­co. Tornava-se transparente e morno um véu um véu se aproximando vindo. Eles três formavam um ca­sal e a quem contar isso? Poderia adormecer por­que o homem nunca dormia e vigiaria como a chuva caindo. Otávio também era bonito, olhos. Esse era uma criança uma ameba flores brancura mornidão como o sono por enquanto é tempo por enquanto é vida mesmo que mais tarde... Tudo como a terra uma criança Lídia uma criança Otávio terra de profundis...

O Jantar

terça-feira, julho 22, 2008

Ele entrou tarde no restaurante. Certamente ocupara-se até agora em grandes negócios. Poderia ter uns sessenta anos, era alto, corpulento, de cabelos brancos, sobrancelhas espes­sas e mãos potentes. Num dedo o anel de sua força. Sen­tou-se amplo e sólido.
Perdi-o de vista e enquanto comia observei de novo a mulher magra de chapéu. Ela ria com a boca cheia e rebrilhava os olhos escuros.
No momento em que eu levava o garfo à boca, olhei-o. Ei-lo de olhos fechados mastigando pão com vigor e meca­nismo, os dois punhos cerrados sobre a mesa. Continuei comendo e olhando. O garçom dispunha os pratos sobre a toalha. Mas o velho mantinha os olhos fechados. A um gesto mais vivo do criado ele os abriu com tal brusquidão que este mesmo movimento se comunicou às grandes mãos e um garfo caiu. O garçom sussurrou palavras amáveis abaixando-se para apanhá-lo; ele não respondia. Porque agora desperto, virava subitamente a carne de um lado e de outro, examinava-a com veemência, a ponta da língua aparecendo — apalpava o bife com as costas do garfo, quase o cheirava, mexendo a boca de antemão. E começava a cortá-lo com um movimento inútil de vigor de todo o corpo. Em breve levava um pedaço a certa altura do rosto e, como se tivesse que apanhá-lo em vôo, abocanhou-o num arrebatamento de cabeça. Olhei para o meu prato. Quando fitei-o de novo, ele estava em plena glória do jantar, mastigando de boca aberta, passando a língua pelos dentes, com o olhar fixo na luz do teto. Eu já ia cortar a carne de novo, quando o vi parar inteiramente.
E exatamente como se não suportasse mais — o quê? — pega rápido no guardanapo e comprime as órbitas dos olhos com as mãos cabeludas. Parei em guarda. Seu corpo respirava com dificuldade, crescia. Tira afinal o guardana­po da vista e olha entorpecido de muito longe. Respira abrindo e fechando desmesuradamente as pálpebras, limpa os olhos com cuidado e mastiga devagar o resto de comida ainda na boca.
Daqui a um segundo, porém, está refeito e duro, apa­nha uma garfada de salada com o corpo todo e come incli­nado, o queixo ativo, o azeite umedecendo os lábios. Inter­rompe-se um instante, enxuga de novo os olhos, balança brevemente a cabeça — e nova garfada de alface com carne é apanhada no ar. Diz ao garçom que passa:
— Não é este o vinho que mandei trazer.
A voz que esperava dele: voz sem réplicas possíveis pela qual eu via que jamais se poderia fazer alguma coisa por ele. Senão obedecê-lo.
O garçom se afastou cortês com a garrafa na mão.
Mas eis que o velho se imobiliza de novo como se tives­se o peito contraído e barrado. Sua violenta potência sacode-se presa. Ele espera. Até que a fome parece assaltá-lo e ele recomeça a mastigar com apetite, de sobrancelhas fran­zidas. Eu é que já comia devagar, um pouco nauseado sem saber por quê, participando também não sabia de quê. De repente ei-lo a estremecer todo, levando o guardanapo aos olhos e apertando-os numa brutalidade que me enleva... Abandono com certa decisão o garfo no prato, eu próprio com um aperto insuportável na garganta, furioso, quebrado em submissão. Mas o velho demora pouco com o guarda­napo nos olhos. Desta vez, quando o tira sem pressa, as pupilas estão extremamente doces e cansadas, e antes dele enxugar-se — eu vi. Vi a lágrima.
Inclino-me sobre a carne, perdido. Quando finalmen­te consigo encará-lo do fundo de meu rosto pálido, vejo que também ele se inclinou com os cotovelos apoiados sobre a mesa, a cabeça entre as mãos. E exatamente ele não suportava mais. As sobrancelhas grossas estavam jun­tas. A comida devia ter parado pouco abaixo da garganta sob a dureza da emoção, pois quando ele pôde continuar fez um gesto terrível de esforço para engolir e passou o guar­danapo pela testa. Eu não podia mais, a carne no meu prato era crua, eu é que não podia mais. Porém ele — ele comia.
O garçom trouxe a garrafa dentro de uma vasilha de gelo. Eu anotava tudo, já sem discriminar: a garrafa era outra, o criado de casaca, a luz aureolava a cabeça robusta de Plutão que se movia agora com curiosidade, guloso e atento. Por um instante o garçom cobre minha visão do velho e vejo apenas as asas negras duma casaca: sobrevoando a mesa, vertia vinho vermelho na taça e aguardava de olhos quentes — porque lá estava seguramente um senhor de boas gorjetas, um desses velhos que ainda estão no centro do mundo e da força. O velho engrandecido tomou um gole com segurança, largou a taça e consultou com amargura o sabor na boca. Batia um lábio no outro, estalava a língua com desgosto como se o que era bom fosse intolerável. Eu esperava, o garçom esperava, ambos nos inclinávamos suspensos. Afinal, ele fez uma careta de aprovação. O cria­do curvou a cabeça luzente com sujeição ao agradecimento, saiu inclinado, e eu respirava com alívio.
Ele agora misturava à carne os goles de vinho na grande boca e os dentes postiços mastigavam pesados enquanto eu o espreitava em vão. Nada mais acontecia. O restaurante parecia irradiar-se com dupla força sob o tilintar dos vidros e talheres; na dura coroa brilhante da sala os murmúrios cresciam e se apaziguavam em vaga doce, a mulher do cha­péu grande sorria de olhos entrefechados, tão magra e bela, o garçom derramava com lentidão o vinho no copo. Mas eis que ele faz um gesto.
Com a mão pesada e cabeluda, onde na palma as linhas eram cravadas com tal fatalidade, faz um gesto de pensa­mento. Diz com a mímica o mais que pode, e eu, eu não compreendo. E como se não suportasse mais — larga o garfo no prato. Desta vez foste bem agarrado, velho. Fica respirando, acabado, ruidoso. Pega então no copo de vinho e bebe de olhos fechados, em rumorosa ressurreição. Meus olhos ardem e a claridade é alta, persistente. Estou tomado pelo êxtase arfante da náusea. Tudo me parece grande e peri­goso. A mulher magra cada vez mais bela estremece séria entre as luzes.
Ele terminou. Sua cara se esvazia de expressão. Fecha os olhos, distende os maxilares. Procuro aproveitar este mo­mento, em que ele não possui mais o próprio rosto, para ver afinal. Mas é inútil. A grande aparência que vejo é des­conhecida, majestosa, cruel e cega. O que eu quero olhar diretamente, pela força extraordinária do ancião, não existe neste instante. Ele não quer.
Vem a sobremesa, um creme derretido, e eu me surpreendo pela decadência da escolha. Ele come devagar, tira uma colherada e espia o líquido pastoso escorrer. Ingere tudo, porém, faz uma careta e, crescido, alimentado, afasta o prato. Então, já sem fome, o grande cavalo apóia a cabe­ça na mão. O primeiro sinal mais claro aparece. O velho comedor de crianças pensa nas suas profundezas. Com pali­dez vejo-o levar o guardanapo à boca. Imagino ouvir um soluço. Ambos permanecemos em silêncio no centro do salão. Talvez ele tivesse comido depressa demais. Porque, apesar de tudo, não perdeste a fome, hein!, instigava-o eu com ironia, cólera e exaustão. Mas ele se desmoronava a olhos vistos. Os traços agora caídos e dementes, ele balan­çava a cabeça de um lado para outro, de um lado para outro sem se conter mais, com a boca apertada, os olhos cerrados, embalando-se — o patriarca estava chorando por dentro. A ira me asfixiava. Vi-o botar os óculos e ficar mais velho muitos anos. Enquanto contava o troco, batia os dentes projetando o queixo para a frente, entregando-se um ins­tante à doçura da velhice. Eu mesmo, tão atento estivera a ele, que não o vira tirar o dinheiro para pagar, nem exami­nar a conta, e não notara a volta do garçom com o troco.
Afinal tirou os óculos, bateu os dentes, enxugou os olhos fazendo caretas inúteis e penosas. Passou a mão qua­drada pelos cabelos brancos, alisando-os com poder. Levan­tou-se segurando o bordo da mesa com as mãos vigorosas. E eis que, depois de liberto de um apoio, ele parece mais fraco, embora ainda enorme e ainda capaz de apunhalar qualquer um de nós. Sem que eu possa fazer nada, põe o chapéu acariciando a gravata ao espelho. Atravessa o aspecto luminoso do salão, desaparece.
Mas eu sou um homem ainda.
Quando me traíram ou assassinaram, quando alguém foi embora para sempre, ou perdi o que de melhor me restava, ou quando soube que vou morrer — eu não como. Não sou ainda esta potência, esta construção, esta ruína. Empurro o prato, rejeito a carne e seu sangue.

Fim da Construção: O Viaduto (trecho)

segunda-feira, julho 21, 2008

Nos últimos dias de vida Mateus Correia parecera acanhado diante da gravidade do que lhe sucedia e mesmo vexado como se não merecesse tanto. Quanto mais se aproximava certa hora, mais sorria em modéstia para a esposa, numa infelicidade que até então não tivera cer­tamente oportunidade de manifestar-se. Embora o mi­nuto antes de morrer pudesse, pela urgência, ter durado tanto que lhe houvesse dado tempo de ter sido absolu­tamente feliz, como um cristal.
A cara parecia orgulhosa. Que faria alma tão inex­periente sem a solução que fora o corpo. Lucrécia chorava espantada.
E agora sozinha, ficava de noite escutando o silêncio da rua do Mercado.
Alguma coisa continuava a trabalhar sem barulho, ela na proa do navio — embaixo as máquinas funcio­nando quase sem ruído. Por um momento revia Mateus. E em bofetada, talvez ele nem tivesse tido quadris largos! fora apenas pálido, de bigodes.
Morrer do coração viera explicar aquela grossa calma e o escolher tantos pratos: bem, vou ver uma estrelinha.
[...]

O Homem (trecho)

segunda-feira, julho 21, 2008

Entre um instante e outro, entre o passado e o futuro, a vaguidão branca do intervalo. Vazio como a distância de um minuto a outro no círculo do re­lógio . O fundo dos acontecimentos erguendo-se cala­do e morto, um pouco da eternidade.
Apenas um segundo quieto talvez separando um trecho da vida ao seguinte. Nem um segundo, não pôde contá-lo em tempo, porém longo como uma linha reta infinita. Profundo, vindo de longe, — um pássaro negro, um ponto crescendo do hori­zonte, aproximando-se da consciência como uma bola arremessada do fim para o princípio. E explo­dindo diante dos olhos perplexos em essência de si­lêncio. Deixando depois de si o intervalo perfeito como um único som vibrando no ar. Renascer de­pois, guardar a memória estranha do intervalo, sem saber como misturá-lo à vida. Carregar para sem­pre o pequeno ponto vazio — deslumbrado e virgem, demasiado fugaz para se deixar desvendar.
Joana sentiu-o enquanto atravessava o pequeno jardim de Lídia, ignorando aonde iria, sabendo ape­nas que deixava atrás de si tudo o que vivera. Quan­do fechou o portãozinho, afastou-se de Lídia, de Otávio, e, de novo sozinha em si mesma, cami­nhava .
Um começo de tempestade acalmara e o ar fresco circulava docemente. Subiu de novo o morro e seu coração ainda batia sem ritmo. Procurava a paz da­queles caminhos àquela hora, entre a tarde e a noite, uma cigarra invisível sussurrando o mesmo canto. Os velhos muros úmidos em ruína, invadidos de he­ras e trepadeiras sensíveis ao vento. Parou e sem os seus passos ouvia o silêncio mover-se. Só seu corpo perturbava aquela serenidade. Imaginava-a sem sua presença e adivinhava a frescura que deveriam ter aquelas coisas mortas misturadas às outras, frágil-mente vivas como no início da criação.
As altas casas fechadas, recolhidas como tor­res. Chegava-se a um dos casarões por uma longa rua sombria e quieta, o fim do mundo. Apenas junto dele enxergava-se um declive, o nascimento de ou­tra rua e compreendia-se que não era o fim. O casarão baixo e largo, os vidros quebrados, as vene­zianas cerradas, cobertas de poeira. Conhecia bem aquele jardim onde se misturavam fofos tufos de erva, rosas vermelhas, velhas latas enferrujadas. Sob os jasmineiros em flor encontraria os jornais des­botados, pedaços de madeira úmida de antigos en­xertos. Entre as árvores pesadas e envelhecidas os pardais e os pombos beliscando desde sempre o chão. Um passarinho pousava do vôo, passeava pe­los arredores até sumir-se numa das moitas. O casa­rão orgulhoso e doce em seus escombros. Morrer ali. Àquela casa só se podia chegar quando viesse o fim. Morrer naquela terra úmida tão boa para rece- ber um corpo morto. Mas não era morte o que ela queria, tinha medo também.
[...]

A Imitação da Rosa

segunda-feira, julho 21, 2008

Antes que Armando voltasse do trabalho a casa deveria estar arrumada e ela própria já no vestido marrom para que pudesse atender o marido enquanto ele se vestia, e então sairiam com calma, de braço dado como antigamente. Há quanto tempo não faziam isso?
Mas agora que ela estava de novo "bem", tomariam o ônibus, ela olhando como uma esposa pela janela, o braço no dele, e depois jantariam com Carlota e João, recostados na cadeira com intimidade. Há quanto tempo não via Ar­mando enfim se recostar com intimidade e conversar com um homem? A paz de um homem era, esquecido de sua mulher, conversar com outro homem sobre o que saía nos jornais. Enquanto isso ela falaria com Carlota sobre coisas de mulheres, submissa à bondade autoritária e prática de Carlota, recebendo enfim de novo a desatenção e o vago desprezo da amiga, a sua rudeza natural, e não mais aquele carinho perplexo e cheio de curiosidade — e vendo enfim Armando esquecido da própria mulher. E ela mesma, enfim, voltando à insignificância com reconhecimento. Como um gato que passou a noite fora e, como se nada tivesse acontecido, encontrasse sem uma palavra um pires de leite esperando. As pessoas felizmente ajudavam a fazê-la sentir que agora estava "bem". Sem a fitarem, ajudavam-na ativamente a esquecer, fingindo elas próprias o esqueci­mento como se tivessem lido a mesma bula do mesmo vidro de remédio. Ou tinham esquecido realmente, quem sabe. Há quanto tempo não via Armando enfim se recostar com abandono, esquecido dela? E ela mesma?
Interrompendo a arrumação da penteadeira, Laura olhou-se ao espelho: e ela mesma, há quanto tempo? Seu rosto tinha uma graça doméstica, os cabelos eram presos com grampos atrás das orelhas grandes e pálidas. Os olhos marrons, os cabelos marrons, a pele morena e suave, tudo dava a seu rosto já não muito moço um ar modesto de mulher. Por acaso alguém veria, naquela mínima ponta de surpresa que havia no fundo de seus olhos, alguém veria nesse mínimo ponto ofendido a falta dos filhos que ela nunca tivera?
Com seu gosto minucioso pelo método — o mesmo que a fazia quando aluna copiar com letra perfeita os pon­tos da aula sem compreendê-los — com seu gosto pelo mé­todo, agora reassumido, planejava arrumar a casa antes que a empregada saísse de folga para que, uma vez Maria na rua, ela não precisasse fazer mais nada, senão 1º) calma­mente vestir-se; 2º) esperar Armando já pronta; 3º) o ter­ceiro o que era? Pois é. Era isso mesmo o que faria. E poria o vestido marrom com gola de renda creme. Com seu banho tomado. Já no tempo do Sacré Coeur ela fora arrumada e limpa, com um gosto pela higiene pessoal e um certo horror à confusão. O que não fizera nunca com que Carlota, já naquele tempo um pouco original, a admirasse. A reação das duas sempre fora diferente. Carlota ambiciosa e rindo com força: ela, Laura, um pouco lenta, e por assim dizer cuidando em se manter sempre lenta; Carlota não vendo perigo em nada. E ela cuidadosa. Quando lhe haviam dado para ler a "Imitação de Cristo", com um ardor de burra ela lera sem entender mas, que Deus a perdoasse, ela sentira que quem imitasse Cristo estaria perdido — perdido na luz, mas perigosamente perdido. Cristo era a pior tentação. E Carlota nem ao menos quisera ler, mentira para a freira dizendo que tinha lido. Pois é. Poria o vestido marrom com gola de renda verdadeira.
Mas quando viu as horas lembrou-se, num sobressalto que a fez levar a mão ao peito, que se esquecera de tomar o copo de leite.
Encaminhou-se para a cozinha e, como se tivesse culposamente traído com seu descuido Armando e os amigos devotados, ainda junto da geladeira bebeu os primeiros goles com um devagar ansioso, concentrando-se em cada gole com fé como se estivesse indenizando a todos e se peniten­ciando. Se o médico dissera: "Tome leite entre as refeições, nunca fique com o estômago vazio pois isso dá ansiedade" — então, mesmo sem ameaça de ansiedade, ela tomava sem discutir gole por gole, dia após dia, não falhara nunca, obe­decendo de olhos fechados, com um ligeiro ardor para que não pudesse enxergar em si a menor incredulidade. O em­baraçante é que o médico parecia contradizer-se quando, ao mesmo tempo que recomendava uma ordem precisa que ela queria seguir com o zelo de uma convertida, dissera tam­bém: "Abandone-se, tente tudo suavemente, não se esforce por conseguir — esqueça completamente o que aconteceu e tudo voltará com naturalidade". E lhe dera uma palmada nas costas, o que a lisonjeara e a fizera corar de prazer. Mas na sua humilde opinião uma ordem parecia anular a outra, como se lhe pedissem para comer farinha e assobiar ao mes­mo tempo. Para fundi-las numa só ela passara a usar um engenho: aquele copo de leite que terminara por ganhar um secreto poder, que tinha dentro de cada gole quase o gosto de uma palavra e renovava a forte palmada nas cos­tas, aquele copo de leite ela o levava à sala, onde se sentava "com muita naturalidade", fingindo falta de interesse, "não se esforçando" — e assim cumprindo espertamente a se­gunda ordem. "Não tem importância que eu engorde", pen­sou, o principal nunca fora a beleza.
Sentou-se no sofá como se fosse uma visita na sua pró­pria casa que, tão recentemente recuperada, arrumada e fria, lembrava a tranqüilidade de uma casa alheia. O que era tão satisfatório: ao contrário de Carlota, que fizera de seu lar algo parecido com ela própria, Laura tinha tal prazer em fazer de sua casa uma coisa impessoal; de certo modo per­feita por ser impessoal.
Oh como era bom estar de volta, realmente de volta, sorriu ela satisfeita. Segurando o copo quase vazio, fechou os olhos com um suspiro de cansaço bom. Passara a ferro as camisas de Armando, fizera listas metódicas para o dia seguinte, calculara minuciosamente o que gastara de manhã na feira, não parara na verdade um instante sequer. Oh como era bom estar de novo cansada.
Se uma pessoa perfeita do planeta Marte descesse e soubesse que as pessoas da Terra se cansavam e envelheciam, teria pena e espanto. Sem entender jamais o que havia de bom em ser gente, em sentir-se cansada, em diariamente falir; só os iniciados compreenderiam essa nuance de vício e esse refinamento de vida.
E ela retornara enfim da perfeição do planeta Marte. Ela, que nunca ambicionara senão ser a mulher de um ho­mem, reencontrava grata sua parte diariamente falível. De olhos fechados suspirou reconhecida. Há quanto tempo não se cansava? Mas agora sentia-se todos os dias quase exausta e passara, por exemplo, as camisas de Armando, sempre gostara de passar a ferro e, sem modéstia, era uma passadeira de mão cheia. E depois ficava exausta como uma recom­pensa. Não mais aquela falta alerta de fadiga. Não mais aquele ponto vazio e acordado e horrivelmente maravilhoso dentro de si. Não mais aquela terrível independência. Não mais a facilidade monstruosa e simples de não dormir — nem de dia nem de noite — que na sua discrição a fizera subitamente super-humana em relação a um marido cansado e perplexo. Ele, com aquele hálito que tinha quando estava mudo de preocupação, o que dava a ela uma piedade pun­gente, sim, mesmo dentro de sua perfeição acordada, a pie­dade e o amor, ela super-humana e tranqüila no seu isola­mento brilhante, e ele, quando tímido, vinha visitá-la levan­do maçãs e uvas que a enfermeira com um levantar de ombros comia, ele fazendo visita de cerimônia como um namorado, com o hálito infeliz e um sorriso fixo, esforçan­do-se no seu heroísmo por compreender, ele que a recebera de um pai e de um padre, e que não sabia o que fazer com essa moça da Tijuca que inesperadamente, como um barco tranqüilo se empluma nas águas, se tornara super-humana. Agora, nada mais disso. Nunca mais. Oh, fora apenas uma fraqueza; o gênio era a pior tentação. Mas depois ela voltara tão completamente que até já começava de novo a precisar de tomar cuidado para não amolar os outros com seu velho gosto pelo detalhe. Ela bem se lembrava das cole­gas do Sacré Coeur lhe dizendo: "Você já contou isso mil vezes!", ela se lembrava com um sorriso constrangido. Vol­tara tão completamente: agora todos os dias ela se cansava, todos os dias seu rosto decaía ao entardecer, e a noite então tinha a sua antiga finalidade, não era apenas a perfeita noite estrelada. E tudo se completava harmonioso. E, como para todo o mundo, cada dia a fatigava; como todo o mundo, humana e perecível. Não mais aquela perfeição, não mais aquela juventude. Não mais aquela coisa que um dia se alas­trara clara, como um câncer, a sua alma.
Abriu os olhos pesados de sono, sentindo o bom copo sólido nas mãos, mas fechou-os de novo com um sorriso confortável de cansaço, banhando-se como um novo-rico em todas as suas partículas, nessa água familiar e ligeira­mente enjoativa. Sim, ligeiramente enjoativa; que impor­tância tinha, pois se também ela era um pouco enjoativa, bem sabia. Mas o marido não achava, e então que impor­tância tinha, pois se graças a Deus ela não vivia num am­biente que exigisse que ela fosse mais arguta e interessante, e até do ginásio, que tão embaraçosamente exigira que ela fosse alerta, ela se livrara. Que importância tinha. No cansa­ço — passara as camisas de Armando, sem contar que fora de manhã à feira e demorara tanto lá, com aquele gosto que tinha em fazer as coisas renderem — no cansaço havia um lugar bom para ela, o lugar discreto e apagado de onde, com tanto constrangimento para si e para os outros, saíra uma vez. Mas como ia dizendo, graças a Deus, voltara.
E se procurasse com mais crença e amor, encontra­ria dentro do cansaço aquele lugar ainda melhor que seria o sono. Suspirou com prazer, por um momento de traves-sura maliciosa tentada a ir de encontro ao hálito morno que era sua respiração já sonolenta, por um instante tenta­da a cochilar. "Um instante só, só um instantezinho!", pe­diu-se lisonjeada por ter tanto sono, pedia cheia de manha, como se pedisse a um homem, o que sempre agradara muito Armando.
Mas não tinha verdadeiramente tempo de dormir agora, nem sequer de tirar um cochilo — pensou vaidosa e com falsa modéstia, ela era uma pessoa tão ocupada! sempre invejara as pessoas que diziam "não tive tempo" e agora ela era de novo uma pessoa tão ocupada: iam jantar com Carlota e tudo tinha que estar ordeiramente pronto, era o pri­meiro jantar fora desde que voltara e ela não queria chegar atrasada, tinha que estar pronta quando... bem, eu já disse isso mil vezes, pensou encabulada. Bastaria dizer uma só vez: "não queria chegar atrasada" — pois isso era motivo suficiente: se nunca suportara sem enorme vexame ser um transtorno para alguém, agora então, mais que nunca, não deveria... Não, não havia a menor dúvida: não tinha tempo de dormir. O que devia fazer, mexendo-se com familiarida­de naquela íntima riqueza da rotina — e magoava-a que Carlota desprezasse seu gosto pela rotina — o que devia fazer era 1º) esperar que a empregada estivesse pronta; 2º) dar-lhe o dinheiro para ela já trazer a carne de manhã, chã-de-dentro; como explicar que a dificuldade de achar carne boa era até um assunto bom, mas se Carlota soubesse a desprezaria; 3º) começar minuciosamente a se lavar e a se vestir, entregando-se sem reserva ao prazer de fazer o tempo render. O vestido marrom combinava com seus olhos e a golinha de renda creme dava-lhe alguma coisa de infantil, como um menino antigo. E, de volta à paz noturna da Tijuca — não mais aquela luz cega das enfermeiras penteadas e alegres saindo para as folgas depois de tê-la lançado como a uma galinha indefesa no abismo da insulina —, de volta à paz noturna da Tijuca, de volta à sua verdadeira vida: ela iria de braço dado com Armando, andando devagar para o ponto do ônibus, com aquelas coxas baixas e grossas que a cinta empacotava numa só fazendo dela uma "senhora dis­tinta"; mas quando, sem jeito, ela dizia a Armando que isso vinha de insuficiência ovariana, ele, que se sentia lisonjeado com as coxas de sua mulher, respondia com muita audá­cia: "De que me adiantava casar com uma bailarina?", era isso o que ele respondia. Ninguém diria, mas Armando po­dia ser às vezes muito malicioso, ninguém diria. De vez em quando eles diziam a mesma coisa. Ela explicava que era por causa de insuficiência ovariana. Então ele falava assim: "De que é que me adiantava ser casado com uma bailarina?" Às vezes ele era muito sem-vergonha, ninguém diria. Car­lota ficaria espantada se soubesse que eles também tinham vida íntima e coisas a não contar, mas ela não contaria, era uma pena não poder contar, Carlota na certa pensava que ela era apenas ordeira e comum e um pouco chata, e se ela era obrigada a tomar cuidado para não importunar os outros com detalhes, com Armando ela às vezes relaxava e era cha­tinha, o que não tinha importância porque ele fingia que ouvia mas não ouvia tudo o que ela lhe contava, o que não a magoava, ela compreendia perfeitamente bem que suas conversas cansavam um pouquinho uma pessoa, mas era bom poder lhe contar que não encontrara carne mesmo que Armando balançasse a cabeça e não ouvisse, a empre­gada e ela conversavam muito, na verdade mais ela mesma que a empregada, e ela também tomava cuidado para não cacetear a empregada que às vezes continha a impaciência e ficava um pouco malcriada, a culpa era mesmo sua porque nem sempre ela se fazia respeitar.
Mas, como ela ia dizendo, de braço dado, baixinha e ele alto e magro, mas ele tinha saúde graças a Deus, e ela castanha. Ela castanha como obscuramente achava que uma esposa devia ser. Ter cabelos pretos ou louros eram um ex­cesso que, na sua vontade de acertar, ela nunca ambicionara. Então, em matéria de olhos verdes, parecia-lhe que se tivesse olhos verdes seria como se não dissesse tudo a seu marido. Não é que Carlota desse propriamente o que falar, mas ela, Laura — que se tivesse oportunidade a defenderia ardente­mente, mas nunca tivera a oportunidade — ela, Laura, era obrigada a contragosto a concordar que a amiga tinha um modo esquisito e engraçado de tratar o marido, oh não por ser "de igual para igual", pois isso agora se usava, mas você sabe o que quero dizer. E Carlota era até um pouco original, isso até ela já comentara uma vez com Armando e Armando concordara mas não dera muita importância. Mas, como ela ia dizendo, de marrom com a golinha... — o devaneio enchia-a com o mesmo gosto que tinha em arrumar gavetas, chegava a desarrumá-las para poder arrumá-las de novo.
Abriu os olhos, e como se fosse a sala que tivesse tira­do um cochilo e não ela, a sala parecia renovada e repousada com suas poltronas escovadas e as cortinas que haviam enco­lhido na última lavagem, com calças curtas demais e a pessoa olhando cômica para as próprias pernas. Oh como era bom rever tudo arrumado e sem poeira, tudo limpo pelas suas próprias mãos destras, e tão silencioso, e com um jarro de flores, como uma sala de espera. Sempre achara lindo uma sala de espera, tão respeitoso, tão impessoal. Como era rica a vida comum, ela que enfim voltara da extravagância. Até um jarro de flores. Olhou-o.
— Ah como são lindas, exclamou seu coração de repen­te um pouco infantil. Eram miúdas rosas silvestres que ela comprara de manhã na feira, em parte porque o homem insistira tanto, em parte por ousadia. Arrumara-as no jarro de manhã mesmo, enquanto tomava o sagrado copo de leite das dez horas.
Mas à luz desta sala as rosas estavam em toda a sua completa e tranqüila beleza.Nunca vi rosas tão bonitas, pensou com curiosidade. E como se não tivesse acabado de pensar exatamente isso, vagamente consciente de que acabara de pensar exatamente isso e passando rápida por cima do embaraço em se reco­nhecer um pouco cacete, pensou numa etapa mais nova de surpresa: "sinceramente, nunca vi rosas tão bonitas". Olhou-as com atenção. Mas a atenção não podia se manter muito tempo como simples atenção, transformava-se logo em suave prazer, e ela não conseguia mais analisar as rosas, era obri­gada a interromper-se com a mesma exclamação de curio­sidade submissa: como são lindas.
Eram algumas rosas perfeitas, várias no mesmo talo. Em algum momento tinham trepado com ligeira avidez umas sobre as outras mas depois, o jogo feito, haviam se imobilizado tranqüilas. Eram algumas rosas perfeitas na sua miudez, não de todo desabrochadas, e o tom rosa era quase branco. Parecem até artificiais! disse em surpresa. Poderiam dar a impressão de brancas se estivessem totalmente aber­tas mas, com as pétalas centrais enrodilhadas em botão, a cor se concentrava e, como num lóbulo de orelha, sentia-se o rubor circular dentro delas. Como são lindas, pensou Laura surpreendida.
Mas, sem saber por quê, estava um pouco constrangida, um pouco perturbada. Oh, nada demais, apenas acontecia que a beleza extrema incomodava.
Ouviu os passos da empregada no ladrilho da cozinha e pelo som oco reconheceu que ela estava de salto alto; devia pois estar pronta para sair. Então Laura teve uma idéia de certo modo muito original: por que não pedir a Maria para passar por Carlota e deixar-lhe as rosas de presente?
E também porque aquela beleza extrema incomodava. Incomodava? Era um risco. Oh, não, por que risco? apenas incomodava, eram uma advertência, oh não, por que adver­tência? Maria daria as rosas a Carlota.
— D. Laura mandou, diria Maria.
Sorriu pensativa: Carlota estranharia que Laura, poden­do trazer pessoalmente as rosas, já que desejava presenteá-las, mandasse-as antes do jantar pela empregada. Sem falar que acharia engraçado receber as rosas, acharia "refinado"...
— Essas coisas não são necessárias entre nós, Laura! diria a outra com aquela franqueza um pouco bruta, e Laura diria num abafado grito de arrebatamento:
— Oh não! não! não é por causa do convite para jantar! é que as rosas eram tão lindas que tive o impulso de dar a você!
Sim, se na hora desse jeito e ela tivesse coragem, era assim mesmo que diria. Como é mesmo que diria? precisava não esquecer: diria — Oh não! etc. E Carlota se surpreen­deria com a delicadeza de sentimentos de Laura, ninguém imaginaria que Laura tivesse também suas ideiazinhas. Nesta cena imaginária e aprazível que a fazia sorrir beata, ela cha­mava a si mesma de "Laura", como a uma terceira pessoa. Uma terceira pessoa cheia daquela fé suave e crepitante e grata e tranqüila, Laura, a da golinha de renda verdadeira, vestida com discrição, esposa de Armando, enfim um Ar­mando que não precisava mais se forçar a prestar atenção em todas as suas conversas sobre empregada e carne, que não precisava mais pensar na sua mulher, como um homem que é feliz, como um homem que não é casado com uma bailarina.
— Não pude deixar de lhe mandar as rosas, diria Laura, essa terceira pessoa tão, mas tão... E dar as rosas era quase tão bonito como as próprias rosas.
E mesmo ela ficaria livre delas.E o que é mesmo que aconteceria então? Ah, sim: como ia dizendo, Carlota surpreendida com aquela Laura que não era inteligente nem boa mas que tinha também seus senti­mentos secretos. E Armando? Armando a olharia com um pouco de bom espanto — pois é essencial não esquecer que de forma alguma ele está sabendo que a empregada levou de tarde as rosas! — Armando encararia com bene­volência os impulsos de sua pequena mulher, e de noite eles dormiriam juntos.
E ela teria esquecido as rosas e a sua beleza.
Não, pensou de súbito vagamente avisada. Era preciso tomar cuidado com o olhar de espanto dos outros. Era pre­ciso nunca mais dar motivo para espanto, ainda mais com tudo ainda tão recente. E sobretudo poupar a todos o mí­nimo sofrimento da dúvida. E que não houvesse nunca mais necessidade da atenção dos outros — nunca mais essa coisa horrível de todos olharem-na mudos, e ela em frente a todos. Nada de impulsos.
Mas ao mesmo tempo viu o copo vazio na mão e pen­sou também: "ele" disse que eu não me esforce por conse­guir, que não pense em tomar atitudes apenas para provar que já estou...
— Maria, disse então ao ouvir de novo os passos da em­pregada. E quando esta se aproximou, disse-lhe temerária e desafiadora: você poderia passar pela casa de d. Carlota e deixar estas rosas para ela? Você diz assim: "D. Carlota, d. Laura mandou". Você diz assim: "D. Carlota..."
— Sei, sei, disse a empregada paciente.
Laura foi buscar uma velha folha de papel de seda. Depois tirou com cuidado as rosas do jarro, tão lindas e tranqüilas, com os delicados e mortais espinhos. Queria fazer um ramo bem artístico. E ao mesmo tempo se livra-ria delas. E poderia se vestir e continuar seu dia. Quando reuniu as rosinhas úmidas em buquê, afastou a mão que as segurava, olhou-as a distância, entortando a cabeça e entrefechando os olhos para um julgamento imparcial e severo.
E quando olhou-as, viu as rosas.
E então, incoercível, suave, ela insinuou em si mesma: não dê as rosas, elas são lindas.
Um segundo depois, muito suave ainda, o pensamen­to ficou levemente mais intenso, quase tentador: não dê, elas são suas. Laura espantou-se um pouco: porque as coisas nunca eram dela.
Mas estas rosas eram. Rosadas, pequenas, perfeitas: eram. Olhou-as com incredulidade: eram lindas e eram suas. Se conseguisse pensar mais adiante, pensaria: suas como nada até agora tinha sido.
E mesmo podia ficar com elas pois já passara aquele primeiro desconforto que fizera com que vagamente ela tivesse evitado olhar demais as rosas.
Por que dá-las, então? lindas e dá-las? Pois quando você descobre uma coisa boa, então você vai e dá? Pois se eram suas, insinuava-se ela persuasiva sem encontrar outro argu­mento além do mesmo que, repetido, lhe parecia cada vez mais convincente e simples. Não iam durar muito — por que então dá-las enquanto estavam vivas? O prazer de tê-las não significava grande risco — enganou-se ela — pois, quisesse ou não quisesse, em breve seria forçada a se privar delas, e nunca mais então pensaria nelas pois elas teriam morrido — elas não iam durar muito, por que então dá-las? O fato de não durarem muito parecia tirar-lhe a culpa de ficar com elas, numa obscura lógica de mulher que peca. Pois via-se que iam durar pouco (ia ser rápido, sem perigo).E mesmo — argumentou numa última e vitoriosa rejeição de culpa — não fora de modo algum ela quem quisera com­prar, o vendedor insistira muito e ela se tornava sempre tão tímida quando a constrangiam, não fora ela quem quisera comprar, ela não tinha culpa nenhuma. Olhou-as com en­levo, pensativa, profunda.
E, sinceramente, nunca vi na minha vida coisa mais perfeita.
Bem, mas agora ela já falara com Maria e não teria jeito de voltar atrás. Seria então tarde demais? assustou-se vendo as rosinhas que aguardavam impassíveis na sua própria mão. Se quisesse, não seria tarde demais... Poderia dizer a Maria: "ô Maria, resolvi que eu mesma levo as rosas quando for jantar!" E, é claro, não as levaria... E Maria nunca precisaria saber. E, antes de mudar de roupa, ela se sentaria no sofá por um instante, só por um instante, para olhá-las. E olhar aquela tranqüila isenção das rosas. Sim, porque, já tendo feito a coisa, mas valia aproveitar, não seria boba de ficar com a fama sem o proveito. Era isso mesmo o que faria.
Mas com as rosas desembrulhadas na mão ela esperava. Não as depunha no jarro, não chamava Maria. Ela sabia por quê. Porque devia dá-las. Oh ela sabia por quê.
E também porque uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. E, sobretudo, nunca para se "ser". Sobretudo nunca se deveria ser a coisa bonita. A uma coisa bonita faltava o gesto de dar. Nunca se devia ficar com uma coisa bonita, assim, como que guardada dentro do silêncio perfeito do coração. (Embora, se ela não desse as rosas, nunca ninguém no mundo ia saber que ela pretendera dá-las, quem iria jamais descobrir? era horrivel­mente fácil e ao alcance da mão ficar com elas, pois quem iria descobrir? e elas seriam suas, e as coisas ficariam por isso mesmo e não se fala mais nisso...)
Então? e então? indagou-se vagamente inquieta.
Então, não. O que devia fazer era embrulhá-las e man­dá-las, sem nenhum prazer agora; embrulhá-las e, decep­cionada, mandá-las; e espantada ficar livre delas. Também porque uma pessoa tinha que ter coerência, seus pensamen­tos deviam ter congruência: se espontaneamente resolvera cedê-las a Carlota, deveria manter a resolução e dá-las. Pois ninguém mudava de idéia de um momento para outro.
Mas qualquer pessoa pode se arrepender! revoltou-se de súbito. Pois se só no momento de pegar as rosas é que notei quanto as achava lindas, pela primeira vez na verda­de, ao pegá-las, notara que eram lindas. Ou um pouco antes? (E mesmo elas eram suas). E mesmo o próprio mé­dico lhe dera a palmada nas costas e dissera: "não se esforce por fingir que a senhora está bem, porque a senhora está bem", e depois a palmada forte nas costas. Assim, pois, ela não era obrigada a ter coerência, não tinha que provar nada a ninguém e ficaria com as rosas. (E mesmo — e mesmo elas eram suas).
— Estão prontas? perguntou Maria.
— Estão, disse Laura surpreendida.
Olhou-as, tão mudas na sua mão. Impessoais na sua extrema beleza. Na sua extrema tranqüilidade perfeita de rosas. Aquela última instância: a flor. Aquele último aper­feiçoamento: a luminosa tranqüilidade.
Como uma viciada, ela olhava ligeiramente ávida a perfeição tentadora das rosas, com a boca um pouco seca olhava-as.
Até que, devagar, austera, enrolou os talos e espinhos no papel de seda. Tão absorta estivera que só ao estender o ramo pronto notou que Maria não estava mais na sala — e ficou sozinha com seu heróico sacrifício. Vagamente dolo­rosa, olhou-as, assim distantes como estavam na ponta do braço estendido — e a boca ficou ainda mais enxuta, aquela inveja, aquele desejo. Mas elas são minhas, disse com enor­me timidez.
Quando Maria voltou e pegou o ramo, por um míni­mo instante de avareza Laura encolheu a mão retendo as rosas um segundo mais consigo — elas são lindas e são minhas, é a primeira coisa linda e minha! e foi o homem que insistiu, não fui eu que procurei! foi o destino quem quis! oh só dessa vez! só essa vez e juro que nunca mais! (Ela poderia pelo menos tirar para si uma rosa, nada mais que isso: uma rosa para si. E só ela saberia, e depois nunca mais oh, ela se prometia que nunca mais se deixaria tentar pela perfeição, nunca mais!)
E no segundo seguinte, sem nenhuma transição, sem nenhum obstáculo — as rosas estavam na mão da empre­gada, não eram mais suas, como uma carta que já se pôs no correio! não se pode mais recuperar nem riscar os dizeres! não adianta gritar: não foi isso o que quis dizer! Ficou com as mãos vazias mas seu coração obstinado e rancoroso ainda dizia: "você pode pegar Maria nas escadas, você bem sabe que pode, e tirar as rosas de sua mão e roubá-las". Por que tirá-las agora seria roubar. Roubar o que era seu? Pois era assim que uma pessoa que não tivesse nenhuma pena dos outros faria: roubaria o que era seu por direito! Oh, tem piedade, meu Deus. Você pode recuperar tudo, insistia com cólera. E então a porta da rua bateu.
Então a porta da rua bateu.
Então devagar ela se sentou calma no sofá. Sem apoiar as costas. Só para descansar. Não, não estava zangada, oh nem um pouco. Mas o ponto ofendido no fundo dos olhos estava maior e pensativo. Olhou o jarro. "Cadê minhas rosas", disse então muito sossegada.
E as rosas faziam-lhe falta. Haviam deixado um lugar claro dentro dela. Tira-se de uma mesa limpa um objeto e pela marca mais limpa que ficou então se vê que ao redor havia poeira. As rosas haviam deixado um lugar sem poeira e sem sono dentro dela. No seu coração, aquela rosa, que ao menos poderia ter tirado para si sem prejudicar nin­guém no mundo, faltava. Como uma falta maior.
Na verdade, como a falta. Uma ausência que entrava nela como uma claridade. E também ao redor da marca das rosas a poeira ia desaparecendo. O centro da fadiga se abria em círculo que se alargava. Como se ela não tivesse passado nenhuma camisa de Armando. E na clareira as rosas faziam falta. "Cadê minhas rosas", queixou-se sem dor alisando as preguinhas da saia.
Como se pinga limão no chá escuro e o chá escuro vai se clareando todo. Seu cansaço ia gradativamente se cla­reando. Sem cansaço nenhum, aliás. Assim como o vaga-lume acende. Já que não estava mais cansada, ia então se levantar e se vestir. Estava na hora de começar.
Mas, com os lábios secos, procurou um instante imi­tar por dentro de si as rosas. Não era sequer difícil.
Até bom que não estava cansada. Assim iria até mais fresca para o jantar. Por que não pôr na golinha de renda verdadeira o camafeu? que o major trouxera da guerra na Itália. Arremataria bem o decote. Quando estivesse pronta ouviria o barulho da chave de Armando na porta. Precisa­va se vestir. Mas ainda era cedo. Com a dificuldade de con­dução ele demorava. Ainda era de tarde. Uma tarde muito bonita.Aliás já não era mais de tarde.
Era de noite. Da rua subiam os primeiros ruídos da escuridão e as primeiras luzes.
Aliás a chave penetrou com familiaridade no buraco da fechadura.
Armando abriria a porta. Apertaria o botão de luz. E de súbito no enquadramento da porta se desnudaria aquele rosto expectante que ele procurava disfarçar mas não podia conter. Depois sua respiração suspensa se transformaria enfim num sorriso de grande desopressão. Aquele sorriso embaraçado de alívio que ele nunca suspeitara que ela per­cebia. Aquele alívio que provavelmente, com uma palmada nas costas, tinham aconselhado seu pobre marido a ocul­tar. Mas que, para o coração tão cheio de culpa da mulher, tinha sido cada dia a recompensa por ter enfim dado de novo àquele homem a alegria possível e a paz, sagradas pela mão de um padre austero que permitia aos seres apenas a alegria humilde e não a imitação de Cristo.
A chave virou na fechadura, o vulto escuro e precipi­tado entrou, a luz inundou violenta a sala.
E na porta mesmo ele estacou com aquele ar ofegante e de súbito paralisado como se tivesse corrido léguas para não chegar tarde demais. Ela ia sorrir. Para que ele enfim desmanchasse a ansiosa expectativa do rosto, que sempre vinha misturada com a infantil vitória de ter chegado a tem­po de encontrá-la chatinha, boa e diligente, e mulher sua. Ela ia sorrir para que de novo ele soubesse que nunca mais haveria o perigo dele chegar tarde demais. Ia sorrir para ensinar-lhe docemente a confiar nela. Fora inútil recomen­darem-lhes que nunca falassem no assunto: eles não fala­vam mas tinham arranjado uma linguagem de rosto onde medo e confiança se comunicavam, e pergunta e respostas e telegrafavam mudas. Ela ia sorrir. Estava demorando um pouco porém, ia sorrir.
Calma e suave, ela disse:
— Voltou, Armando. Voltou.
Como se nunca fosse entender, ele enviesou um rosto sorridente, desconfiado. Seu principal trabalho no momento era procurar reter o fôlego ofegante da corrida pelas esca­das, já que triunfantemente não chegara atrasado, já que ela estava ali a sorrir-lhe. Como se nunca fosse entender.
— Voltou o quê, perguntou afinal num tom inex­pressivo.
Mas, enquanto procurava não entender jamais, o ros­to cada vez mais suspenso do homem já entendera, sem que um traço se tivesse alterado. Seu trabalho principal era ganhar tempo e se concentrar em reter a respiração. O que de repente já não era mais difícil. Pois inesperadamente ele percebia com horror que a sala e a mulher estavam cal­mas e sem pressa. Mais desconfiado ainda, como quem fosse terminar enfim por dar uma gargalhada ao constatar o absurdo, ele no entanto teimava em manter o rosto envie­sado, de onde a olhava em guarda, quase seu inimigo. E de onde começava a não poder se impedir de vê-la sentada com mãos cruzadas no colo, com a serenidade do vaga-lume que tem luz.
No olhar castanho e inocente o embaraço vaidoso de não ter podido resistir.
— Voltou o quê, disse ele de repente com dureza.
— Não pude impedir, disse ela, e a derradeira piedade pelo homem estava na sua voz, o último pedido de perdão que já vinha misturado à altivez de uma solidão já quase perfeita. Não pude impedir, repetiu entregando-lhe com alívio a piedade que ela com esforço conseguira guardar até que ele chegasse. Foi por causa das rosas, disse com modéstia.
Como se fosse para tirar o retrato daquele instante, ele manteve ainda o mesmo rosto isento, como se o fotógrafo lhe pedisse apenas um rosto e não a alma. Abriu a boca e involuntariamente a cara tomou por um instante a expres­são de desprendimento cômico que ele usara para esconder o vexame quando pedira aumento ao chefe. No instante seguinte, desviou os olhos com vergonha pelo despudor de sua mulher que, desabrochada e serena, ali estava.
Mas de súbito a tensão caiu. Seus ombros se abaixa­ram, os traços do rosto cederam e uma grande pesadez rela­xou-o. Ele a olhou envelhecido, curioso.
Ela estava sentada com o seu vestidinho de casa. Ele sabia que ela fizera o possível para não se tornar luminosa e inalcançável. Com timidez e respeito, ele a olhava. Enve­lhecido, cansado, curioso. Mas não tinha uma palavra sequer a dizer. Da porta aberta via sua mulher que estava sentada no sofá sem apoiar as costas, de novo alerta e tranqüila como num trem. Que já partira.

A Língua do P

sexta-feira, julho 18, 2008

Maria Aparecida – Cidinha, como a chamavam em casa - era professora de inglês. Nem rica nem pobre: remediada. Mas vestia-se com apuro. Parecia rica. Até suas malas eram de boa qualidade.Morava em Minas Gerais e iria de trem para o Rio, onde passaria três dias, e em seguida tomaria o avião para Nova Iorque.Era muito procurada como professora. Gostava da perfeição e era afetuosa, embora severa. Queria aperfeiçoar-se nos Estados Unidos.Tomou o trem das sete horas para o Rio. Frio que fazia. Ela com casaco de camurça e três maletas. O vagão estava vazio, só uma velhinha dormindo num canto sob o seu xale. Na próxima estação subiram dois homens que se sentaram no banco em frente ao banco de Cidinha. O trem em marcha. Um homem era alto, magro, e bigodinho e olhar frio, o outro era baixo, barrigudo e careca. Eles olharam para Cidinha. Esta desviou o olhar, olhou pela janela do trem.Havia um mal-estar no vagão. Como se fizesse calor demais. A moça inquieta. Os homens em alerta. Meu Deus, pensou a moça, o que é que eles querem de mim? Não tinha resposta. E ainda por cima era virgem. Por que, mas por que pensara na própria virgindade?Então os dois homens começaram a falar um com o outro. No começo Cidinha não entendeu palavra. Parecia brincadeira. Falavam depressa demais. E a linguagem parecia-lhe vagamente familiar. Que língua era aquela?De repente percebeu: eles falavam com perfeição a língua do “p”. Assim:- Vopocê reperaparoupou napa mopoçapa boponipitapa?- Jápá vipi tupudopo. Épé linpindapa. Espestápá nopo papapopo.Queriam dizer: você reparou na moça bonita? Já vi tudo. É linda. Está no papo.Cidinha fingiu não entender: entender seria perigoso demais. A linguagem era aquela que usava, quando criança, para se defender dos adultos. Os dois continuaram:- Queperopo cupurrapar apa mopoçapa. Epe vopocêpê ?- Tampambémpém. Vapaipi serper nopo tupunelpel.Queriam dizer que iam currá-la no túnel...O que fazer? Cidinha não sabia e tremia de medo. Ela mal se conhecia. Aliás nunca se conhecera por dentro. Quanto a conhecer os outros, aí e que piorava. Me socorre, Virgem Maria! Me socorre! Me socorre! - Sepe repesispis tirpir popodepemospos mapatarpar epelapa.Se resistisse podiam matá-la. Era assim então.- Compom umpum pupunhalpal. Epe roupoubarpar epelapa.Matá-la com um punhal. E podiam roubá-la.Como lhes dizer que não era rica? Que era frágil, qualquer gesto a mataria. Tirou um cigarro da bolsa para fumar e acalmar-se. Não adiantou. Quando seria o próximo túnel? Tinha que pensar depressa, depressa, depressa.Então pensou: se eu me fingir de prostituta, eles desistem, não gostam de vagabunda.Então levantou a saia, fez trejeitos sensuai s- nem sabia que sabia fazê-los, tão desconhecida era de si mesma - abriu os botões do decote, deixou os seios meio à mostra. Os homens de súbito espantados.- Tápá dopoipidapa.Está doida, queriam dizer.E ela a se requebrar que nem sambista do morro. Tirou da bolsa o batom e pintou-se exageradamente. E começou a cantarolar.Então os homens começaram a rir dela. Achavam graça na doideira de Cidinha. Esta desesperada. E o túnel?Apareceu o bilheteiro. Viu tudo. Não disse nada. Mas foi ao maquinista e contou. Este disse:- Vamos dar um jeito, vou entregar ela pra polícia na primeira estação.E a próxima estação veio.O maquinista desceu, falou com um soldado por nome José Lindalvo. José Lindalvo não era de brincadeira. Subiu no vagão, viu Cidinha, agarrou-a com brutalidade pelo braço, segurou como pôde as três maletas, e ambos desceram. Os dois homens às gargalhadas.Na pequena estação pintada de azul e rosa estava uma jovem com uma maleta. Olhou para Cidinha com desprezo. Subiu no trem e este partiu.Cidinha não sabia como se explicar ao polícia. A língua do “p” não tinha explicação. Foi levada ao xadrez e lá fichada. Chamaram-na dos piores nomes. E ficou na cela por três dias. Deixavam-na fumar. Fumava como uma louca, tragando, pisando o cigarro no chão de cimento. Tinha uma barata gorda se arrastando no chão.Afinal deixaram-na partir. Tomou o próximo trem para o Rio. Tinha lavado a cara não era mais prostituta. O que a preocupava era o seguinte: quando os dois homens haviam falado em currá-la, tinha tido vontade de ser currada. Era uma descarada. Epe sopoupu upumapa puputapa. Era o que descobrira. Cabisbaixa.Chegou ao Rio exausta. Foi para um hotel barato. Viu logo que havia perdido o avião. No aeroporto comprou a passagem.E andava pelas ruas de Copacabana, desgraçada ela, desgraçada Copacabana.Pois foi na esquina da rua Figueiredo Magalhães que viu a banca de jornal. E pendurado ali o jornal "O Dia". Não saberia dizer por que comprou.Em manchete negra estava escrito: “Moça currada e assassinada no trem”.Tremeu toda. Acontecera, então. E com a moça que a despreazara.Pôs-se a chorar na rua. Jogou fora o maldito jornal. Não queria saber dos detalhes. Pensou:- Épé. Opo despestipinopo épé impimplaplacápávelpel. O destino é implacável.

Os Primeiros Desertores (trecho)

sexta-feira, julho 18, 2008

Perseu abrigara-se da chuva na sala da estação, pou­sando a mala no banco. Cortara no dia anterior os ca­belos. No rosto mais nu as orelhas pareciam separadas da cabeça; as faces um pouco ossudas davam-lhe um ar de fraqueza obstinada e, apesar disso, de tranqüilidade.
Seu aspecto se transformara bastante desde a época em que andava com Lucrécia. Estava muito mais magro, menos bonito. Agora havia nele um modo de ter doçura que não estava mais na doçura; com o impermeável solto no corpo parecia um estrangeiro que entrasse numa cidade.
Chovia muito. A chuva nos trilhos ainda desertos tinha um sentido reservado de que ele parecia fazer parte.
Como havia tempo, ligou o rádio que em breve es­talava captando o temporal longínquo — percebia-se po­rém o fio de música através das crepitações da eletri­cidade. Perseu ouvia de pé, sem sonhos e sem o que se chamaria de entender. A frase musical, muito nobre, era-lhe visível como o rádio. Apreendia o esforço da música com o mesmo esforço agradável, e tirava prazer dessa vaga rivalidade. Quando lhe perguntavam se gostava de música, dizia sorrindo com graça que gostar gostava, mas não compreendia, dava quase no mesmo ouvir bater na porta e ouvir música.
O rádio crepitava. Perseu escutava com força pa­cífica, alisando o peso de papéis da mesinha. Se vivesse em sua época seria tentado a achar que a música o fazia sofrer. Mas este rapaz insignificante não tivera verdadei­ras influências nem deixava marcas. Talvez estivesse mes­mo perdendo sua época, e tanta liberdade o deixasse muito aquém do que poderia se fosse constrangido. Mas ele parecia sempre arranjar-se em silêncio. Se não entendia as notas obscuras, acompanhava-as com uma pequena parte enigmática sua que se comprazia na nitidez do mistério. Quando a música cessou, desligou o rádio. As gotas tombavam da calha e a bilha que o chefe da estação deixara fora enchia-se dágua.

O Milho no Campo (trecho)

sexta-feira, julho 18, 2008

Numa de suas últimas viagens de negócio, em vez de dei­xar a esposa na rua do Mercado, Mateus alugou-lhe a casinha na ilha, esperando que o mar lhe desse cores.
A barca hesitava vencendo as ondas que uma tem­pestade frustrada enchia de cólera e de espuma.
Pálida de enjôo Lucrécia apertava os olhos esfor­çando-se por ver de longe a terra que se negava. Mal de­sembarcara porém, e certo prazer já nascia com os pas­sos afundando na areia do cais. Em breve atingia o cen­tro da pequena cidade marítima, chefiando a comitiva de carregador e criada. Antes de tomar a charrete ainda viu a placa de Dr. Lucas, que representava, aos olhos de Mateus, a segurança da saúde de Lucrécia, na verdade emagrecida.
Subindo na charrete, marcou bem a casa onde en­contraria o médico se dele precisasse. Com surpresa seu coração em vez de sentir apenas confiança, estremeceu acordando à lembrança de uma força quase íntegra? deu ordem de partida.
Os cavalos a carregavam em tropeços e súbitos avan­ços através do atalho mas em breve corriam empinando cabeças — e em breve a mulher queria que voassem.
[...]

Lídia (trecho)

quarta-feira, julho 16, 2008

A manhã seguinte era de novo como um primeiro dia, sentiu Joana.
Otávio saíra cedo e ela o abençoava por isso como se ele lhe tivesse concedido intencionalmente tempo para pensar, para observar-se. Ela não que­ria precipitar-se em nenhuma atitude, sentia que qualquer de seus movimentos poderia tornar-se pre­cioso e perigoso.
Foram instantes, horas rápidas apenas. Porque ela recebeu o bilhete de Lídia convidando-a a vi­sitá-la.
Sua leitura fizera Joana sorrir antes mesmo de provocar aquelas rápidas e pesadas batidas do cora­ção. E também a lâmina fria de aço encostando no interior morno do corpo. Como se sua tia morta ressurgisse e lhe falasse, Joana imaginou-lhe o susto, sentiu seus olhos abertos — ou seriam os seus pró­prios olhos a quem ela não permitia surpresas? —: Otávio voltou para Lídia, apesar de Joana? — diria a tia.
Joana alisou os cabelos vagamente, a lâmina fria encostada ao coração quente, sorriu de novo, oh só para ganhar tempo. Mas sim, por que não continuar com Lídia? — respondeu à tia morta. A lâmi­na agora, a esse pensamento claro, oprimiu-lhe rindo os pulmões, gelada. Por que recusar acontecimentos? Ter muito ao mesmo tempo, sentir de várias manei­ras, reconhecer a vida em diversas fontes... Quem poderia impedir a alguém viver largamente?
Mais tarde caiu num estado de estranha e leve excitação. Deslizou pela casa sem destino, chorou mesmo um pouco, sem grande sofrimento, só por chorar — convenceu-se — simplesmente, como quem acena com a mão, como quem olha. Estou sofrendo?
— indagava-se às vezes e de novo quem pensava enchia toda ela de surpresa, curiosidade e orgulho e não restava lugar para quem sofrer. Mas sua fina exaltação não lhe permitiu continuar num mesmo plano durante muito tempo. Passou logo a outro tom de comportamento, tocou um pouco de piano, esque­ceu a carta de Lídia. Quando dela se lembrava, vaga­mente, um pássaro que vem e volta, não sabia deci­dir-se, se ficar triste ou alegre, se calma ou agitada. Lembrava-se continuamente da noite anterior, a vi­draça erguida brilhava serenamente à lua, do peito nu de Otávio, da Joana que adormecera profunda­mente, quase pela primeira vez na vida, confiando-se a um homem que dormia ao seu lado. Na verdade não se distanciara da Joana cheia de ternura da vés­pera. Envergonhada, humilde e rejeitada, essa va­gara até voltar e Joana estava cada vez mais dura, mais concentrada e cada vez mais perto de si mesma — julgava. Até melhor. Só que o aço frio se reno­vava sempre, nunca esquentava. Sobretudo, no fundo de qualquer pensamento pairava um outro, perplexo, quase encantado, como no dia da morte do pai: aconteciam coisas sem que ela as inventasse...
[...]

Devaneio e Embriaguez duma Rapariga

quarta-feira, julho 16, 2008

Pelo quarto parecia-lhe estarem a se cruzar os elétricos, a estremecerem-lhe a imagem refletida. Estava a se pentear vagarosamente diante da penteadeira de três espelhos, os braços brancos e fortes arrepiavam-se à frescurazita da tar­de. Os olhos não se abandonavam, os espelhos vibravam ora escuros, ora luminosos. Cá fora, duma janela mais alta, caiu à rua uma cousa pesada e fofa. Se os miúdos e o ma­rido estivessem à casa, já lhe viria à idéia que seria des­cuido deles. Os olhos não se despregavam da imagem, o pente trabalhava meditativo, o roupão aberto deixava apa­recerem nos espelhos os seios entrecortados de várias raparigas.
"A Noite!", gritou o jornaleiro ao vento brando da Rua do Riachuelo, e alguma cousa arrepiou-se pressagiada. Jogou o pente à penteadeira, cantou absorta: "quem viu o par­dal-zito... passou pela jane-la... voou pr'além do Mi-nho!" — mas, colérica, fechou-se dura como um leque.
Deitou-se, abanava-se impaciente com um jornal a farfalhar no quarto. Pegou o lenço, aspirava-o a comprimir o bordado áspero com os dedos avermelhados. Punha-se de novo a abanar-se, quase a sorrir. Ai, ai, suspirou a rir. Teve a visão de seu sorriso claro de rapariga ainda nova, e sorriu mais fechando os olhos, a abanar-se mais profundamente. Ai, ai, vinha da rua como uma borboleta.
"Bons dias, sabes quem veio a me procurar cá à casa?", pensou como assunto possível e interessante de palestra. "Pois não sei, quem?", perguntaram-lhe com um sorriso galanteador, uns olhos tristes numa dessas caras pálidas que a uma pessoa fazem tanto mal. "A Maria Quitéria, homem!", respondeu garrida, de mão à ilharga. "E se mo permite, quem é esta rapariga?", insistiram galante, mas já agora sem fisionomia. "Tu!", cortou ela com leve rancor a palestra, que chatura.
Ai que quarto suculento! ela se abanava no Brasil. O sol preso pelas persianas tremia na parede como uma gui­tarra. A Rua do Riachuelo sacudia-se ao peso arquejante dos elétricos que vinham da Rua Mem de Sá. Ela ouvia curiosa e entediada o estremecimento do guarda-loiça na sala das visitas. D'impaciência, virou-se-lhe o corpo de bru­ços, e enquanto estava a esticar com amor os dedos dos pés pequeninos, aguardava seu próximo pensamento com os olhos abertos. "Quem encontrou, buscou", disse-se em forma de rifão rimado, o que sempre terminava por parecer com alguma verdade. Até que adormeceu com a boca aberta, a baba a umedecer-lhe o travesseiro.
Só acordou com o marido a voltar do trabalho e a entrar pelo quarto adentro. Não quis jantar nem sair de seus cuidados, dormiu de novo: o homem lá que se regalasse com as sobras do almoço.
E, já que os filhos estavam na quinta das titias em Jacarepaguá, ela aproveitou para amanhecer esquisita: túrbida e leve na cama, um desses caprichos, sabe-se lá. O marido apareceu-lhe já trajado e ela nem sabia o que o homem fi­zera para o seu pequeno almoço, e nem olhou-lhe o fato, se estava ou não por escovar, pouco se lhe importava se hoje era dia dele tratar os negócios na cidade. Mas quando ele se inclinou para beijá-la, sua leveza crepitou como folha seca:
— Larga-te daí!
— E o que tens? pergunta-lhe o homem atônito, a ensaiar imediatamente carinho mais eficaz.
Obstinada, ela não saberia responder, estava tão rasa e princesa que não tinha sequer onde se lhe buscar uma res­posta. Zangou-se:
— Ai que não me maces! não me venhas a rondar como um galo velho!
Ele pareceu pensar melhor e declarou:
— Ó rapariga, estás doente.
Ela aceitou surpreendida, lisonjeada. Durante o dia inteiro ficou-se na cama, a ouvir a casa tão silenciosa sem o bulício dos miúdos, sem o homem que hoje comeria seus cozidos pela cidade. Durante o dia inteiro ficou-se à cama. Sua cólera era tênue, ardente. Só se levantava mesmo para ir à casa de banhos, donde voltava nobre, ofendida.
A manhã tornou-se uma longa tarde inflada que se tornou noite sem fundo amanhecendo inocente pela casa toda.
Ela ainda à cama, tranqüila, improvisada. Ela amava... Estava previamente a amar o homem que um dia ela ia amar. Quem sabe lá, isso às vezes acontecia, e sem culpas nem danos para nenhum dos dois. Na cama a pensar, a pensar, quase a rir como a uma bisbilhotice. A pensar, a pensar. O quê? ora, lá ela sabia. Assim deixou-se a ficar.
Dum momento para outro, com raiva, estava de pé. Mas nas fraquezas do primeiro instante parecia doida e deli­cada no quarto que rodava, que rodava até ela conseguir às apalpadelas deitar-se de novo à cama, surpreendida de que talvez fosse verdade: "ó mulher, vê lá se me vais mesmo adoecer!", disse desconfiada. Levou a mão à testa para ver se lhe tinham vindo febres.
Nessa noite, até dormir, fantasticou, fantasticou: por quantos minutos? até que tombou: adormecidona, a ressonar com o marido.
Acordou com o dia atrasado, as batatas por descascar, os miúdos que voltariam à tarde das titias, ai que até me faltei ao respeito!, dia de lavar roupa e cerzir as peúgas, ai que vagabunda que me saíste!, censurou-se curiosa e satis­feita, ir às compras, não esquecer o peixe, o dia atrasado, a manhã pressurosa de sol.
Mas no sábado à noite foram à tasca da Praça Tira-dentes a atenderem ao convite do negociante tão próspero, ela com vestidito novo que se não era cheio d'enfeites era de bom pano superior, desses que lhe iam a durar pela vida afora. No sábado à noite, embriagada na Praça Tiradentes, embriagada mas com o marido ao lado a garanti-la, e ela cerimoniosa diante do outro homem tão mais fino e rico, procurando dar-lhe palestras, pois que ela não era nenhu­ma parola d'aldeia e já vivera em Capital. Mas borrachona a mais não poder.
E se seu marido não estava borracho é que não queria faltar ao respeito ao negociante, e, cheio d'empenho e d'hu­mildade, deixava-lhe, ao outro, o cantar de galo. O que assentava bem para a ocasião fina, mas lhe punha, a ela, uma dessas vontades de rir! um desses desprezos! olhava o marido metido no fato novo e achava-lhe uma tal piada! Borrachona a mais não poder mas sem perder o brio de rapariga. E o vinho verde a esvaziar-se-lhe do copo.
E quando estava embriagada, como num ajantarado farto de domingo, tudo o que pela própria natureza é separado um do outro — cheiro d'azeite dum lado, homem doutro, terrina dum lado, criado de mesa doutro — unia-se esquisitamente pela própria natureza, e tudo não passava duma sem-vergonhice só, duma só marotagem.
E se lhe estavam brilhantes e duros os olhos, se seus gestos eram etapas difíceis até conseguir enfim atingir o paliteiro, em verdade por dentro estava-se até lá muito bem, era-se aquela nuvem plena a se transladar sem esforço. Os lábios engrossados e os dentes brancos, e o vinho a inchá-la. E aquela vaidade de estar embriagada a facilitar-lhe um tal desdenho por tudo, a torná-la madura e redonda como uma grande vaca.
Naturalmente que ela palestrava. Pois que lhe não fal­tavam os assuntos nem as capacidades. Mas as palavras que uma pessoa pronunciava quando estava embriagada era como se estivesse prenhe — palavras apenas na boca, que pouco tinham a ver com o centro secreto que era como uma gravidez. Ai que esquisita estava. No sábado à noite a alma diária perdida, e que bom perdê-la, e como lembrança dos outros dias apenas as mãos pequenas tão maltratadas — e ela agora com os cotovelos sobre a toalha de xadrez vermelho-e-branco da mesa como sobre uma mesa de jogo, profundamente lançada numa vida baixa e revolucionante. E esta gargalhada? essa gargalhada que lhe estava a sair mis­teriosamente duma garganta cheia e branca, em resposta à finura do negociante, gargalhada vinda da profundeza daquele sono, e da profundeza daquela segurança de quem tem um corpo. Sua carne alva estava doce como a de uma lagosta, as pernas duma lagosta viva a se mexer devagar no ar. E aquela vontade de se sentir mal para aprofundar a doçura em bem ruim. E aquela maldadezita de quem tem um corpo.Palestrava, e ouvia com curiosidade o que ela mesma estava a responder ao negociante abastado que, em tão boa hora, os convidara e pagava-lhes o pasto. Ouvia intrigada e deslumbrada o que ela mesma estava a responder: o que dissesse nesse estado valeria para o futuro em augúrio — já agora ela não era lagosta, era um duro signo: escorpião. Pois que nascera em novembro.
Um holofote enquanto se dorme que percorre a madru­gada — tal era a sua embriaguez errando lenta pelas alturas.
Ao mesmo tempo, que sensibilidade! mas que sensibi­lidade! quando olhava o quadro tão bem pintado do res­taurante ficava logo com sensibilidade artística. Ninguém lhe tiraria cá das idéias que nascera mesmo para outras cousas. Ela sempre fora pelas obras d'arte.
Mas que sensibilidade! agora não apenas por causa do quadro de uvas e peras e peixe morto brilhando nas es­camas. Sua sensibilidade incomodava sem ser dolorosa, como uma unha quebrada. E se quisesse podia permitir-se o luxo de se tornar ainda mais sensível, ainda podia ir mais adiante: porque era protegida por uma situação, pro­tegida como toda a gente que atingiu uma posição na vida. Como uma pessoa a quem lhe impedem de ter a sua des­graça. Ai que infeliz que sou, minha mãe. Se quisesse podia deitar ainda mais vinho no copo e, protegida pela posição que alcançara na vida, emborrachar-se ainda mais, con­tanto que não perdesse o brio. E assim, mais emborracha­da ainda, percorria os olhos pelo restaurante, e que despre­zo pelas pessoas secas do restaurante, nenhum homem que fosse homem a valer, que fosse triste mesmo. Que despre­zo pelas pessoas secas do restaurante, enquanto ela esta­va grossa e pesada, generosa a mais não poder. E tudo no restaurante tão distante um do outro como se jamais um pudesse falar com o outro. Cada um por si, e lá Deus por toda a gente.
Seus olhos de novo fitaram aquela rapariga que, já d'en­trada, lhe fizera subir a mostarda ao nariz. Logo d'entrada percebera-a sentada a uma mesa com seu homem, toda cheia dos chapéus e d'ornatos, loira como um escudo falso, toda santarrona e fina — que rico chapéu que tinha! — vai ver que nem casada era, e a ostentar aquele ar de santa. E com seu rico chapéu bem posto. Pois que bem lhe aproveitasse a beatice! e que se não lhe entornasse a fidalguia na sopa! As mais santazitas eram as que mais cheias estavam de patifa­ria. E o criado de mesa, o grande parvo, a servi-la cheio das atenções, o finório: e o homem amarelo que a acompanhava a fazer vistas grossas. E a santarrona toda vaidosa de seu chapéu, toda modesta de sua cinturita fina, vai ver que não era capaz de parir-lhe, ao seu homem, um filho. Ai que não tinha nada a ver com isso, a bem dizer: mas já d'entrada crescera-lhe a vontade d'ir e d'encher-lhe, à cara de santa loira da rapariga, uns bons sopapos, a fidalguita de chapéu. Que nem roliça era, era chata de peito. E vai ver que, com todos os seus chapéus, não passava duma vendeira d'horta­liça a se fazer passar por grande dama.
Oh, como estava humilhada por ter vindo à tasca sem chapéu, a cabeça agora parecia-lhe nua. E a outra com seus ares de senhora, a fingir de delicada. Bem sei o que te falta, fidalguita, e ao teu homem amarelo! E se pensas que t'invejo e ao teu peito chato, fica a saber que me ralo, que bem me ralo de teus chapéus. A patifas sem brio como tu, a se faze­rem de rogadas, eu lhas encho de sopapos.
Na sua sagrada cólera, estendeu com dificuldade a mão e tomou um palito.
Mas finalmente a dificuldade de chegar em casa desapareceu: remexia-se agora dentro da realidade familiar de seu quarto, agora sentada no bordo de sua cama com a chinela a se balançar no pé.
E, como entrefechara os olhos toldados, tudo ficou de carne, o pé da cama de carne, a janela de carne, na cadeira o fato de carne que o marido jogara, e tudo quase doía. E ela cada vez maior, vacilante, túmida, gigantesca. Se conse­guisse chegar mais perto de si mesma, ver-se-ia inda maior. Cada braço seu poderia ser percorrido por uma pessoa, na ignorância de que se tratava de um braço, e em cada olho podia-se-lhe mergulhar dentro e nadar sem saber que era um olho. E ao redor tudo a doer um pouco. As coisas feitas de carne com nevralgia. Fora o friozito que a tomara ao sair da casa de pasto.
Estava sentada à cama, conformada, cética.
E isso ainda não era nada, só Deus sabia: ela sabia muito bem que isso inda não era nada. Que nesse momento lhe estavam a acontecer cousas que só mais tarde iriam a doer mesmo e a valer: quando ela voltasse ao seu tamanho comum, o corpo anestesiado estaria a acordar latejando e ela iria a pagar pelas comilanças e vinhos.
Então, já que isso terminaria mesmo por acontecer, tanto se me faz abrir agora mesmo os olhos, o que fez, e tudo ficou menor e mais nítido, embora sem nenhuma dor. Tudo, no fundo, estava igual, só que menor e familiar. Esta­va sentada bem tesa na sua cama, o estômago tão cheio, absorta, resignada, com a delicadeza de quem espera sentado que outro acorde. "Empanturras-te e eu que pague o pato", disse-se melancólica, a olhar os deditos brancos do pé. Olha­va ao redor, paciente, obediente. Ai, palavras, palavras, obje­tos do quarto alinhados em ordem de palavras, a formarem aquelas frases turvas e maçantes que quem souber ler, lera.Aborrecimento, aborrecimento, ai que chatura. Que maça­da. Enfim, ai de mim, seja lá o que Deus bem quiser. Que é que se havia de fazer. Ai, é uma tal cousa que se me dá que nem bem sei dizer. Enfim, seja lá bem o que Deus quiser. E dizer que se divertira tanto esta noite! e dizer que fora tão bom, e a gosto seu o restaurante, ela sentada fina à mesa. Mesa! gritou-lhe o mundo. Mas ela nem sequer a responder-lhe, a alçar os ombros com um muxoxo amuado, importunada, que não me venhas a maçar com carinhos; desiludida, resignada, empanturrada, casada, contente, a vaga náusea.
Foi nesse instante que ficou surda: faltou-lhe um sen­tido. Enviou à orelha uma tapona de mão espalmada, o que só fez entornar mais o caldo: pois encheu-se-lhe o ouvi­do de um rumor de elevador, a vida de repente sonora e aumentada nos menores movimentos. Das duas, uma: estava surda ou a ouvir demais — reagiu a essa nova solicitação com uma sensação maliciosa e incômoda, com um suspiro de saciedade conformada. Pros raios que os partam, disse suave, aniquilada.
"E quando no restaurante...", lembrou-se de repente. Quando estivera no restaurante o protetor do marido en­costara ao seu pé um pé embaixo da mesa, e por cima da mesa a cara dele. Porque calhara ou de propósito? O mafar­rico. Uma pessoa, a falar verdade, que era lá bem interes­sante. Alçou os ombros.
E quando no seu decote redondo — em plena Praça Tiradentes!, pensou ela a abanar a cabeça incrédula — a mosca se lhe pousara na pele nua? Ai que malícia.
Havia certas cousas boas porque eram quase nausean­tes: o ruído como de elevador no sangue, enquanto o ho­mem roncava ao lado, os filhos gorditos empilhados no outro quarto a dormirem, os desgraçadinhos. Ai que cousa que se me dá! pensou desesperada. Teria comido demais? ai que cousa que se me dá, minha santa mãe!
Era a tristeza.
Os dedos do pé a brincarem com a chinela. O chão lá não muito limpo. Que relaxada e preguiçosa que me saíste. Amanhã não, porque não estaria lá muito bem das pernas. Mas depois de amanhã aquela sua casa havia de ver: dar-lhe-ia um esfregaço com água e sabão que se lhe arrancariam as sujidades todas! a casa havia de ver! ameaçou ela colérica. Ai que se sentia tão bem, tão áspera, como se ainda estivesse a ter leite nas mamas, tão forte. Quando o amigo do marido a viu tão bonita e gorda ficou logo com respeito por ela. E quando ela ficava a se envergonhar não sabia aonde havia de fitar os olhos. Ai que tristeza. Que é que se há de fazer. Sentada no bordo da cama, a pestanejar resignada. Que bem que se via a lua nessas noites de verão. Inclinou-se um pouquito, desinteressada, resignada. A lua. Que bem que se via. A lua alta e amarela a deslizar pelo céu, a coitadita. A deslizar, a deslizar... Alta, alta. A lua. Então a grosseria ex­plodiu-lhe em súbito amor: cadela, disse a rir.