O Homem que Apareceu (A Via Crucis do Corpo)

sábado, outubro 23, 2010

Era sábado de tarde, por volta das seis horas. Quase sete. Desci e fui comprar coca-cola e cigarros. Atravessei a rua e dirigi-me ao botequim do português Manuel.
Enquanto eu esperava que me atendessem, um homem tocando uma pequena gaita se aproximou, olhou-me, tocou uma musiquinha e falou meu nome. Disse que me conhecera na Cultura Inglesa, onde só estudei na verdade dois ou três meses. Ele me disse:
— Não tenha medo de mim. Respondi:
— Não estou com medo. Qual é o seu nome?
Ele respondeu com um sorriso triste, em inglês: o que importa um nome?
Disse a seu Manuel:
— Aqui só é superior a mim essa mulher porque ela escreve e eu não.
Seu Manuel nem piscou. E o homem estava completamente bêbedo. Apanhei as minhas compras e ia embora quando ele disse:
— Posso ter a honra de segurar a garrafa e o pacote de cigarros?
Entreguei minhas compras para ele. Na porta do meu edifício, peguei a coca-cola e os cigarros. Ele parado diante de mim. Então, achando seu rosto muito familiar, tornei a perguntar-lhe o nome.
— Sou Cláudio.
— Cláudio de quê?
— Ora essa, de que o quê? Eu me chamava Cláudio Brito…
— Cláudio! gritei eu. Oh, meu Deus, por favor suba comigo e venha para a
minha casa!
— Que andar é?
Eu disse o número do apartamento e o andar. Ele disse que ia pagar a conta no botequim e que depois subia.
Em casa estava uma amiga. Contei-lhe o que me acontecera, disse-lhe: ele é capaz de não vir por vergonha.
Minha amiga disse: ele não vem, bêbedo esquece número de apartamento. E, se vier, não sairá mais daqui. Me avise para eu ir para o quarto e deixar vocês dois sozinhos.
Esperei — e nada. Estava impressionada pela derrota de Cláudio Brito.
Desanimei e mudei de roupa.
Então tocaram a campainha. Perguntei através da porta fechada quem era. Ele disse: Cláudio. Eu disse: você espere aí sentado no banco do vestíbulo que eu abro já.
Troquei de roupa. Ele era um bom poeta, Cláudio. Por onde andara esse tempo todo?
Entrou e foi logo brincando com o meu cachorro, dizendo que só os bichos o entendiam. Perguntei-lhe se queria café. Ele disse: só bebo álcool, há três dias que estou bebendo. Eu menti: disse-lhe que infelizmente não tinha nenhum álcool em casa.
E insisti no café. Ele me olhou sério e disse:
— Não mande em mim. Respondi:
— Não estou mandando, estou lhe pedindo para tomar café, tenho na copa uma garrafa térmica cheia de bom café. Ele disse que gostava de café forte. Eu lhe trouxe uma xícara de chá cheia de café, com pouco açúcar.
E ele nada de beber. E eu a insistir. Então ele bebeu o café, falando com o meu cachorro:
— Se você quebrar esta xícara vai apanhar de mim. Veja como ele me olha, ele me entende.
— Eu também entendo você.
— Você? a você só importa a literatura.
— Pois você está enganado. Filhos, famílias, amigos, vêm em primeiro lugar.
Olhou-me desconfiado, meio de lado. E perguntou:
— Você jura que a literatura não importa?
— Juro, respondi com a segurança que vem de íntima veracidade. E acrescentei:
qualquer gato, qualquer cachorro vale mais do que a literatura.
— Então, disse muito emocionado, aperte minha mão. Eu acredito em você.
— Você é casado?
— Umas mil vezes, já não me lembro mais.
— Você tem filhos?
— Tenho um garoto de cinco anos.
— Vou lhe dar mais café.
Trouxe-lhe a xícara de novo quase cheia. Ele bebeu aos poucos. Disse:
— Você é uma mulher estranha.
— Não sou não, respondi, sou muito simples, nada sofisticada.
Ele me contou uma história em que entrava um tal de Francisquinho, que não entendi bem quem era. Perguntei-lhe:
— Em que é que você trabalha?
— Não trabalho. Sou aposentado como alcoólatra e doente mental.
— Você não tem nada de doente mental. Só que bebe mais do que devia.
Ele me contou que tinha feito a guerra do Vietnã. E que fora durante dois anos marinheiro. Que se dava muito bem com o mar. E seus olhos se encheram de lágrimas.
Eu disse:
— Seja homem e chore, chore quanto quiser; tenha a grande coragem de chorar.
Você deve ter muito motivo para chorar.
— E eu aqui, bebendo café e chorando…
— Não importa, chore e faça de conta que eu não existo.
Ele chorou um pouco. Era um belo homem, com barba por fazer e abatidíssimo.
Via-se que havia fracassado. Como todos nós. Ele me perguntou se podia ler para mim um poema. Eu disse que queria ouvir. Ele abriu uma sacola, tirou de dentro um caderno grosso, pôs-se a rir, ao abrir as folhas.
Então leu o poema. Era simplesmente uma beleza. Misturava palavrões com as maiores delicadezas. Oh Cláudio — tinha eu vontade de gritar — nós todos somos fracassados, nós todos vamos morrer um dia! Quem? mas quem pode dizer com sinceridade que se realizou na vida? O sucesso é uma mentira.
Eu disse:
— É tão bonito o seu poema. Você tem outros?
— Tenho mais um, mas com certeza você está sendo importunada por mim.
Com certeza você quer que eu vá embora.
— Não quero que você vá embora por enquanto. Aviso-lhe quando for a hora de você sair. Porque eu durmo cedo.
Ele procurou o poema nas páginas do caderno, não encontrou, desistiu. Disse:
— Eu sei um bocado de coisas de você. E até conheci o seu ex-marido.
Fiquei quieta.
— Você é bonita. Fiquei quieta.
Eu estava muito triste. E sem saber o que fazer para ajudá-lo. É uma terrível impotência, essa de não saber como ajudar.
Ele me disse:
— Se eu um dia me suicidar…
— Você não vai se suicidar coisa alguma, interrompi-o. Porque é dever da gente viver. E viver pode ser bom. Acredite.
Quem só faltava chorar era eu.
Não havia nada que eu pudesse fazer.
Perguntei-lhe onde morava. Respondeu que tinha um apartamentozinho em Botafogo. Eu disse: vá para a sua casa e durma.
— Antes tenho que ver meu filho, ele está com febre.
— Como se chama seu filho?
Ele disse. Retruquei: tenho um filho com esse nome.
— Eu sei disso.
— Vou lhe dar um livro de história infantil que eu uma vez escrevi para os meus filhos. Leia alto para o seu.
Dei-lhe o livro, escrevi a dedicatória. Ele guardou o livro na sua espécie de maleta. E eu em desespero.
— Quer coca-cola?
— Você tem mania de oferecer café e coca-cola.
— É porque não tenho mais nada para oferecer.
A porta ele beijou minha mão. Acompanhei-o até o elevador, apertei o botão do térreo e lhe disse: vá com Deus, pelo amor de Deus.
O elevador desceu. Entrei em casa, fui fechando as luzes, avisei minha amiga que logo em seguida saiu, mudei de roupa, tomei um remédio para dormir — e me sentei na sala escura fumando um cigarro. Lembrei-me que Cláudio, há poucos minutos, tinha pedido o cigarro que eu estava fumando. Eu dei. Ele fumou. Ele também disse: um dia mato alguém.
— Não é verdade, eu não acredito.
Tinha me falado também num tiro de misericórdia que dera num cachorro que estava sofrendo. Perguntei-lhe se vira um filme chamado em inglês They do kill horses, don’t they? e que em português se chamara A noite dos desesperados. Ele tinha visto, sim.
Fiquei fumando. Meu cachorro no escuro me olhava.
Isso foi ontem, sábado. Hoje é domingo, 12 de maio, Dia das mães. Como é que posso ser mãe para este homem? pergunto-me e não há resposta.
Não há resposta para nada.
Fui me deitar. Eu tinha morrido.