Gertrudes Pede um Conselho

quarta-feira, fevereiro 11, 2009

[...]
“Libertar” era uma palavra imensa, cheia de mistérios e dores. Como fora amena há dias, quando se destinava a outro papel? Outro, qual? Tudo era confuso e só se exprimia bem na palavra “liberdade” e nos passos pesados e firmes, no rosto fechado que adotava. À noite não dormia até que os galos longínquos começassem a cantar. Não pensava, propriamente. Sonhava acordada. Imaginava um futuro em que, audaciosa e fria, conduziria uma multidão de homens e mulheres, cheios de fé quase a adorá-la. Depois, pelo meio da noite, deslizava para uma meia inconsciência, onde tudo era bom, a multidão já conduzida, uma ausência de aulas, um quarto só seu, muitos homens a amá-la. Acordava amarga, notando com alegria reprimida que não se interessava pelo bolo que as irmãs devoravam animalmente, com irritante despreocupação.
Vivia então os seus dias gloriosos. E chegava ao auge com algum pensamento que a exaltava e a mergulhava em misticismo ardente: “Entrar para um convento! Salvar os pobres, ser enfermeira!” Imaginava-se já vestindo o hábito negro, o rosto pálido, os olhos piedosos e humildes. As mãos, aquelas mãos implacavelmente coradas e largas, emergindo, brancas e finas, das longas mangas. Ou então, com a touca alva, olheiras cavadas pelas noites não dormidas. Entregando ao médico, silenciosa e rapidamente, os ferros de operar. Ele a miraria com admiração, simpatia mesmo, e quem sabe? Amor até.
Mas, impossível ser grande num ambiente como o seu. Interrompiam-na com as observações mais banais: “Já tomou banho, Tuda?” Ou, senão, o olhar das pessoas de casa. Um olhar simples, distraído, completamente alheio ao nobre fogo que ardia dentro dela. Quem poderia persistir, pensava acabrunhada, junto de tanta vulgaridade?
E, além disso, por que não “aconteciam coisas”? Tragédias, belas tragédias…
Até que descobriu a doutora. E antes de conhecê-la, já lhe pertencia. De noite mantinha longa conversas imaginárias com a desconhecida. De dia, escrevia-lhe cartas. Até que foi chamada: viam afinal que ela era alguém, uma extraordinária, uma incompreendida!
Até o dia marcado para a entrevista, Tuda não se sentiu. Viveu numa atmosfera de febre e de ansiedade. Uma aventura. Compreendem bem? Uma aventura.
Não tardaria a entrar no escritório. Vai ser assim: ela é alta, tem os cabelos curtos, olhos fortes, um busto grande. Um pouquinho gorda. Mas ao mesmo tempo parecida com Diana, a Caçadora, da sala de visitas.
Ela sorri. Eu fico séria.
- Boa tarde.
- Boa tarde, minha filha (não seria melhor: boa tarde, irmã? Não, não se usa).
- Vim aqui por excesso de audácia, confiando na bondade e compreensão da senhora. Tenho dezessete anos e acho que já posso começar a viver.
Duvidava que tivesse tanta coragem. E mesmo o que a doutora tinha, afinal, a ver com ela? Mas, não. Aconteceria alguma coisa. Dar-lhe-ia trabalho, por exemplo. Poderia mandá-la viajar para colher dados sobre… sobre a mortalidade infantil, suponhamos, ou sobre os salários dos homens do campo. Ou poderia dizer:
- Gertrudes, você terá um papel muito maior na vida. Você fará…
O quê? Afinal, o que é grande? Tudo acaba… Não sei, a doutora vai falar.
De repente… O rapazinho coçou a orelha e disse, o ar velho que as pessoas teimavam em emprestar aos fatos excitantes e novos:
- Pode entrar…
Tuda atravessou a sala, sem respirar. E encontrou-se diante da doutora.
Estava sentada junto à mesa, rodeada de livros e papeia. Uma estranha, séria, com uma vida própria, que Tuda não conhecia.
Fingiu arrumar a mesa.
- Então? – disse depois. – Uma menina chamada Gertrudes… – Riu. – Por que é que se lembrou de vir a mim, procurar trabalho? – iniciou, com o tato que lhe valera o lugar de conselheira na revista.
Miúda, cabelos pretos enrolados em dois cachos sobre a nuca. O batom pintando um pouco pra fora dos lábios, numa tentativa de sensualidade. O rosto calmo, as mãos irrequietas. Tuda sentiu vontade de fugir.
Há muitos anos saíra de casa.
A doutora falava, falava, a voz levemente rouca, o olhar vago. Sobre diversos assuntos. Os últimos filmes, as jovens modernas, sem orientação, más leituras, sei lá, muitas coisas. Tuda também falava. Deixara de palpitar e a sala, a doutora tomavam aos poucos uma disposição mais compreensível. Tuda contou alguns segredos, sem importância. Sua mãe, por exemplo, não gostava que ela saísse à noite, alegando sereno. Precisava operar a garganta e vivia resfriada. Mas o pai dizia que há males que vêm para o bem e que as amígdalas eram uma defesa o organismo. E também, o que a natureza criara tinha sua função.
A doutora brincava com o lápis.
- Bem, agora já conheço você mais ou menos. Na sua carta falou num apelido? Tudes, Tuda…
Tuda corou. Então a estranha falou-lhe das cartas. Não podia ouvir bem porque ficou tonta e o coração achou de lhe pulsar exatamente nos ouvidos. “Idade difícil… todos são… quando menos se espera…”
- Essa inquietação, tudo que você sente é mais ou menos normal, vai passar. Você é inteligente e vai compreender o que vou lhe explicar. A puberdade traz distúrbios e…
Não, doutora, que humilhação. Ela já era grande demais para essas coisas o que sentia era mais belo e mesmo…
- Isto vai passar. Você não precisa trabalhar, nem fazer nada de extraordinário. Se quiser – ia usar o velho “truc” e sorriu -, se quiser arranje um namorado. Então…
Ela era igual a Amélia, a Lídia, a todo o mundo, a todo o mundo!
A doutora ainda falava, Tuda continuava muda, obstinadamente muda. Uma nuvem tapou o sol e o escritório de repente sombrio e úmido. Daí a um instante o floco de poeiras recomeçou a brilhar e a mover-se.
E conselheira impacientou-se ligeiramente. Estava cansada. Trabalhara tanto…
Tuda pensava confusamente: vim perguntar o que faço de mim. Mas não sabia resumir seu estado nessa pergunta. Além disso, receava cometer uma excentricidade e ainda não se habituara consigo mesma.
[...]

O Lustre (trecho)

quarta-feira, fevereiro 11, 2009

Mudava de roupa serena e cuida­dosa. Metia-se com profundo amor-próprio na cama. Concentrava-se um instante até descobrir um cricri longínquo, nítido e frágil, o grilo brilhando. Seu próprio espírito se apoderara dela. Suspirava. Oh Deus, era estranho como não sentia nenhuma pressa. No fundo ela era aterrorizantemente quieta. Pensava de leve na manhã seguinte. Na cidade, mesmo que o silêncio fosse o ar mais próximo, atrás dele sempre vivia algum ruído. Acordava-se, ouvia-se aquele contínuo e suave machucar de papel que era o silêncio... percebia-se uma flautinha e um pequeno tambor soltos quem sabe onde no ar, soando longínquos, límpidos e bem dispostos— e sabia-se que na praça de um quartel soldados faziam exercícios ao sol. Mas agora era de noite, ela mal terminara de dar os últimos e ocos passos pela calçada em sombra. Submergia no cansaço, buscava-o. Tinha algo de flor o seu cansaço, um perfume alado e inconquistável de melão fresco, aquele êxtase de exaustão e vôo... a fraqueza confundia-se com a exaltação mais fina. Antes de cerrar os olhos lembrava numa última visão da escada colocada à terra, branca escura, branca escura, branca escura, escorrendo imóvel entre as paredes até a porta fechada. Fechada, escura, compacta, séria, lisa, grande, alta, intransponível — como era bom, como era feliz.

O Lustre (trecho)

domingo, fevereiro 08, 2009

Passava as manhãs sentada junto à mesa olhando os dedos, as unhas lisas e rosadas. Será que todo o mundo sabe o que eu sei? ocorria-lhe profundamente. Procurava distrair-se desenhando as linhas retas sem au­xílio de régua — mas onde estava o encanto do trabalho? sem poder precisar melhor parecia-lhe que falhava a todo o instante. Às vezes falava alto algumas palavras e enquanto se ouvia parecia-lhe numa estranheza inquieta e deliciosa que ela não era ela mesma e surpreendia-se num susto que era também mentira. E depois noutra estranheza fraca e embria­gada, ela era ela mesma. Dizia numa pequena voz aborrecida, balançando a cabeça; pois não estou contente, não estou nada contente. Ou entrava a viver numa exaltação íntima, numa pureza ardente cujo início era uma imperceptível falsidade. Sabia ainda fechar os olhos e cerrar-se numa força bruta. Entreabria então as pálpebras com delicadeza como deixando essa força escoar-se lentamente — e enxergava as coisas sob uma certa luz de crepúsculo dourado, flutuando num fulgor trêmulo, clareadas e finas; o ar entre elas era tenso e frio, os ruídos se aguçavam em agulhas velozes. Cansada, de súbito abria os olhos inteiros, deixava a força em liberdade — num estrondo mudo as coisas secavam cinzentas, duras e calmas, o mundo afinal. Ou ela renascia como quem estremece, um impulso de surpresa. Vestia-se com tanto cuidado como se fosse encontrar uma multi­dão esperando à porta. Saía à rua, andava lentamente pelo passeio mos­trando-se, os olhos atentos, a sensação de que fulgurava ardente, séria. Era um duro inseto, um escaravelho, voava em linhas súbitas, batia de encontro às vidraças cantando com estridência. E realmente, apesar de sua aparência modesta e de suas faces pálidas, algumas pessoas olhavam-na com curiosidade, muitas vezes com mais de um momento de atenção. Ela se animava com secreta brutalidade; de repente era de tal modo a única verdade que as pessoas se preparavam, se enfeitavam, tomavam a atitude da roupa, saíam para a rua, entrecruzavam-se luminosas e se apagavam de novo em casa — ela compreendia com segurança e ardor a cidade. Orgulhava-se de não ser Esmeralda. Um instante ou outro era olhada como se fosse ter um grande destino. Subitamente a um olhar parecia-lhe: este homem, sabe alguma coisa sobre mim! mas que lhe im­portava afinal? para algo existir não precisava ser sabido — era essa a sensação, as sobrancelhas franzidas e então uma rápida calma seguia-se hesitante após aquilo que não chegara a ser um pensamento. Voltava para casa cansada como se deixasse a festa onde fora coroada. Passava dias lendo: lia como uma prostituta pintada, cheia de avidez e de um tédio que ardiam sua alma e ressecavam-na rapidamente. O que mais a inquietava então era poder dormir tão cedo. Desde o momento de acor­dar punha-se a pensar no instante de dormir. O modo das horas correrem parecia ter se transformado irremediavelmente e ela vivia entre elas em­purrada pelo dever que sugeriam. Ninguém a impedia de ir para a cama às sete horas da noite. Só não dispensava o jantar porque então poderia às cinco da tarde. Combinava-se toda com cálculo e cuidado e depois permanecia à espreita respirando. De tarde dirigira-se de bonde a uma rua bonita e calma e encontrara com horror a pior velha de Brejo Alto, há alguns meses na cidade com a irmã doente. O bonde corria e ela nada podia espiar. Mal a velha começou a falar, no entanto, em vez da irritação que esperava sentir qualquer coisa reduziu-a simplesmente a si mesma num rápido desfalecimento de desejos. Com humildade conversou com a velha, fácil sobre si, quase leviana, trocando mesmo impressões sobre coisas de morar e comprar, modos censuráveis de levar a vida. Inexplicável já então achegava-se à mulher como se esta fosse uma ami­guinha, mostrava-se subitamente feminina e ocupada sentindo sem des­prazer nas suas pernas descobertas o roçar daquela saia larga; procurava obscuramente com volúpia conseguir sua simpatia e piedade. A velha re­cuava o rosto magro, de algum modo ofendida e dominava porque mal conseguira abrir a boca e falar, ela que sempre se inclinara sobre os outros com os olhos apertados, asfixiando-os de notícias.

Janeiro - Como Nasceram as Estrelas

sexta-feira, fevereiro 06, 2009

Pois é, todo mundo pensa que sempre houve no mundo estrelas pisca-pisca. Mas é erro. Antes os índios olhavam de noite para o céu escuro — e bem escuro estava esse céu. Um negror. Vou contar a história singela do nascimento das estrelas. Era uma vez, no mês de janeiro, muitos índios. E ativos: caçavam, pescavam, guerreavam. Mas nas tabas não faziam coisa alguma: deitavam-se nas redes e dormiam roncando. E a comida? Só as mulheres cuidavam do preparo dela para terem todos o que comer.
Uma vez elas notaram que faltava milho no cesto para moer. Que fizeram as valentes mulheres? O seguinte: sem medo enfurnaram-se nas matas, sob um gostoso sol amarelo. As árvores rebrilhavam verdes e embaixo delas havia sombra e água fresca. Quando saíam de debaixo das copas encontravam o calor, bebiam no reino das águas dos riachos buliçosos. Mas sempre procurando milho porque a fome era daquelas que as faziam comer folhas de árvores. Mas só encontravam espigazinhas murchas e sem graça. — Vamos voltar e trazer conosco uns curumins.
(Assim chamavam os índios as crianças.) Curumim dá sorte.
E deu mesmo. Os garotos pareciam adivinhar as coisas: foram retinho em frente e numa clareira da floresta — eis um milharal viçoso crescendo alto. As índias maravilhadas disseram: toca a colher tanta espiga. Mas os gatinhos também colheram muitas e fugiram das mães voltando à taba e pedindo à avó que lhes fizesse um bolo de milho. A avó assim fez e os curumins se encheram de bolo que logo se acabou. Só então tiveram medo das mães que reclamariam por eles comerem tanto. Podiam esconder numa caverna a avó e o papagaio porque os dois contariam tudo. Mas — e se as mães dessem falta da avó e do papagaio tagarela? Aí então chamaram os colibris para que amarrassem um cipó no topo do céu. Quando as índias voltaram ficaram assustadas vendo os filhos subindo pelo ar. Resolveram, essas mães nervosas, subir atrás dos meninos e cortar o cipó embaixo deles.
Aconteceu uma coisa que só acontece quando a gente acredita: as mães caíram no chão, transformando-se em onças. Quanto aos curumins, como já não podiam voltar para a terra, ficaram no céu até hoje, transformados em gordas estrelas brilhantes.
Mas, quanto a mim, tenho a lhes dizer que as estrelas são mais do que curumins. Estrelas são os olhos de Deus vigiando para que corra tudo bem. Para sempre.
E, como se sabe, “sempre” não acaba nunca.

Saudade

quarta-feira, fevereiro 04, 2009

Saudade é um pouco como fome. Só passa quando se come a
presença. Mas às vezes a saudade é tão profunda que a presença é pouco:
quer-se absorver a outra pessoa toda. Essa vontade de um ser o outro para
uma unificação inteira é um dos sentimentos mais urgentes que se tem na
vida.

O Lustre (trecho)

segunda-feira, fevereiro 02, 2009

— Eu acho que no fundo todos os homens e mulheres vivem dizen­do: não quero pensar nisso. E pensando que não pensaram, hem? que acha? — terminara rindo muito com sagacidade, apertando os olhos. Ela também ria bastante balançando a cabeça várias vezes em assentimento, engolindo o café cheia de pasmo pela sua perspicácia. E não era verdade? ninguém podia suportar muito o que sentia. E agora a Bíblia...
— Pois sim, pode-se ler, dissera friamente. Ele olhou-a e compreen­deram-se com cuidado, evitando qualquer clareza.
— Mas beba o seu café antes que esfrie! gritou ela alto com intensida­de. Ele fitou-a hesitando um momento com esperança e de repente ale­grou-se, esfregou as mãos rápido:
— É verdade, é verdade!
Na noite seguinte bateu à porta, ela atendeu, viu-o com a pequena Bíblia na mão; de raiva e pudor ela recolheu-se, o corpo rígido, o rosto indiferente. Ele não a olhava. Entrou até o meio da sala, parou indeciso; ela permanecia em pé junto da porta como esperando que ele fosse embo­ra. Fazendo um esforço sobre si mesma disse depois de alguns instantes:
— Quer o café antes ou depois? Ele respondeu apressado:
— A senhora é quem manda...
Ela fez café, tomaram falando de algumas coisas sem importância entre longos momentos de silêncio cheio de suspeita e prudência. Afinal terminaram, ele disse com simplicidade:
— Eu leio ou a senhora?
— O senhor.
— Que pedaço?
— Qualquer serve.
— Não tem preferência?
— Eu conheço pouco.
— Está bem.

O Lustre (trecho)

segunda-feira, fevereiro 02, 2009

Esses eram momentos em que ela sofria mas amava seu sofrimento. Atravessava o dia, a necessidade de cumprir os pequenos deveres, a arrumação dos quartos, a espera, a realidade e as ruas — entre séria e ansiosa, perscrutando-se e ao espaço como se já estivesse misteriosamente ligada a Vicente através da distância. Porque mal acordada sabia que hoje era dia de vê-lo. Talvez não fosse tão subitamente — ela se proporcionava a pequena surpresa para dar-se felicidade mesmo à custa de conservar fechada a consciência e lá encerrada a obscura e estimulante mentira. As primeiras horas queimavam-se difíceis e lentas mas perto das dez da manhã limpa o tempo se precipitava alegre e fugitivo, claro com o dia e num sorriso ela se assistia movendo-se dagora em diante fácil e mansa. Quase não almoçava, era difícil cozinhar só para si e mesmo hoje ela jantaria bem com Vicente — comia uma fruta para contentar a mãe distante. E assim preparava-se para viver-diariamente, disposta a transformar-se no que não era para ficar bem com coisas ao redor. Se Vicente amanhecera informe e áspero ela se conservaria em espera, as mãos delicadas, não se manifestando em nenhum sentido para que ele pudesse mudar sozinho, livre de sua existência. Se ele se mantinha calado e nervoso ela buscava ser larga e apesar de não consegui-lo inteiramente — nem seus olhos um pouco absortos nem seu corpo de gestos pequenos ajudavam essa atitude — Vicente notava seu esforço em apaziguá-lo; e isso tantas vezes bastara para ele sorrir e melhorar com benevolência.