Concurso Cultural: 1° lugar.

sábado, janeiro 29, 2011

A Descoberta de uma alma.
Bruna Mendes Roza Rodrigues
Blog: http://bubuhdulce.blogspot.com

Nunca soube realmente o que eu era ou o que eu deveria ser. Nunca soube sorrir na hora errada ou afogar-me em lágrimas na hora certa. Nunca soube decidir o quão seria forte, ou não. Porém, desde que soube o que minha alma pensa, passei da ilusão para a verdadeira solidão. Descobrir o verdadeiro valor de um sorriso talvez se encontre na mesma intensidade de descobrir o sopro da palavra, já que lá do fundo vem o verdadeiro reflexo do que encontro em minha alma. Nisso, Clarice me inspira. Clarice consegue reviver cada pedaço da minha carne, do meu olhar ao redor de um mundo que nada vale, que dificilmente escolhe-me. Sua influência transgride o nada para o tudo, o vazio para o completo. Seu olhar sobre o mundo passa a mim a clareza do que posso ou não encontrar em uma vida que ainda não encontrei.
Clarice leva-me para um interior no qual ainda não havia encontrado. Um interior nulo e completo de enigmas irracionais que não posso descobrir. Leva-me para uma possível vida fora da vida. Leva-me para outro mundo. Mundo no qual encontrei ao entrar dentro de mim, depois de tentar decifrar seu interior. Sua influência foi tamanha que hoje, escrevo de uma maneira prestes a libertar tudo o que sempre tentei, mas que com as dificuldades não fui capaz de conseguir. Clarice entrou em minha alma e em um pedaço de minha existência. Como se fosse um diário de minhas palavras, descobri em seus feitos uma outra sensação. Sensações do completo e do vazio, do ser e não ser, do ter encontrado o que talvez não quisesse ter sido encontrado.
Clarice reavivou com seu sopro de virtudes e pensamentos, uma outra parte de meu interior. Descobri que posso ser e posso sentir. Descobri que uma simples e modesta palavra muda um interior perdido. Descobri a luz em cada palavra e em cada pedaço de um olhar diante da vida.
Mostrou a mim que cada palavra tem um significado tão forte capaz de matar e reviver, capaz de reacender o fogo dos olhos de quem um dia havia perdido. Foquei-me em sua liberdade individual de alcançar suas plenitudes sem que o meio pudesse ser capaz de interferir, pois para mergulhar em seu mundo, é preciso ter consciência de seu próprio psicológico. Suas palavras são tão intensas capaz de transformar toda uma vida, por isso conseguiu mexer com nossos mais secretos medos e desejos. Transformou meus mais secretos medos em próprios desejos.
Sinto-me como se estivesse em cada livro e em cada espaço de suas linhas, como se me transportasse a outro mundo, o mundo de Clarice, e em cada mudança de página, preciso viajar dentro de meus suspiros, para conseguir voltar a ler. Por isso para ler Clarice, é preciso ter maturidade sobre sua alma, é preciso ser tocado por cada linha e por cada palavra. Lispector me instigou a procurar outro mundo ao escrever, a encontrar outra luz que ainda não havia percebido. Abriu em mim, o recomeço de uma nova felicidade.

Concurso Cultural: 2° lugar.

sábado, janeiro 29, 2011

Clarice em minha vida
Nara França
Blog: http://ironia-cronica.blogspot.com

Clarice Lispector me foi apresentada, quando eu tinha dez anos de idade, por uma professora, que disse achar que eu fosse me identificar com a escritora. “Perto do Coração Selvagem” foi o primeiro livro de Clarice a me tirar do chão, me jogar no abismo, de olhos fechados, e me fazer voar... Até hoje, leio e releio Clarice, aos sobressaltos – alma inquieta, ferida constantemente aberta.
Ao saber da existência de Clarice, passei a saber cadinho mais da minha própria existência – o olhar dela sobre a vida não me deu, não me dá, respostas, mas sim, mais e mais indagações. E, até hoje, mantenho esses encontros e reencontros com ela – lendo e relendo Clarice Lispector, com a sensação de ter nas mãos – entre as páginas de cada livro dela – o próprio coração da escritora, que ainda pulsa, e causa êxtase... A vida de Clarice continua permeando a minha vida.
A cada releitura, Clarice me fala tanta coisa. Mesmo quando ela silencia, nas páginas fechadas dos livros, ainda assim, ouço Clarice. Chaya bat Pinkhas (Chaya filha de Pinkhas) me conta que sempre quis pertencer. Cedo, muito cedo, perdeu o chão – foi levada embora pela família dela, na primeira infância, do lugar onde nasceu, e nunca mais voltou. Depois, perdeu, pela primeira vez, a identidade – teve o nome trocado, tão logo a família chegou ao Brasil. Aos nove anos de idade, perdeu a mãe. Mais tarde, outra perda dolorosa à jovem Clarice: a morte do pai dela. O casamento com um diplomata fez Clarice perder o caloroso contato com familiares e amigos, que ficaram no Brasil, enquanto ela dizia estar dando vida à “Clarice Gurgel Valente”. As perdas continuaram fazendo parte da vida da escritora, que confessou ter perdido até a vontade de viver.
Dizem que Clarice Lispector morreu em nove de dezembro de 1977 – talvez, fechou o ciclo da própria vida, já que nasceu em dez de dezembro de 1920. Mais de trinta anos passados, e, na alma de muita gente, feito na minha, Clarice ainda ecoa palavras e textos que ela mesma admitia não compreender – ela, que se dizia “tão simples, como Bach”.

Concurso Cultural: 3° lugar.

sábado, janeiro 29, 2011

Clarice Lispector: a diva na vida de uma medíocre mortal
Lindiane Cardoso
Blog: http://asletras-eeu.blogspot.com

Não me recordo da primeira vez que encontrei Clarice. Acho que foi no Magistério. Mas isso, não tem tanta importância.
O que realmente importa é que seu nome me chegou como fruto do acaso, sem esperar, sem desejar. Ouvi, gostei da sonoridade, da força e beleza enraizada no sobrenome Lispector. Mais tarde descobri o seu significado e pensei: ela é uma lis no peito, uma flor que nós carregamos no lado inverso ao direito, naquele canto onde retumba o órgão encarregado de sentir o amor.
Eu amo Clarice. Percebo isso todas as vezes que escuto seu nome: me arrepio; quando alguém diz que não gosta dos seus escritos, da sua “loucura” e complexidade: me armo de argumentos e defendo-a; sempre que escuto um elogio direcionado a seu respeito: fico contente e me gabo de conhecê-la; quando leio suas palavras: vejo-a diante de mim, viva, falando comigo com seus “rr” enrolados, problema de dicção; quando toco um dos exemplares escritos por ela: sinto sua presença como se estivesse materializada ali. CLARICE LISPECTOR.
Ouvi. Gostei. Vi. Admirei. Li. Amei. Conheço-a a cada dia. Vivo me surpreendendo. Afinal, viver é o que faço de melhor.
Muitas pessoas devem se espelhar em Clarice, outras até se consideram parecidas com ela. Eu me vejo nela.
Não sou parecida, não tenho características comuns, não escrevo como ela. Ver-me nela é diferente de ser parecida com ela. É diferente de me espelhar nela. Ser parecida significa escrever com os sentimentos elevados ao extremo, com profundidade, com a alma. Espelhar significa desejar ser como ela: uma mulher introspectiva que nasceu “para amar os outros, criar os filhos e escrever”, alguém que amou até morrer: os filhos e a escrita.
Na verdade, ver-me em Clarice é, sentir que suas palavras são as palavras que guardo em mim com vontade de dizer, de escrever; suas atitudes impulsivas são as atitudes que eu peno a cumprir, mas que tanto desejo; sua capacidade de amar sem medida é o amor que tenho e é guardado para amar sem culpa, por completo.
Clarice Lispector é como uma estatueta que não vejo, e sim sinto. E no sentir, ela se materializa e vive em mim.

Resultado - Concurso Cultural Clarice Lispector: de escrita e vida

sábado, janeiro 29, 2011

Vencedores:

1° lugar - Título: "A Descoberta de uma alma".
Autora: Bruna Mendes Roza Rodrigues.

2° lugar - Título: "Clarice em minha vida".
Autora: Nara França.

3° lugar - Título: "Clarice Lispector: a diva na vida de uma medíocre mortal".
Autora: Lindiane Cardoso.

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Resultado – Seu link no blog

sábado, janeiro 15, 2011

Caros Clariceanos,

O Blog agradece a todos pelo envio dos links. Todos eles foram visitados e revisitados.

Resultado final:


http://nas-entrelinhaas.blogspot.com [visite]
http://aartedaliteratura.blogspot.com [visite]
http://www.obatomdeclarice.blogspot.com [visite]
http://atorremagica.blogspot.com [visite]

Blog Clarice Lispector.

Por Enquanto (A Via Crucis do Corpo)

quarta-feira, janeiro 12, 2011

Como ele não tinha nada o que fazer, foi fazer pipi. E depois ficou a zero mesmo. Viver tem dessas coisas: de vez em quando se fica a zero. E tudo isso é por enquanto. Enquanto se vive.
Hoje me telefonou uma moça chorando, dizendo que seu pai morrera. E assim: sem mais nem menos.
Um dos meus filhos está fora do Brasil, o outro veio almoçar comigo. A carne estava tão dura que mal se podia mastigar. Mas bebemos um vinho rosé gelado. E conversamos. Eu tinha pedido para ele não sucumbir à imposição do comércio que explora o dia das mães. Ele fez o que pedi: não me deu nada. Ou melhor me deu tudo: a sua presença.
Trabalhei o dia inteiro, são dez para as seis. O telefone não toca. Estou sozinha.
Sozinha no mundo e no espaço. E quando telefono, o telefone chama e ninguém atende. Ou dizem: está dormindo. A questão é saber agüentar. Pois a coisa é assim mesmo. Às vezes não se tem nada a fazer e então se faz pipi.
Mas se Deus nos fez assim, que assim sejamos. De mãos abanando. Sem assunto. Sexta-feira de noite fui a uma festa, eu nem sabia que era o aniversário do meu amigo, sua mulher não me dissera.
Tinha muita gente. Notei que muitas pessoas se sentiam pouco à vontade.
Que faço? telefono a mim mesma? Vai dar um triste sinal de ocupado, eu sei, uma vez já liguei distraída para o meu próprio número. Como acordo quem está dormindo? como chamo quem eu quero chamar? o que fazer? Nada: porque é domingo e até Deus descansou. Mas eu trabalhei sozinha o dia inteiro.
Mas agora quem estava dormindo já acordou e vem me ver às oito horas. São seis e cinco.
Estamos no chamado "veranico de maio": grande calor. Meus dedos doem de tanto eu bater à máquina. Com a ponta dos dedos não se brinca. É pela ponta dos dedos que se recebem os fluidos.
Eu devia ter me oferecido para ir ao enterro do pai da moça? A morte seria hoje demais para mim. Já sei o que vou fazer: vou comer. Depois eu volto. Fui à cozinha, a cozinheira por acaso não está de folga e vai esquentar comida para mim. Minha cozinheira é enorme de gorda: pesa noventa quilos. Noventa quilos de insegurança, noventa quilos de medo. Tenho vontade de beijar seu rosto preto e liso mas ela não entenderia. Voltei à máquina enquanto ela esquentava a comida. Descobri que estou morrendo de fome. Mal posso esperar que ela me chame.
Ah, já sei o que vou fazer: vou mudar de roupa. Depois eu como, e depois volto à máquina. Até já.
Já comi. Estava ótimo. Tomei um pouco de rosé. Agora vou tomar um café. E refrigerar a sala: no Brasil ar refrigerado não é um luxo, é uma necessidade. Sobretudo para pessoa que, como eu, sofre demais com o calor. São seis e meia. Liguei meu rádio de pilha. Para a Ministério de Educação. Mas que música triste! não é preciso ser triste para ser bem-educado. Vou convidar Chico Buarque, Tom Jobim e Caetano Veloso e que cada um traga a sua viola. Quero alegria, a melancolia me mata aos poucos.
Quando a gente começa a se perguntar: para quê? então as coisas não vão bem. E eu estou me perguntando para quê. Mas bem sei que é apenas "por enquanto". São vinte para as sete. E para que é que são vinte para as sete? Nesse intervalo dei um telefonema e, para o meu gáudio, já são dez para as sete. Nunca na vida eu disse essa coisa de "para o meu gáudio". É muito esquisito. De vez em quando eu fico meio machadiana. Por falar em Machado de Assis, estou com saudade dele. Parece mentira mas não tenho nenhum livro dele em minha estante. José de Alencar, eu nem me lembro se li alguma vez.
Estou com saudade. Saudade de meus filhos, sim, carne de minha carne. Carne fraca e eu não li todos os livros. La chair est triste. Mas a gente fuma e melhora logo. São cinco para as sete. Se me descuido, morro. É muito fácil. É uma questão do relógio parar. Faltam três minutos para as sete. Ligo ou não ligo a televisão? Mas é que é tão chato ver televisão sozinha. Mas finalmente resolvi e vou ligar a televisão. A gente morre às vezes.

Obras disponíveis no blog

domingo, janeiro 09, 2011

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Clique nos títulos para ler trechos:

  • Minhas Queridas (2007)

  • Como Nasceram as Estrelas (Infantil 1987)

  • A Descoberta do Mundo (Crônicas 1984)

  • A Bela e a Fera (Contos 1979)

  • Quase de Verdade (Infantil 1978)

  • Um Sopro de Vida (Romance 1978)

  • Para Não Esquecer (Crônicas 1978)

  • A Hora da Estrela (Romance 1977)

  • A Vida Íntima de Laura (Infantil 1974)

  • A Via Crucis do Corpo (Contos 1974)

  • Onde Estivestes de Noite (Contos 1974)

  • Água Viva (Romance 1973)

  • Felicidade Clandestina (Contos 1971)

  • Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres (Romance 1969)

  • A Mulher que Matou os Peixes (Infantil 1968)

  • O Mistério do Coelho Pensante (Infantil 1967)

  • A Paixão Segundo G.H. (Romance 1964)

  • A Legião Estrangeira (Contos 1964)

  • A Maçã no Escuro (Romance 1961)

  • Laços de Família (Contos 1960)

  • A Cidade Sitiada (Romance 1949)

  • O Lustre (Romance 1946)

  • Perto do Coração Selvagem (Romance 1943)


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    Seu link no Blog Clarice Lispector

    quinta-feira, janeiro 06, 2011

    Na barra lateral do Blog Clarice Lispector há um espaço, denominado “visite”, destinado a divulgar blogs e que é preenchida por dez links.
    Envie o link de seu espaço como comentário nessa postagem para que concorra a uma das quatro vagas disponíveis.

    Critério de escolha:
    - Relação do conteúdo do seu blog com o do Blog Clarice Lispector.

    Resultado:
    - Dia 15 de janeiro de 2011.

    Boa sorte!

    Participe do Concurso Cultural “Clarice Lispector: de escrita e vida”.

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    Ele me Bebeu (A Via Crucis do Corpo)

    domingo, janeiro 02, 2011

    É. Aconteceu mesmo.
    Serjoca era maquilador de mulheres. Mas não queria nada com mulheres.
    Queria homens.
    E maquilava Aurélia Nascimento. Aurélia era bonita e, maquilada, ficava deslumbrante. Era loura, usava peruca e cílios postiços. Ficaram amigos. Saíam juntos, essa coisa de ir jantar em boates.
    Todas as vezes que Aurélia queria ficar linda ligava para Serjoca. Serjoca também era bonito. Era magro e alto.
    E assim corriam as coisas. Um telefonema e marcavam encontro. Ela se vestia bem, era caprichada. Usava lentes de contato. E seios postiços. Mas os seus mesmos eram lindos, pontudos. Só usava os postiços porque tinha pouco busto. Sua boca era um botão de vermelha rosa. E os dentes grandes, brancos. Um dia, às seis horas da tarde, na hora do pior trânsito, Aurélia e Serjoca estavam em pé junto do Copacabana Palace e esperavam inutilmente um táxi. Serjoca, de cansaço, encostara-se numa árvore. Aurélia impaciente. Sugeriu que dessem ao porteiro dez cruzeiros para que ele lhes arranjasse uma condução. Serjoca negou: era
    duro para soltar dinheiro.
    Eram quase sete horas. Escurecia. O que fazer?
    Perto deles estava Affonso Carvalho. Industrial de metalurgia. Esperava o seu Mercedes com chofer. Fazia calor, o carro era refrigerado, tinha telefone e geladeira. Affonso fizera quarenta anos no dia anterior. Viu a impaciência de Aurélia que batia com os pés na calçada. Interessante essa mulher, pensou Affonso. E quer carro. Dirigiu-se a ela:
    — A senhorita está achando dificuldade de condução?
    — Estou aqui desde as seis horas e nada de um táxi passar e nos pegar! Já não agüento mais.
    — Meu chofer vem daqui a pouco, disse Affonso. Posso levá-los a alguma parte?
    — Eu lhe agradeceria muito, inclusive porque estou com dor no pé. Mas não disse que tinha calos. Escondeu o defeito. Estava maquiladíssima e olhou com desejo o homem. Serjoca muito calado. Afinal veio o chofer, desceu, abriu a porta do carro. Entraram os três. Ela na frente, ao lado do chofer, os dois atrás. Tirou discretamente o sapato e suspirou de alívio.
    — Para onde vocês querem ir?
    — Não temos propriamente destino, disse Aurélia cada vez mais acesa pela cara máscula de Affonso.
    Ele disse:
    — E se fôssemos ao Number One tomar um drinque?
    — Eu adoraria, disse Aurélia. Você não gostaria, Serjoca?
    — É claro, preciso de uma bebida forte.
    Então foram para a boate, a essa hora quase vazia. E conversaram. Affonso falou de metalurgia. Os outros dois não entendiam nada. Mas fingiam entender. Era tedioso.
    Mas Affonso estava entusiasmado e, embaixo da mesa, encostou o pé no pé de Aurélia. Justo o pé que tinha calo. Ela correspondeu, excitada. Aí Affonso disse:
    — E se fôssemos jantar na minha casa? Tenho hoje escargots e frango com
    trufas. Que tal?
    — Estou esfaimada.
    E Serjoca mudo. Estava também aceso por Affonso.
    O apartamento era atapetado de branco e lá havia escultura de Bruno Giorgi. Sentaram-se, tomaram outro drinque e foram para a sala de jantar. Mesa de jacarandá. Garçom servindo à esquerda. Serjoca não sabia comer escargots e atrapalhou-se todo com os talheres especiais. Não gostou. Mas Aurélia gostou muito, se bem que tivesse medo de ter hálito de alho. Mas beberam champanha francesa durante o jantar todo.
    Ninguém quis sobremesa, queriam apenas café.
    E foram para a sala. Aí Serjoca se animou. E começou a falar que não acabava mais. Lançava olhos lânguidos para o industrial. Este ficou espantado com a eloqüência do rapaz bonito. No dia seguinte telefonaria para Aurélia para lhe dizer: o Serjoca é um amor de pessoa.
    E marcaram novo encontro. Desta vez num restaurante, o Albamar. Comeram ostras para começar. De novo Serjoca teve dificuldade de comer as ostras. Sou um errado, pensou.
    Mas antes de se encontrarem, Aurélia telefonou para Serjoca: precisava de maquilagem urgente. Ele foi à sua casa.
    Então, enquanto era maquilada, pensou: Serjoca está me tirando o rosto.
    A impressão era a de que ele apagava os seus traços: vazia, uma cara só de
    carne. Carne morena.
    Sentiu mal-estar. Pediu licença e foi ao banheiro para se olhar ao espelho. Era
    isso mesmo que ela imaginara: Serjoca tinha anulado o seu rosto. Mesmo os ossos —
    e tinha uma ossatura espetacular — mesmo os ossos tinham desaparecido. Ele está me
    bebendo, pensou, ele vai me destruir. E é por causa do Affonso.
    Voltou sem graça. No restaurante quase não falou. Affonso falava mais com Serjoca, mal olhava para Aurélia: estava interessado no rapaz.
    Enfim, enfim acabou o almoço.
    Serjoca marcou encontro com Affonso para de noite. Aurélia disse que não podia ir, estava cansada. Era mentira: não ia porque não tinha cara para mostrar.
    Chegou em casa, tomou um longo banho de imersão com espuma, ficou pensando: daqui a pouco ele me tira o corpo também. O que fazer para recuperar o que fora seu? A sua individualidade?
    Saiu da banheira pensativa. Enxugou-se com uma toalha enorme, vermelha.
    Sempre pensativa. Pesou-se na balança: estava com bom peso. Daí a pouco ele me tira também o peso, pensou.
    Foi ao espelho. Olhou-se profundamente. Mas ela não era mais nada.
    — Então — então de súbito deu uma bruta bofetada no lado esquerdo do rosto.
    Para se acordar. Ficou parada olhando-se. E, como se não bastasse, deu mais duas bofetadas na cara. Para encontrar-se.
    E realmente aconteceu.
    No espelho viu enfim um rosto humano, triste, delicado. Ela era Aurélia Nascimento. Acabara de nascer. Nas-ci-men-to.