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Mostrando postagens de julho, 2008

Um Sopro de Vida

Isto não é um lamento, é um grito de ave de rapina. Irisada e intranqüila. O beijo no rosto morto. Eu escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida. Viver é uma espécie de loucura que a morte faz. Vivam os mortos porque neles vivemos. De repente as coisas não precisam mais fazer sen­tido. Satisfaço-me em ser. Tu és? Tenho certeza que sim. O não sentido das coisas me faz ter um sorriso de complacência. De certo tudo deve estar sendo o que é. [...] Quando acabardes este livro chorai por mim um aleluia. Quando fechardes as últi­mas páginas deste malogrado e afoito e brincalhão li­vro de vida então esquecei-me. Que Deus vos abençoe então e este livro acaba bem. Para enfim eu ter re­pouso. Que a paz esteja entre nós, entre vós e entre mim. Estou caindo no discurso? que me perdoem os fiéis do templo: eu escrevo e assim me livro de mim e posso então descansar.

A Viagem (trecho)

Impossível explicar. Afastava-se aos poucos da­quela zona onde as coisas têm forma fixa e arestas, onde tudo tem um nome sólido e imutável. Cada vez mais afundava na região líquida, quieta e insondável, onde pairavam névoas vagas e frescas como as da madrugada. Da madrugada erguendo-se no campo. Na fazenda do tio acordara no meio da noite. As tábuas da casa velha rangiam. De lá do primeiro andar, solta no espaço escuro, afundara os olhos na terra, procurando as plantas que se torciam enrodilhadas como víboras. Alguma coisa piscava na noite, espiando, espiando, olhos de um cão deitado, vigi­lante. O silêncio pulsava no seu sangue e ela arfava com ele. Depois a madrugada nasceu sobre as cam­pinas, rosada, úmida. As plantas eram de novo ver­des e ingênuas, o talo fremente, sensível ao sopro do vento, nascendo da morte. Já nenhum cão vigiava a fazenda, agora tudo era um, leve, sem consciência. Havia então um cavalo solto na campina quieta, a mobilidade de suas pernas apenas adivinhada. Tud...

A Partida dos Homens (trecho)

[...] O silêncio ficou palpitando atrás dele em peque­nos sussurros. Há quanto tempo estivera observando-o, sem sentir. Ah, então ela morreria. Sim, que morreria. Simples como o pássaro voa­ra. Inclinou a cabeça para um lado, suavemente co­mo uma louca mansa: mas é fácil, tão fácil... nem é inteligente... é a morte que virá, que virá... Quantos segundos haviam decorrido? Um ou dois. Ou mais. O frio. Percebeu que por um milagre to­mara agora consciência daqueles pensamentos, que eles eram tão profundos que haviam decorrido sob outros materiais e fáceis, simultaneamente... En­quanto ela vivera o sonho, observara as coisas ao redor, usara-as mentalmente, nervosamente, como quem crispa as mãos na cortina enquanto olha a paisagem. Fechou os olhos, docemente serena e can­sada, envolvida em longos véus cinzentos. Um mo­mento ainda sentiu a ameaça de incompreensão nas­cendo do interior longínquo do corpo como um flu­xo de sangue. Eternidade é o não ser, a morte é a imortalidade — boiavam ainda...

A Víbora (trecho)

Que transponho suavemente alguma coisa... Otávio lia enquanto o relógio estalava os se­gundos e rompia o silêncio da noite com 11 bada­ladas . Que transponho suavemente alguma coisa... Ê a impressão. A leveza vem vindo não sei de onde. Cortinas inclinam-se sobre as próprias cinturas languidamente. Mas também a marcha negra, parada, dois olhos fitando e nada podendo dizer. Deus pou­sa numa árvore pipilando e linhas retas se dirigem inacabadas, horizontais e frias. É a impressão... Os momentos vão pingando maduros e mal tomba um ergue-se outro, de leve, o rosto pálido e pe­queno. De repente também os momentos acabam. O sem-tempo escorre pelas minhas paredes, tortuoso e cego. Aos poucos acumula-se num lago escuro e quieto e eu grito: vivi! A noite calava as coisas lá fora, algum sapo coaxava a intervalos. Cada arbusto era um vulto imóvel e recolhido. Longe brilhavam e tremiam pequenas luzes avermelhadas, olhos insones. Na escuridão como da água. [...]

Miss Algrave

Ela era sujeita a julgamento. Por isso não contou nada a ninguém. Se contasse, não acreditariam porque não acreditavam na realidade. Mas ela que morava em Londres, onde os fantasmas existem nos becos escuros, sabia da verdade.Seu dia, Sexta-feira, fora igual aos outros. Só aconteceu sábado à noite. Mas na Sexta fez tudo igual como sempre. Embora a atormentasse uma lembrança horrível: quando era pequena, com uns sete anos de idade, brincava de marido e mulher com seu primo Jack, na cama grande da vovó. E ambos faziam de tudo para Ter filhinhos sem conseguir. Nunca mais vira Jack nem queria vê-lo. Se era culpada, ele também o era.Solteira, é claro, virgem, é claro. Morava sozinha numa cobertura em Soho. Nesse dia tinha feito suas compras de comida: legumes e frutas. Porque comer carne ela considerava pecado.Quando passava pelo Picadilly Circle e via as mulheres esperando homens nas esquinas, só faltava vomitar. Ainda mais por dinheiro! Era demais para se suportar. E aquela estátua de Ero...

Preciosidade (Para Mafalda)

De manhã cedo era sempre a mesma coisa renovada: acor­dar. O que era vagaroso, desdobrado, vasto. Vastamente ela abria os olhos. Tinha quinze anos e não era bonita. Mas por dentro da magreza, a vastidão quase majestosa em que se movia como dentro de uma meditação. E dentro da nebulosi­dade algo precioso. Que não se espreguiçava, não se com­prometia, não se contaminava. Que era intenso como uma jóia. Ela. Acordava antes de todos, pois para ir à escola teria que pegar um ônibus e um bonde, o que lhe tomaria uma hora. O que lhe daria uma hora. De devaneio agudo como um crime. O vento da manhã violentando a janela e o rosto até que os lábios ficavam duros, gelados. Então ela sorria. Como se sorrir fosse em si um objetivo. Tudo isso aconteceria se tivesse a sorte de "ninguém olhar para ela". Quando de madrugada se levantava — passado o ins­tante de vastidão em que se desenrolava toda — vestia-se correndo, mentia para si mesma que não havia tempo de tomar banho, e a família ad...

O Abrigo no Homem (trecho)

[...] Como terminar a história de Joana? Se pudesse co­lher e acrescentar o olhar que surpreendera em Lídia: ninguém te amará... Sim, terminar assim: apesar de ser das criaturas soltas e sozinhas no mun­do, ninguém jamais pensou em dar alguma coisa a Joana. Não amor, entregavam-lhe sempre outro sentimento qualquer. Viveu sua vida, ávida como uma virgem — isso para o túmulo. Fez-se muitas perguntas, mas nunca pôde se responder: parava para sentir. Como nasceu um triângulo? antes em idéia? ou esta veio depois de executada a forma? um triângulo nasceria fatalmente? as coisas eram ri­cas . — Desejaria deter seu tempo na pergunta. Mas o amor a invadia. Triângulo, círculo, linhas re­tas... harmônico e misterioso como um arpejo. Onde se guarda a música enquanto não soa? — in­dagava-se. E rendida respondia: que façam harpa de meus nervos quando eu morrer. O fim da lucidez de Joana misturou-se ao navio torto sobre as ondas, movendo-se. Bastava menear a cabeça para que as ondas a acompanhassem. ...

O Jantar

Ele entrou tarde no restaurante. Certamente ocupara-se até agora em grandes negócios. Poderia ter uns sessenta anos, era alto, corpulento, de cabelos brancos, sobrancelhas espes­sas e mãos potentes. Num dedo o anel de sua força. Sen­tou-se amplo e sólido. Perdi-o de vista e enquanto comia observei de novo a mulher magra de chapéu. Ela ria com a boca cheia e rebrilhava os olhos escuros. No momento em que eu levava o garfo à boca, olhei-o. Ei-lo de olhos fechados mastigando pão com vigor e meca­nismo, os dois punhos cerrados sobre a mesa. Continuei comendo e olhando. O garçom dispunha os pratos sobre a toalha. Mas o velho mantinha os olhos fechados. A um gesto mais vivo do criado ele os abriu com tal brusquidão que este mesmo movimento se comunicou às grandes mãos e um garfo caiu. O garçom sussurrou palavras amáveis abaixando-se para apanhá-lo; ele não respondia. Porque agora desperto, virava subitamente a carne de um lado e de outro, examinava-a com veemência, a ponta da líng...

Fim da Construção: O Viaduto (trecho)

Nos últimos dias de vida Mateus Correia parecera acanhado diante da gravidade do que lhe sucedia e mesmo vexado como se não merecesse tanto. Quanto mais se aproximava certa hora, mais sorria em modéstia para a esposa, numa infelicidade que até então não tivera cer­tamente oportunidade de manifestar-se. Embora o mi­nuto antes de morrer pudesse, pela urgência, ter durado tanto que lhe houvesse dado tempo de ter sido absolu­tamente feliz, como um cristal. A cara parecia orgulhosa. Que faria alma tão inex­periente sem a solução que fora o corpo. Lucrécia chorava espantada. E agora sozinha, ficava de noite escutando o silêncio da rua do Mercado. Alguma coisa continuava a trabalhar sem barulho, ela na proa do navio — embaixo as máquinas funcio­nando quase sem ruído. Por um momento revia Mateus. E em bofetada, talvez ele nem tivesse tido quadris largos! fora apenas pálido, de bigodes. Morrer do coração viera explicar aquela grossa calma e o escolher tantos pratos: bem, vou ver uma estrelinha....

O Homem (trecho)

Entre um instante e outro, entre o passado e o futuro, a vaguidão branca do intervalo. Vazio como a distância de um minuto a outro no círculo do re­lógio . O fundo dos acontecimentos erguendo-se cala­do e morto, um pouco da eternidade. Apenas um segundo quieto talvez separando um trecho da vida ao seguinte. Nem um segundo, não pôde contá-lo em tempo, porém longo como uma linha reta infinita. Profundo, vindo de longe, — um pássaro negro, um ponto crescendo do hori­zonte, aproximando-se da consciência como uma bola arremessada do fim para o princípio. E explo­dindo diante dos olhos perplexos em essência de si­lêncio. Deixando depois de si o intervalo perfeito como um único som vibrando no ar. Renascer de­pois, guardar a memória estranha do intervalo, sem saber como misturá-lo à vida. Carregar para sem­pre o pequeno ponto vazio — deslumbrado e virgem, demasiado fugaz para se deixar desvendar. Joana sentiu-o enquanto atravessava o pequeno jardim de Lídia, ignorando aonde iria, sabendo ape­...

A Imitação da Rosa

Antes que Armando voltasse do trabalho a casa deveria estar arrumada e ela própria já no vestido marrom para que pudesse atender o marido enquanto ele se vestia, e então sairiam com calma, de braço dado como antigamente. Há quanto tempo não faziam isso? Mas agora que ela estava de novo "bem", tomariam o ônibus, ela olhando como uma esposa pela janela, o braço no dele, e depois jantariam com Carlota e João, recostados na cadeira com intimidade. Há quanto tempo não via Ar­mando enfim se recostar com intimidade e conversar com um homem? A paz de um homem era, esquecido de sua mulher, conversar com outro homem sobre o que saía nos jornais. Enquanto isso ela falaria com Carlota sobre coisas de mulheres, submissa à bondade autoritária e prática de Carlota, recebendo enfim de novo a desatenção e o vago desprezo da amiga, a sua rudeza natural, e não mais aquele carinho perplexo e cheio de curiosidade — e vendo enfim Armando esquecido da própria mulher. E ela mesma, enfim, voltando à ...

A Língua do P

Maria Aparecida – Cidinha, como a chamavam em casa - era professora de inglês. Nem rica nem pobre: remediada. Mas vestia-se com apuro. Parecia rica. Até suas malas eram de boa qualidade.Morava em Minas Gerais e iria de trem para o Rio, onde passaria três dias, e em seguida tomaria o avião para Nova Iorque.Era muito procurada como professora. Gostava da perfeição e era afetuosa, embora severa. Queria aperfeiçoar-se nos Estados Unidos.Tomou o trem das sete horas para o Rio. Frio que fazia. Ela com casaco de camurça e três maletas. O vagão estava vazio, só uma velhinha dormindo num canto sob o seu xale. Na próxima estação subiram dois homens que se sentaram no banco em frente ao banco de Cidinha. O trem em marcha. Um homem era alto, magro, e bigodinho e olhar frio, o outro era baixo, barrigudo e careca. Eles olharam para Cidinha. Esta desviou o olhar, olhou pela janela do trem.Havia um mal-estar no vagão. Como se fizesse calor demais. A moça inquieta. Os homens em alerta. Meu Deus, pensou...

Os Primeiros Desertores (trecho)

Perseu abrigara-se da chuva na sala da estação, pou­sando a mala no banco. Cortara no dia anterior os ca­belos. No rosto mais nu as orelhas pareciam separadas da cabeça; as faces um pouco ossudas davam-lhe um ar de fraqueza obstinada e, apesar disso, de tranqüilidade. Seu aspecto se transformara bastante desde a época em que andava com Lucrécia. Estava muito mais magro, menos bonito. Agora havia nele um modo de ter doçura que não estava mais na doçura; com o impermeável solto no corpo parecia um estrangeiro que entrasse numa cidade. Chovia muito. A chuva nos trilhos ainda desertos tinha um sentido reservado de que ele parecia fazer parte. Como havia tempo, ligou o rádio que em breve es­talava captando o temporal longínquo — percebia-se po­rém o fio de música através das crepitações da eletri­cidade. Perseu ouvia de pé, sem sonhos e sem o que se chamaria de entender. A frase musical, muito nobre, era-lhe visível como o rádio. Apreendia o esforço da música com o mesmo esforço agradável, ...

O Milho no Campo (trecho)

Numa de suas últimas viagens de negócio, em vez de dei­xar a esposa na rua do Mercado, Mateus alugou-lhe a casinha na ilha, esperando que o mar lhe desse cores. A barca hesitava vencendo as ondas que uma tem­pestade frustrada enchia de cólera e de espuma. Pálida de enjôo Lucrécia apertava os olhos esfor­çando-se por ver de longe a terra que se negava. Mal de­sembarcara porém, e certo prazer já nascia com os pas­sos afundando na areia do cais. Em breve atingia o cen­tro da pequena cidade marítima, chefiando a comitiva de carregador e criada. Antes de tomar a charrete ainda viu a placa de Dr. Lucas, que representava, aos olhos de Mateus, a segurança da saúde de Lucrécia, na verdade emagrecida. Subindo na charrete, marcou bem a casa onde en­contraria o médico se dele precisasse. Com surpresa seu coração em vez de sentir apenas confiança, estremeceu acordando à lembrança de uma força quase íntegra? deu ordem de partida. Os cavalos a carregavam em tropeços e súbitos avan­ços através do atal...

Lídia (trecho)

A manhã seguinte era de novo como um primeiro dia, sentiu Joana. Otávio saíra cedo e ela o abençoava por isso como se ele lhe tivesse concedido intencionalmente tempo para pensar, para observar-se. Ela não que­ria precipitar-se em nenhuma atitude, sentia que qualquer de seus movimentos poderia tornar-se pre­cioso e perigoso. Foram instantes, horas rápidas apenas. Porque ela recebeu o bilhete de Lídia convidando-a a vi­sitá-la. Sua leitura fizera Joana sorrir antes mesmo de provocar aquelas rápidas e pesadas batidas do cora­ção. E também a lâmina fria de aço encostando no interior morno do corpo. Como se sua tia morta ressurgisse e lhe falasse, Joana imaginou-lhe o susto, sentiu seus olhos abertos — ou seriam os seus pró­prios olhos a quem ela não permitia surpresas? —: Otávio voltou para Lídia, apesar de Joana? — diria a tia. Joana alisou os cabelos vagamente, a lâmina fria encostada ao coração quente, sorriu de novo, oh só para ganhar tempo. Mas sim, por que não continuar com Lídia? —...

Devaneio e Embriaguez duma Rapariga

Pelo quarto parecia-lhe estarem a se cruzar os elétricos, a estremecerem-lhe a imagem refletida. Estava a se pentear vagarosamente diante da penteadeira de três espelhos, os braços brancos e fortes arrepiavam-se à frescurazita da tar­de. Os olhos não se abandonavam, os espelhos vibravam ora escuros, ora luminosos. Cá fora, duma janela mais alta, caiu à rua uma cousa pesada e fofa. Se os miúdos e o ma­rido estivessem à casa, já lhe viria à idéia que seria des­cuido deles. Os olhos não se despregavam da imagem, o pente trabalhava meditativo, o roupão aberto deixava apa­recerem nos espelhos os seios entrecortados de várias raparigas. "A Noite!", gritou o jornaleiro ao vento brando da Rua do Riachuelo, e alguma cousa arrepiou-se pressagiada. Jogou o pente à penteadeira, cantou absorta: "quem viu o par­dal-zito... passou pela jane-la... voou pr'além do Mi-nho!" — mas, colérica, fechou-se dura como um leque. Deitou-se, abanava-se impaciente com um jornal a farfalhar n...